terça-feira, 15 de novembro de 2011

A ciência do chute com efeito

Gol de Didi contra o Peru. Sua primeira "folha-seca"
Na história de nosso futebol, alguns jogadores ficaram famosos por seus tiros enviesados, que surpreendem os goleiros ao mudar subitamente de rumo. Mas essa invejável habilidade tem explicação científica.

A bola, chutada quase da intermediária, subiu demais, passando por cima da barreira formada a uma distância de 10 metros. Se continuasse nessa trajetória, iria fatalmente para fora do campo. De repente, porém, a bola fez uma curva no ar e pareceu perder força, surpreendendo o goleiro, que nem sequer teve tempo de corrigir seus cálculos e saltar antes que ela caísse suavemente dentro de suas redes. O gol, aos 27 minutos do segundo tempo no jogo com o Peru, classificou o Brasil para a disputa da Copa do Mundo de 1958, na Suécia. O resto da história todo mundo conhece: Brasil, campeão mundial de futebol revelando ao mundo um meia-esquerda apelidado Pelé.

Mas o gol que levou o Brasil à Suécia nasceu dos pés de um meia-direita. O goleiro peruano foi traído pela folha-seca — a grande especialidade de Valdir Pereira dos Santos, do Botafogo do Rio de Janeiro, conhecido como Didi. É provável que ele não soubesse disso, mas dois fenômenos aerodinâmicos são responsáveis por aquele e dezenas de outros gols parecidos que marcou: a força ascensional, a mesma que.ajuda os aviões a voar, e o chamado efeito Magnus, de onde se originou a expressão tiro com efeito, para designar os chutes enviesados que fazem o desespero dos goleiros.

Atuando sobre um avião em vôo, a força ascensional se manifesta quando o ar que passa ao redor do aparelho alcança uma velocidade maior na parte superior das asas. Isso acontece justamente por causa da forma especial do perfil das asas nos aviões. Segundo uma lei formulada pelo físico e matemático suíço Daniel Bernouilli, no século XVIII, a pressão sobre um gás ou uma superfície será menor quanto maior a velocidade do fluido. Por isso, a pressão na parte superior da asa é menor que na parte inferior. Essa diferença de pressão gera uma força que fornece ao avião seu empuxo aerodinâmico. A força ascensional aerodinâmica pode aparecer também aliada ao efeito Magnus no vôo de uma bola — quando, além de subir, ela gira ao redor de seu próprio eixo. Os jogadores de futebol costumam dizer então que a bola está “envenenada”.

Ao girar sobre seu próprio eixo, a superfície da bola sofre o atrito do ar. Isso influi na velocidade com que o ar passa ao seu redor: na parte superior da bola, o ar é mais rápido; na inferior, mais lento. Devido a essa diferença de velocidade — assim como no caso das asas do avião —, ocorre uma diferença de pressão entre a parte de cima e a de baixo; em conseqüência, chutada embaixo, a bola sobe, numa trajetória também determinada pela força de gravidade e a resistência do ar.

Já a intensidade do efeito Magnus e sua influência na trajetória da bola dependem de vários fatores. A superfície áspera da bola e a grande velocidade do giro sobre o próprio eixo, em relação à velocidade de vôo, aumentam o efeito. Já a influência na trajetória aparece principalmente nas bolas mais leves. O efeito Magnus foi observado pela primeira vez em 1852 pelo físico alemão Gustav Magnus — daí o nome —, a pedido da Comissão de Provas da Real Artilharia Prussiana. Pouco a pouco, essas observações começaram a ser aplicadas em vários campos da ciência.

Mas não apenas os cientistas recorreram às descobertas de Gustav Magnus. Desde muito cedo, na história moderna do futebol, também os jogadores aprenderam na prática a chutar com efeito. Os princípios são simples: se a bola é chutada na parte de cima, tende a sofrer uma queda mais acentuada; se o chute é aplicado na parte de baixo, a bola volta para trás — um recurso muito usado na jogada conhecida como “bicicleta”, que o atacante brasileiro Leônidas da Silva celebrizou, na década de 30.

