quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Os noivos

Tinha eu sete anos. Não havia ainda o Poder Jovem e, pelo contrário, o Brasil estava cheio de setuagenários natos. Muitos nasciam com cinqüenta, sessenta, setenta anos. Por exemplo: — Rui Barbosa. Nasceu de fraque e já conselheiro.

Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável. Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez.

Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo. E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha.

A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.

Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes).

D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — "Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!".

Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal.

Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.

Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — "A mais antiga das profissões". Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.

Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a "Pasionaria" do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — "E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?". Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou "quarenta anos antes do Nada".

Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — "Muerte" a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. "Muerte", portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes.

Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.

Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro.

E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. "O que não respeita nem as cunhadas" começou, às gargalhadas: — "Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?".

Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — "Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual".

Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — "Então, melhor. Não precisam comprar nada".

Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — "Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores".

Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — "Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?".

Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — "Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!".

Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — "E o pior é o sindicato!". Atracado no telefone, fez um comício: — "Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E o problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!".

E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — "Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser  contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!".

Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — "Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto".

O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade.

E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — "Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias".

[18/7/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Teatro de Revista - Parte Final

Parte Final: O Luxo e a Decadência

"Depois de largo período de entrosamento com o samba, o Teatro de Revista se volta para o luxo e abandona a faceta de lançador de sucessos, até que a censura e a televisão o levam à decadência."

Manuel Pinto foi um dos empresários mais bem sucedidos do teatro de revista, no início do século. Coube a Walter Pinto herdar o gosto do pai pelo negócio, fazê-lo crescer e tornar-se um dos mais ricos produtores do setor. Para isso, contribuíram alguns fatores que acabaram por influir na própria cultura popular carioca e, mais remotamente, brasileira.

A fim de ganhar mais dinheiro que o pai, Walter Pinto ousou mais. Investiu, procurou caminhos diferentes, modificou esquemas e teve êxito. Quem se deu mal nesse contexto foi o samba, a médio prazo.

Ao assumir, o novo empresário decidiu que ninguém teria mais destaque que ele em seus espetáculos. Assim, durante anos, uma enorme fotografia sua aparecia no cartaz do teatro e nos anúncios dos jornais, garantindo: Walter Pinto apresenta. E seguiam-se os nomes (sem fotografia de ninguém) dos mais famosos artistas do teatro de revista, em ordem de importância, as vedetes, os comediantes, as modelos, as atrações. Com isso, criou sua marca registrada.

As pessoas não iam ao teatro ver esse ou aquele artista; iam ver um espetáculo de Walter Pinto, o que era sinônimo de qualidade. Ao menos da qualidade que seu gosto passou a impor, modificando inteiramente o conceito de se fazer revista, vigente até os anos 40. Da mesma forma que a Ba-Ta-Clan e outras companhias de revista européias mudaram o formato revisteiro no princípio do século, Walter Pinto voltaria a fazê-lo, nesse momento de transformação.

A diferença foi que, na primeira reviravolta, o samba ganhou espaço para se apresentar. O talento das estrelas estava centrado nas vozes e interpretações, embora a beleza das pernas e demais atributos físicos fossem também da maior importância. Mas, quem não cantasse bem, não se escorasse em um bom samba inédito a cada estréia, teria carreira curta e dificilmente chegaria ao estrelato.

Luxuosa montagem de Walter Pinto, anos 40
Uma das primeiras luxuosas montagens de Walter Pinto, no Teatro Recreio, no Rio de Janeiro, anos 40.
Com o advento da era Pinto, tudo mudou, O eixo do talento foi transferido, o essencial era a beleza física e, principalmente, o desembaraço no trato com o público. Para ser vedete, era fundamental o jogo de cintura, que permitia enfrentar o chamado “número de platéia”. Nele, a atriz, em trajes mínimos, depois da breve introdução de um assunto malicioso, dialogava com a platéia e tinha que ter a necessária rapidez de raciocínio para responder, quase sempre com duplo sentido, a quaisquer perguntas, sem se deixar embaraçar, expondo o espectador ao riso dos demais. Se cantasse um pouquinho, já estava bom. Samba, nem pensar!

Em termos cenográficos, as inspirações eram importadas dos grandes shows da Broadway e dos cassinos de Las Vegas, nos Estados Unidos. O Follies Bergère e o Lido, parisienses, também eram fontes de informações para espetáculos estruturados em monumental aparato, procurando imitar os musicais que Hollywood produzia e distribuía para o mundo.

Com o êxito financeiro, Walter Pinto viajava com freqüência para o exterior, onde, além de comprar luxuosas fantasias para seu guarda-roupa cênico, contratava coristas e vedetes de rara beleza e tipos físicos bastante diferentes das brasileiras, criando forte aura de curiosidade e desejo ao redor delas.

Francesas, inglesas, americanas e, mais modestamente, argentinas eram vistas em geral nas leiterias da praça Tiradentes, antes e depois dos espetáculos, como se estivessem com tranqüilidade em Picadilly Circus, na Broadway, em Pigalle, ou na Avenida Corrientes. Duas brasileiras, porém, conseguiram atravessar a cortina de seda das estrangeiras e marcar seus nomes como as mais importantes vedetes dos meados do século.

