quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A atriz inteligente

Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o óbvio ululante. Paciência). E não se trata do estilo de representação.

Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Dama das camélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.

Mas o que me impressiona não é a dessemelhança de comportamento cênico. O artista mudou até na vida real.

Voltemos, por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salvaram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a primeira audição do Danúbio azul.

Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz? Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma Sarah Bernhardt amava mais no mundo do que no palco. Seria uma humilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que a Duse amou D'Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso apogeu.

Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma vergonha não ser amante de D'Annunzio. E a Duse o amou e, pior do que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu "relações-públicas" espalhar que pagava o esteta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, por fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou deixava de ser bilheteria.

Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos.

Ainda outro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: — "Estou amando! Estou amando!". A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Finalmente, a menina recebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amor virou doença.

Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — "O que é que mudou essencialmente nas atrizes, nos atores, nos diretores?". Outra pergunta: — "E por que não há mais Duse, nem há mais D'Annunzio?".

Imaginem vocês que, de repente, descobri toda a verdade.

Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker, Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saber que tratamento lhe deu Kleber Santos). Mas aconteceu não sei o que e fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi a entrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque. Uma é inteligente e a outra não.

Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava, simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a unanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma frase própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia, com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras).

Pois bem. O que a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando. O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. E justiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro somente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também a considerável vantagem do métier, que é a inflexão. E como a TV é imagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras duas ou três
verdades eternas.

A notável atriz está representando, no momento, uma peça do falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente, sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. Maria Fernanda. Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim, respondeu: — "A peça é o problema de opção".

Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: — "O problema da nossa época é a opção". Alguns descontentes, que sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo, nem de profundo.

Vejamos: — "O problema de nossa época é a opção". Isso, dito por qualquer outra, não teria maior transcendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago "bom-dia", dito da maneira certa, adquire uma profundeza inimaginável. E a "opção" da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: — "Inteligência aqui é mato".

Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao nosso teatro.

Tenho um amigo que é um retrógrado, um obscurantista, que os íntimos chamam de "a própria Idade Média". Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — "Eu, que sou a Idade Média" etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações românticas.

Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poesia dramática exige. Quanto à "opção", não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados.

É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas. A última passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.

Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeira trepou no automóvel e disse: — "Estamos cansados". Ninguém estava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga).

Em seguida, ele acrescentou: — "Vamos sentar". Falava para a parte mais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes, arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes, engenheiros (só não víamos um único preto ou
um único operário).

Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia.

Todos sentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D'Arc.

[30/7/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 8 de novembro de 2011

Ellen Drew

Ellen Drew (Esther Loretta Ray), atriz e modelo, nasceu em Kansas City, Missouri, em 23/11/1915, e faleceu em Palm Desert Riverside County, Califórnia, em 03/12/2003. No começo, Drew teve diversos empregos e venceu inúmeros concursos de beleza antes de se tornar uma atriz.

Mudou-se para Hollywood na tentativa de se tornar uma estrela, foi descoberta quando trabalhava numa sorveteria, onde um dos clientes, William Demarest, a conheceu e, eventualmente, a ajudou a entrar no mundo do cinema.

Ela se fixou na Paramount Pictures de 1938 a 1943, onde apareceu em até seis filmes por ano, incluindo "Sing You Sinners" (1938), com Bing Crosby e "Senhora do Kentucky" (1939) com George Raft. Em 1944 mudou-se para a RKO.

Seus filmes incluem o "Natal em julho" (1940), "Isle of the Dead" (1945), "Johnny O'Clock" (1947) e "O Homem do Colorado" (1948). Nos anos 50, com a carreira cinematográfica em declínio, ela foi para a TV.

Foi casada quatro vezes e teve dois filhos. Morreu em Palm Desert, California, em 3 de zembro de 2003, vítima de problemas no fígado.