Bater na bola lateralmente faz com que, em função do giro sobre seu próprio eixo — para a direita ou para a esquerda —, ela se desvie da trajetória normal. Chutando corretamente a bola — na parte de cima ou de baixo, na lateral direita ou esquerda — é possível fazê-la descrever curvas numa trajetória aparentemente imprevisível. Os jogadores mais habilidosos até conseguem marcar gols em cobrança de escanteio, quando a bola parte da mesma linha onde estão fincadas as traves. E o gol olímpico, assim chamado por ter sido obtido pela primeira vez pela Seleção do Uruguai nos Jogos Olímpicos de 1924.

No Brasil, quem não se lembra das cobranças de falta de Nelinho, no Cruzeiro de Belo Horizonte ou na seleção, há seis anos? “Ele foi o mais impressionante cobrador de faltas que já conheci”, lembra o cronista esportivo Vital Bataglia. “Alguns, como Pepe, do Santos, ou Miranda, do Corinthians, até chutavam mais forte; outros, como Ailton Lira, do Santos, e Mário Sérgio, do Grêmio de Porto Alegre e depois do São Paulo, eram virtuoses do efeito. Mas nenhum deles, como Nelinho, combinava perfeitamente as duas coisas a ponto de dar a impressão de que a bola mudava de rumo três vezes no ar.”

Para contrabalançar a vantagem que os chutes de Nelinho davam ao time do Cruzeiro, seu arquiinimigo no futebol mineiro, o Atlético, contava com o ponta-esquerda Éder, também ele um artista na cobrança de faltas, com seus chutes fortes e cheios de efeito. Éder, Nelinho e o flamenguista Zico substituíram, na Seleção Brasileira, outros especialistas na arte de envenenar a bola: Gérson e Rivelino, estrelas da seleção que conquistou o tricampeonato mundial em 1970.

A maior dificuldade nesse tipo de chute está em bater na bola com força suficiente para obter uma mudança significativa em sua rota normal. Uma bola oficial de futebol tem um peso relativamente alto — entre 453 e 534 gramas — e não é fácil fazê-la descrever uma curva no ar.

Quem já chutou uma bola de praia sabe como ela descreve as mais estranhas curvas. Isso acontece porque, sendo muito leve, lhe é muito difícil vencer a resistência do ar. Ao ter o movimento de rotação sobre seu próprio eixo interrompido pelo ar, ela muda bruscamente de direção. Alguns jogadores têm um domínio tão grande dos chutes de efeito que não o utilizam apenas na cobrança de faltas, mas também para lançamentos de longa distância aos companheiros.

O mestre de todos eles, Didi, aprendeu a arte com outro gênio em bolas envenenadas: Jair Rosa Pinto, Mestre Jajá, como era chamado, não chegava a impressionar os adversários. Mas de seus pés pequenos, calçados com chuteiras número 37, saíam bolas que ele colocava onde desejava, depois de fazê-las descrever graciosas curvas no ar. Observando Jair Rosa Pinto, Didi desenvolveu sua folha-seca.

Embora teoricamente não tenha segredo para os profissionais do futebol — que o chamam de “três dedos”, pela forma com que o pé bate na bola —, o chute de Didi ainda não foi imitado. Elegante, boêmio e sem paciência para as longas sessões de treinamentos físicos — “no futebol, quem deve correr é a bola, não o jogador”, dizia —, Didi batia na bola com impulso suficiente para fazê-la chegar até perto do gol adversário, para então perder força, descrever uma curva e cair suavemente, como uma folha seca levada pelo vento.

Fonte: http://rogsil.wordpress.com.
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segunda-feira, 14 de novembro de 2011

A barba do falecido

Aconteceu em Jundiaí. Orozimbo Nunes estava passando mal e foi internado pela família no Hospital São Vicente de Paulo, para tratamento. Orozimbo tem muitos parentes, é muito querido e tem uma filha que cuida dele. Foi a filha, aliás, que internou Orozimbo.