Em 1944, Walter Pinto estreou no Teatro Recreio, a revista Momo Na Fila, de Geysa Bôscoli e Luiz Peixoto. A estrela era Dercy Gonçalves, mas, lá atrás, nas últimas fileiras das coristas, alinhava-se uma paraense loira e linda, recém-chegada ao Rio de Janeiro, desquitada e com filhos, cujo primeiro emprego foi-lhe dado pelo empresário Pinto. Na carteira de trabalho, o nome Osmarina Colares Cintra. Em muito pouco tempo, transformou-se em Mara Rúbia (foto logo acima neste artigo), nome que passou a ser escrito em destaque, com luzes, na marquise do mais famoso teatro de revista do Brasil. Mara Rúbia, durante anos, foi apontada pela metade do país como a maior vedete brasileira.

A outra metade tinha favorita diferente. Uma que contava com as preferências de ninguém menos que Getúlio Vargas, presidente da República, que assistia a todas as revistas do Recreio e tinha pendor especial por Virgínia Lane (foto ao lado), a quem deu o apelido que ela adotou para sempre: a Vedete do Brasil. Procedente dos cassinos, tarimbadíssima no “número de platéia”, a pequenina Virgínia tinha tal presença em cena que parecia crescer a quase um metro e oitenta e ombrear-se com as espigadas coristas que Walter Pinto importava do outro lado do mundo, mas que acabavam por servir apenas de moldura à baixinha, dentucinha, mas talentosíssima estrela do Recreio, de mais ou menos 20 anos.

Já não havia definitivamente espaço para o samba, no teatro de revista. Quando um ou outro aparecia, era simples repetição de sucesso já ditado pelo rádio ou alguma paródia política que usava a música de um deles em voga, para criticar alguma coisa ou alguém. Nunca mais um samba inédito foi lançado em um palco do teatro de revista, que agora se refestelava na grandeza e no luxo das bem-cuidadas cenografias, dos guarda-roupas deslumbrantes e na sensualidade de mulheres belíssimas, das quais a arte de cantar era o que menos se exigia.

Enquanto a concorrência à revista se limitou aos shows das luxuosas boates cariocas, da ainda capital da República, confinando-se aos pequenos palcos do Golden Room do Copacabana Palace Hotel, das boates Casablanca, Night and Day, Montecarlo, Fred’s e congêneres, Walter Pinto reinou absoluto na praça Tiradentes, de onde saía para incursões por São Paulo, Belo Horizonte ou Porto Alegre, deixando espaço, por pouco tempo, para companhias menores.

Mas, quando a censura política amordaçou os comediantes do teatro de revista, abrindo as portas para a pornografia explícita, e a televisão roubou-lhe os elencos, pagando melhor, ele, praticamente, encerrou as atividades e com elas um período marcante, que, a partir daí, foi só decadência.

Fonte: História do Samba - Editora Globo; http://teatrobr.blogspot.com
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Teatro de Revista - Parte V

Aracy Cortes estréia sua própria companhia em 1931, na praça Tiradentes.
Praça Tiradentes e o teatro de revista

Centro nervoso dos teatros de revista do Rio de Janeiro, a Praça Tiradentes atraía compositores, músicos e cantores, à procura de emprego para seus talentos, nos muitos palcos iluminados, que faziam a cidade sonhar e cantar.

Nos anos 20 e 30, com a popularização do teatro, em particular as revistas, os “musicais”, o cenário teatral no Rio de Janeiro, antes sem oferecer nenhum conforto e com poucas opções de diversão melhorada, se vitaliza. As casas de espetáculo não somente se multiplicam pelos vários espaços centrais da cidade, como se vão adequando aos novos estratos sociais emergentes, principalmente as classes médias.

Dentro desse contexto, a Praça Tiradentes e seu entorno constituíram-se em um dos privilegiados locais para divulgação e circulação dos artistas – em especial, músicos, compositores e cantores – do período. Além de dos teatros João Caetano, Recreio, São José, Carlos Gomes, entre outros, onde se concentravam aqueles profissionais, bares e leiterias também representavam lugares de atração e de encontro para os que buscavam na praça uma oportunidade para exercer profissionalmente seus talentos.

Os mais procurados eram a Leiteria Dom Pedro II e o Café Carlos Gomes, onde hoje existe o Café Thalia, pontos de reunião de compositores como Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito, Wilson Batista, Henrique de Almeida, Roberto Martins, Bidê, Marçal, Jorge Faraj, Ataulfo Alves, Antonio Almeida e tantos outros.

Sabiam eles que, a qualquer momento, poderia surgir a chance de um trabalho ser aproveitado em uma das muitas revistas que eram encenadas nos teatros da praça. Custódio Mesquita, Ary Barroso, Sinhô, André Filho, Francisco Matoso já tinham se consagrado por ali e de repente a sorte poderia aparecer. No caso de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, jamais conseguiram participar das revistas, mas acabaram por se encontrar nos bares da praça e formar uma das mais importantes parcerias da música popular brasileira.

A maioria dos cantores e compositores “ainda do time de aspirantes” freqüentava a Praça Tiradentes, uma espécie de vestibular. Depois de famosos e ganhando dinheiro para pagar elegantes alfaiates, já bem-sucedidos, transferiam-se para o Café Nice ou para o Café Papagaio, ao lado da conceituada Confeitaria Colombo.

Enquanto isso não acontecia, a solução era enfrentar as xícaras de café com leite nos botequins da Praça Tiradentes, compor os sambas em suas mesas, com tampo de mármore e pé de ferro, e aguardar que o sucesso os viesse resgatar dali. Ou que o próprio teatro de revista se encarregasse de os fazer famosos.

Fonte: http://teatrobr.blogspot.com/
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