Filmografia 

Rose Bowl (1936)
Murder Goes to College (1937)
Night of Mystery (1937)
Dangerous to Know (1938)
If I Were King (1938)
Sing You Sinners (1938)
The Buccaneer (1938)
If I Were King (1938)
Geronimo(1939)
The Gracie Allen Murder Case (1939)
The Ladys from Kentucky (1939)
Buck Benny Rides Again (1940)
Christmas in July (1940)
French Without Tears (1940)
The Texas Rangers Ride Again (1940)
Women Without Names (1940)
Night of January 16th(1941)
Our Wife(1941)
The Mad Doctor(1941)
The Parson of Panamint(1941)
The Monster and the Girl (1941)
Reaching for the Sun (1941)
Ice-Capades Revue (1942)
My Favorite Spy (1942)
The Remarkable Andrew (1942)
Night Plane from Chungking (1943)
Dark Mountain (1944)
The Impostor (1944)
That's My Baby (1944)
Isle of the Dead (1945)
China Sky (1945)
Crime Doctors Man Hunt (1946)
Sing While You Dance (1946)
Johnny O'Clock (1947)
O Espadachim (1948)
The Man from Colorado (1948)
The Crooked Way (1949)
Cargo to Capetown (1950)
Davy Crockett, Indian Scout (1950)
Stars in My Crown (1950)
The Baron of Arizona (1950)
Man in the Saddle (1951)
The Great Missouri Raid (1951)
Outlaw's Son (1957)   

Fontes: http://www.malustudio.com; Zura!
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As cabeças rolantes

E ninguém fala dos estudantes tchecos. Quando os jovens da França começaram a virar carros, a arrancar paralelepípedos e a incendiar a Bolsa — as manchetes se assanharam, em todos os idiomas. Ninguém entendia nada.

A primeira Revolução Francesa fora nítida e profunda. Derrubou-se a Bastilha, decapitou-se Maria Antonieta e instalou-se o Terror. Mas sabíamos por que as coisas aconteciam e por que rolavam as cabeças. Mas a recente agitação estudantil teve um defeito indesculpável: — faltou-lhe o Terror.

O mundo ainda faz a pergunta sem resposta: — "Onde estão as cabeças cortadas?". Simplesmente, não estão, nem houve. Ninguém decapitou ninguém. E, como não havia gasolina, ninguém morria, nem atropelado.

Pode-se dizer que nem tudo se perdeu no caos estudantil. Eu diria que se salvaram algumas frases. Fala-se muito da prosa francesa. E, de fato, as maiores bobagens ditas em francês têm um insuperável requinte estilístico.

Além de arrancar a capa de asfalto e pôr fogo nos carros, os estudantes faziam as belas frases. Uma dela dizia assim: — "É proibido proibir". Houve um dia em que todos os muros parisienses não diziam outra coisa. Por toda a parte, o berro vital: — "É proibido proibir".

E todos os fatos eram possíveis. Numa assembléia de estudantes, levantou-se um barrigudo: — "Quero falar. Sou um capitalista". Um jovem líder se levanta: — "Fala o camarada capitalista". E o gorducho disse ao que veio. Em seguida, o poeta Aragon pede a palavra. Um estudante diz: — "Aqui, qualquer um pode falar, inclusive o último dos traidores". Aragon é stalinista e, como tal, o último dos traidores, não só da França, não só da poesia, como da própria pessoa humana. Falou, como o camarada canalha.

Naturalmente, vocês querem saber qual figura fez Sartre no lírico tumulto daqueles dias. Ah, Sartre, Sartre! Quando o filósofo esteve no Brasil, o nosso papel foi, se me permitem dizê-lo, meio indigno. Sim, os nossos intelectuais se comportaram como se fôssemos a mais deprimente subcolônia espiritual. Fui ver uma de suas conferências.

Quando ele apareceu, a platéia só faltou lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. E foi aí que eu descobri que há, sim, admirações abjetas.