Anteontem telefonaram para a filha de Orozimbo Nunes. Era do hospital e a notícia dada foi lamentável. Orozimbo tinha abotoado o paletó — como dizem os irreverentes. Isto é, tinha posto o bloco na rua, como dizem os super-irreverentes, comparando enterro a bloco carnavalesco. Enfim, Orozimbo tinha morrido. A filha de Orozimbo que fizesse o favor de aguardar, porque lá do hospital iam fazer o carreto, ou seja, iam mandar o defunto a domicílio.

A filha do extinto caiu em prantos e convocou os parentes. Conforme ficou dito acima, Orozimbo era muito querido. Veio parente da capital, veio parente de Minas, parente do Rio, enfim, Jundiaí ficou assim de parente de Orozimbo. As providências para o velório foram logo tomadas, gastou-se dinheiro, compraram-se flores. Estava um velório legal se não faltasse um detalhe: não havia defunto.

O corpo de Orozimbo não tinha chegado. A família ligou para o hospital e reclamou. Tinha saído no expresso-rabecão das seis — informaram. E, de fato, pouco depois Orozimbo (à sua revelia) chegava.

Puseram o embrulho lá dentro, houve aquela choradeira regulamentar e, na hora de desembrulhar para preparar o cadáver, alguém notou que a barba de Orozimbo crescera.

— Ele estava tão doente que nem podia fazer a barba — comentou um dos que ajudavam, com a filha de Orozimbo, que esperava lá fora.

A filha estranhou a coisa. Entregara Orozimbo doente, é verdade, mas Orozimbo chegara ao hospital perfeitamente escanhoado e não dava tempo de a barba ter crescido assim tão depressa.

— A barba tá muito grande? — perguntou a filha de Orozimbo.

Estava. Estava que parecia barba de músico da Bossa-Nova. Aí a moça desconfiou e foi conferir. Simplesmente não era Orozimbo. Tinham trocado as encomendas, e talvez naquele momento, outra família, noutro local, estivesse chorando o Orozimbo errado.

Mais que depressa ligaram para o Hospital São Vicente de Paulo e reclamaram contra a ineficácia do serviço de entregas rápidas.

Nova verificação para se saber qual era o embaraço, e a direção do eficiente nosocômio descobriu que Orozimbo nem sequer morrera. Não houvera uma troca de cadáveres, mas uma troca de fichas. O que morrera não era Orozimbo, era um barbadinho anônimo. Orozimbo estava lá, vivinho e, por sinal, passando muito melhor. Podia até ter alta, assim que desejasse.

Claro, parou a bronca e a raiva contra o desleixo transformou-se em pungente alegria.

A família foi buscar Orozimbo (depois de devolver o barbicha, naturalmente) e o contentamento foi geral, em receber de volta aquele que já fora pranteado por antecipação e para o qual já tinham feito aquela vasta despesa para o enterro.

Não sei se é verdade, mas dizem que a família, em sinal de regozijo pela volta de Orozimbo e também para aproveitar o que sobrara das despesas, ofereceu aos amigos um velório-dançante.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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domingo, 13 de novembro de 2011

Madame e o freguês

A jovem senhora estava colocando as suas meias fumê, vestindo-se para ir a um jantar, quando ouviu um barulho na sala. Distraída, assim mesmo como se encontrava, nos trajos mais íntimos, foi até lá ver o que era. Foi aí que deu com o homem sentado no sofá.

Ela arregalou os olhos de espanto, ficou embatucada, olhando para o homem, mas este nem ao menos se preocupou com o seu susto. Continuou sentado no sofá. Ela — logo que teve forças — correu para o quarto, trancou a porta e telefonou para a amiga:

— Fulana, tem um homem aqui na sala, sentado no sofá.

— Não é seu pai? — perguntou a amiga, que ainda não sentira o drama.

— Se for papai é pior — ela exclamou nervosíssima.

— Por quê?

— Porque papai já morreu.

Só então a amiga percebeu o drama que ela vivia. Meu Deus, e se fosse um ladrão: — Tinha cara de ladrão? — perguntou a amiga.
Não, não tinha. Parecia um senhor numa sala de espera de escritório. A amiga concordou que certos ladrões sabem disfarçar-se muito bem. Mas teve um plano.

