sábado, 24 de março de 2012

Sentença amena

Está aqui no jornal; na "Luta Democrática", para ser mais preciso, um jornal conservador: a gente olha a fotografia, se o cara estiver em pé é o assassino, se estiver deitado, é a vítima. Mas — dizia — a notícia a que me atenho está aqui no jornal e a gente, com um pouco de imaginação, vê a cena.

Aconteceu na 21.a Vara Criminal, onde o juiz Manuel Benedito Lima teve que engolir em seco para manter a dignidade da Justiça quando sua vontade talvez fosse tacar a mão no sem-vergonha que o destino lhe pôs à frente, como réu confesso.

O réu era José Batista de Souza, preso por desacato à autoridade, atentado ao pudor e outros bichos. Bastava olhar para ele e ver que o mais correto seria outros bichas, em vez de outros bichos. Para início de conversa o réu se apresentou de "slack" bem justinho nas coxas e uma blusa "boufant" mais colorida que a Avenida Rio Branco no sábado de Carnaval. E como estava pintada, a ré misteriosa! Cílios postiços, baton, base, todas essas bossas da maquilagem moderna.

O juiz arregalou os olhos e perguntou o nome do réu:

— Meu nome é José Batista de Souza, mas pode me chamar de Carmen Déa — lascou a bicha, fazendo olhar pidão.

Nessa altura o magistrado já deve ter tido vontade de tacar a mão no bicharoca, mas conteve-se.

Seguiram-se as providências de praxe, o juiz ouviu as queixas do Estado contra Carmen Déa, digo, José Batista de Souza e depois sentenciou:

— Um ano e oito meses de cadeia.

A bicha piscou os olhos meio decepcionada e já ia virar as costas, quando o juiz terminou de lascar a sentença:

— ... e além disso, dois anos na Colônia Agrícola...

Aí Carmen Déa não agüentou, deu um gritinho e perguntou:

— Dois anos na Colônia Agrícola, segregada, no meio de todos aqueles presos?

— Justamente — foi a resposta.

E Carmen Déa começou a pular de contente, gritando de alegria:

— Era isso mesmo que eu queria... Adorei milhões. Adorei milhões.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975
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sexta-feira, 23 de março de 2012

Pontaria de pierrô

Foi em Parada de Lucas, que fica pertinho da aprazível estância fluminense de Caxias e, vez por outra, lhe sofre a influência e manda brasa. Claro, Parada de Lucas não chega a ser Caxias. Seria preciso pelo menos mais uns 25 crimes de morte por dia, para poder igualar-se à outra. Mas os paradenses, não é pra se gambá não, até que têm suas mumunhas.

Desta vez foi à noitinha. Juarez já andava desconfiado que sua noiva — Marli — andava colhendo pitanga noutro pomar.

Afinal, Marli brigara com ele sem explicar coisa alguma e noiva que se manda sem motivo é porque o motivo escondido é — no mínimo — um bombeiro, um sargento ou um simples amanuense.

Juarez ficou na tocaia porque, embora estejamos a viver o esplendor da fase do "dedo-duro", não encontrou ninguém para informar quem era o gaiato que estava botando sua pimenta no vatapá da moça.

E na tocaia esperou pacientemente até que viu a bela no portão de sua casa.

Prenhe de incontido ciúme, Juarez catou duas pedras no chão e atirou a primeira, que bateu na testa de Marli e foi pra "corner". A moça ficou cambaleando, o que não impediu Juarez de ser mirolha outra vez. A segunda pedrada quase arranca a orelha de Marli, que foi internada no Hospital Getúlio Vargas.

Quanto a Juarez, foi em cana. Vai ter pontaria assim na... no... enfim, deixa pra lá.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975
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quinta-feira, 22 de março de 2012

Os idiotas confessos

Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem.

No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante. Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — "Uma santa! Uma santa!".

Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc. Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão.

E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: — "Eu sou um quadrúpede!". Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — "Sou um quadrúpede de 28 patas!". Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota. E o imbecil como tal se comportava.

Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos "melhores". Só os "melhores", repito, só os "melhores" ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos "melhores", só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os "melhores" podem pensar, agir, decidir.

Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — "Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido". Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora!

Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo. De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos "melhores". Para um "gênio", 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos.

E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os "superiores". Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

Quanto aos "melhores", ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a "invasão dos idiotas". E, de fato, eles explodem por toda parte: — são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer.

Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou a Virgem Maria, será exatamente o fim.

É o que está acontecendo. Nem se pense que a "invasão dos idiotas" só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — "Subdesenvolvimento" — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos.

Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com ainicial maiúscula).

Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

Cabe então a pergunta: — "O dr. Alceu pensa assim?".

Não. Em outra época, foi um dos "melhores". Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado.

Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc.

A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação.

São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

[19/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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