Mas o francês não admira outro francês com esse estupor. E os estudantes de lá trataram o filósofo de alto a baixo. Quase não houve conversa. A rapaziada ouvia Sartre com irônica indulgência. Por fim, o gênio levantou-se, humilhadíssimo; disse: — "Vocês têm mais imaginação do que eu". Saiu de lá trôpego e derrotado. Os jovens o enxotaram e assim começou a solidão de Sartre.

Mas a grande frase da quase Revolução Francesa foi mesmo a do general De Gaulle. O velho herói parecia um mito exausto. A jovem massa levava cartazes assim: — "Fora De Gaulle", "De Gaulle Assassino", "Morte para De Gaulle". O general estava fora do país. Sim, o mito passeava. Quando voltou à França, declarou para o seu povo: — "Eu sou a Revolução!". Foi um espanto mundial. E todos sentiram que De Gaulle era o último "eu" do século. Olhem o nosso mundo, virem e revirem a nossa época. Não há outro "eu". E o herói setuagenário parece um momento da insânia humana. Só um louco, em sua danação, pode-se julgar um "eu".

Nem precisamos ir tão longe. Vamos olhar o Brasil.

Antes, porém, de falar do Brasil, quero lembrar os versos que Rainer Maria Rilke escreveu para o próprio túmulo. Só me lembro de um momento do epitáfio. É quando diz o poeta que o morto sente "a volúpia de ser ninguém". Aí está o mistério da nossa época. Fora um insano, como De Gaulle, que se imagina "eu ", não há mais as fortes e crispadas individualidades, que ofendiam e humilhavam os demais com a sua dessemelhança genial.

Mas deixemos de lado os outros países e os outros homens. O que me interessa é o Brasil, é o brasileiro e, em especial, o nosso teatro. Sempre digo que só os profetas enxergam o óbvio. O que eu chamo de óbvio é este fato: — o teatro brasileiro acabou antes de começar.

Na altura de 1940, sentiu-se aqui uma enorme tensão criadora; e cheguei a pensar que ia nascer a nossa tragédia. Toda uma geração de autores, diretores, atores parecia saturada de potencialidade. Essa plenitude durou pouco. De repente, estancou o processo teatral. Falei do "nascimento da tragédia" no Brasil. E o que aconteceu foi espantoso: a "tragédia brasileira" ainda não nasceu e já está decadente. Entendem? Decadente antes de nascer. Todo o maravilhoso ímpeto inicial se esvaiu e se corrompeu no show idiota.

Mas há pior e, repito, há pior. O show ainda tem uma relação com o teatro. Acontece que os diretores, autores, atores e atrizes abandonam o palco. Cabe então a pergunta: — e onde estão eles? Cada qual assume a forma impessoal, numerosa e irresponsável da assembléia, do comício, da comissão, do manifesto, da passeata e da unanimidade. Só agimos, só sentimos, só amamos e só odiamos em massa.

Sim, estamos todos massificados. E cada um sente, como no epitáfio de Rilke, a volúpia de ser ninguém. O sujeito se dissolve na passeata, na assembléia, na unanimidade. E ninguém faz as coisas simples e profundas que o teatro exige.

Em vez de realizar o Hamlet ou A dama das camélias, a classe desfila da Cinelândia à Candelária. E basta.

E, por isso, dizia eu que o teatro está morto no Brasil. Morreu a partir do momento em que nos politizamos.

Felizmente, a nossa traição ao "drama brasileiro" tem nobilíssimas razões e, eu diria mesmo, razões sublimes. Não escrevemos peças, nem as representamos e, tampouco, as dirigimos. Em compensação, salvamos o Vietnã e, ao mesmo tempo, resolvemos o problema da fome mundial. Dirá alguém que a fome do homem resistiu a Cristo, Buda, Alá, Maomé, Marx, Freud. Mas os citados falharam, por azar, inépcia, incompetência, má-fé, corrupção.

O que não acontece com a Classe Teatral. Bem me lembro da nossa última assembléia.

Enquanto vociferávamos, o Pentágono foi surpreendido a ouvir-nos, atrás das portas; e do seu lábio vil pendia a baba elástica e bovina da pusilanimidade.
[26/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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