— Desliga o telefone que eu ligo para aí de novo. Você não atende, entendeu? Deixa que ele atenda lá na sala. Quando ele atender eu digo a ele para ir embora.

Era um plano dos mais mixurucas, conforme os leitores podem concluir, mas foi tentado. O telefone tocou, tocou e nada de o homem se mancar e atender, lá na sala. Vendo que a amiga ia ficar tocando em vão, madama atendeu, no quarto.

— Ele foi embora? — quis saber a amiga.

Madama não sabia, mas bolou outro plano:

— Eu vou destrancar a porta do quarto e ver. Mas, pelo amor de Deus, ligue de novo e dê quinze chamadas, se eu não atender até a décima-quinta, você chame a Polícia, porque o homem deve ter-me atacado.

Desligou o fone a tremer de medo e caminhou resoluta para a porta. Meteu a mão na chave e virou suavemente. Depois que a porta abriu, meteu a cara e espiou. Ué... não havia mais homem nenhum no sofá. Tomou coragem e caminhou pela sala. Chegou a dar um gritinho de espanto, quando o telefone recomeçou a tocar. Mas devia ser a amiga. Pôs-se a percorrer o apartamento todo. Nada do homem. Tinha ido embora. O telefone continuava tocando:

— Meu Deus! — pensou ela: — Eu não contei as batidas. Se chegar a quinze, Fulana desliga e chama a Polícia.

Deu um salto e atendeu. A amiga aflita explicou que dera dezoito chamadas para estar certa de que ela tinha morrido.

— Não morri — disse Madama: — O homem sumiu.

— Ora essa! — exclamou a outra, um tanto decepcionada.

E as duas conversaram um pouquinho, ainda prenhes de nervosismo, sobre o homem misterioso. Só então Madama se lembrou de que estava de calcinhas e meias fumê.

— Chi... tenho que acabar de me vestir — e desligou.

Já estava quase pronta, quando se lembrou de que deixara o batom na sala. Caminhou até lá, e ao transpor a porta olhou casualmente para o sofá. Deu um berro. Havia um homem sentado.

— Mas o que é isso, meu bem — estranhou o homem, num pulo.

Ai... felizmente o homem era seu marido. Madama, já agora num misto de nervosa e encabulada, contou tudo que acontecera. O marido ouviu tudo calado e tranqüilo, só não gostando do pedaço em que sua mulher entrou na sala de calcinhas e meias fumê, para ser vista pelo homem.

— E por que ele estava sentado aí? — perguntou ela, necessitada de uma explicação para o drama que vivera.

— Simples, meu bem. Você já não ouviu dizer que aí no andar de baixo há um apartamento suspeito de uma senhora que mantém um "rendez-vous"? Então... o camarada entrou aqui pensando que fosse o apartamento de baixo.

— Mas como é que ele não se espantou quando me viu de calcinhas, com estas meias?

— Ora, minha filha... se há uma coisa que não espanta é ver uma mulher passar nestes trajos, numa sala de "rendez-vous".

A mulher ficou a pensar um pouquinho. De fato, o marido tinha razão. Levantou-se, apanhou o batom e se pintou. Depois saíram, foram ao tal jantar e só de madrugada, ao voltar do banheiro sem maquilagem, com o marido já deitado para dormir, é que fez a derradeira pergunta, que a vinha intrigando desde o ocorrido:

— Meu bem...

— Hummmm... — gemeu o marido, tonto de sono.

— Mas por que o homem foi embora sem dizer nada?

— Porque, quando você se trancou no quarto só de calcinhas e meias, ele pensou que você estivesse com algum freguês e achou que não valia a pena esperar.

Fez-se silêncio e instantes depois Madama começou a chorar. O marido levantou a cabeça do travesseiro e perguntou intrigado:

— Uai... você está chorando por quê?

— Porque você achou... — disse ela entre soluços — ... que o homem foi embora porque achou que não valia a pena esperar.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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