segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Mirinho e a leviana

Tem mulher que a gente, por mais que a conheça, não entende suas reações.

Tínhamos uma namorada, no tempo em que o Dr. Getúlio era considerado o salvador da pátria, que um dia brigou com a gente porque esquecemos de elogiar seu vestido novo. Anos depois, em circunstâncias muito mais amenas, confessou o seu desespero, ao notar que aceitáramos a briga e não déramos mais sinal de vida.

Houve uma outra que, bastava nos ver contente, amável, dedicado ao seu lado, para começar a entortar a situação. E parecia satisfeita, quando — num arroubo de incontida machidão — pedíamos o nosso boné e sumíamos de sua vista.

Aí ficava desesperada, telefonava chorando e muitas e muitas vezes, na noite da reconciliação, pedia que tivéssemos paciência com ela, que a compreendêssemos, etc., etc.

A gente compreendia uns tempos, e lá vinha a desajustada com os mesmos golpes.

Dessa, como de muitas outras, o homem cansa. Na sua última falseia mandamos um presente desses de derreter "vedette" e fomos apanhar perereca em outros brejos.

Amigos comuns cansaram de tentar uma reconciliação que, só de pensar, nos provocava um tédio profundo. Ela ficou a tentar mil e um pequenos golpes, na esperança de recuperar toda uma situação que desfrutou sem precisar de golpe nenhum e hoje não desfrutará mais, nem com um grande golpe, amparada pelas Forças Armadas e os novos marechais de pijama.

"Mulher é um caso sério" — costumava dizer Gumercindo Ponte Preta, pai de Mirinho. E, não raro acrescentava: "Mulher é bom para quem tem muitas". Já Altamirando é um predestinado. Faz tanta sujeira com mulher, que elas acabam, indefectivelmente, passando o primo para trás.

Ultimamente ele arranjou uma namorada que parece adorá-lo. Ao menor aceno, ela aparece dócil, carinhosa, amante.

Mas resolveu passar o primo pra trás aos sábados. Diz Mirinho que é batata. Já fez a experiência diversas vezes. Todo dia ela topa, mas aos sábados inventa que tem que ir ao aniversário de uma tia. Como não acreditássemos nessa fatalidade sabatina, no último sábado fez a experiência em nossa frente. Antes já havíamos constatado o amor da pequena por Mirinho...

No sábado ele telefonou e convidou para um programa dos mais aceitáveis. Ela murmurou de lá que era uma pena, mas a tia fazia anos e ela tinha que ir à festinha.

— Essa tua tia já deve estar com uns 180 anos — protestou Mirinho. Ela desconversou, gaguejou um pouco e — para provar mais uma vez que mulher é bom para quem tem muitas — manteve a recusa. Iria ao aniversário da tia.

— Tá certo — exclamou Mirinho; e com aquele seu cinismo habitual: — Faço votos para que sua tia seja muito feliz e esta data se reproduza por muitos e muitos sábados.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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Caça-níqueis

Passo na redação e apanho um bilhete de Playboy, a revista de nus. Viro, reviro o envelope. Ai de nós, ai de nós!

Tudo que tenha um vago sotaque norte-americano já exala o terror.

Finalmente, tomo coragem e abro o envelope. Era uma meia dúzia de linhas. Simplesmente, o correspondente de Playboy queria, de mim, um favor de colega para colega.

Pedia, em suma, informações urgentes sobre "Palhares", o brasileiro ilustre que surpreendera o país com seus métodos originais e revolucionários de educação sexual. Playboy queria biografia, o nome completo, idade, estado civil etc. etc.

Li e reli, na mais absurda das perplexidades.

Eis o que me perguntei: — "Palhares, que Palhares?".

Por um desses lapsos fatais, não me lembrava de ter conhecido, aqui ou alhures, em passado recente ou longínquo, nenhum Palhares. Seria Tavares? Eu conhecia um Tavares. Mas esse Palhares que, de repente, invadia a minha vida era o desconhecido total, jamais visto, jamais cumprimentado. O bilhete dava, embaixo, no canto da página, um número de telefone. Liguei. Por sorte, encontrei o diabo do correspondente.

Disse-lhe a feia e humilhante verdade. Não conhecia nenhum Palhares, vivo ou morto. O colega internacional não queria acreditar. Mas como, se, no momento, o Palhares é o nome obsessivo, a figura obrigatória? Só se falava no Palhares.

Toda a cidade repetia os feitos do Palhares, as anedotas do Palhares, as piadas do Palhares.

Saí do telefone humilhadíssimo. Numa amargura medonha, pensava na idéia que a Playboy faria de mim, o único brasileiro que desconhecia o Palhares!

Vejam como são as coisas. Horas depois, estou, num boteco, tomando cafezinho em pé, quando se irradia uma luz de minhas profundezas e eu descubro a verdade jamais imaginada. O misterioso Palhares era simplesmente o Palhares. Eu o conhecia, sim, e de longa data; e mais: — eu o vira de calças curtas, roubando goiabas. Coisa de espantar:

— o Palhares era um sobrenome. O seu nome por extenso é uma maciça impossibilidade. Ele próprio o diz: — "Desde garotinho, sempre fui Palhares, e só Palhares!".

Nada quer ser mais além de Palhares. De mais a mais, o nosso herói é conhecidíssimo do leitor. Várias vezes, aqui mesmo, nesta coluna, narrei o seu maior feito. Se vocês não se lembram, posso repetir. Eis o episódio: — certa vez, o Palhares cruza com a cunhada no corredor. Não diz nada. Segura a mocinha e dá-lhe um beijo no pescoço. Ali, inaugurou-se um novo canalha.

Não sei por inconfidência de quem, a torpeza espalhou-se. E quando o Palhares passava, havia o cochicho estarrecido: — "O que não respeita nem as cunhadas!".

Vivemos uma época tão surpreendente que a vil audácia foi de uma prodigiosa e fulminante eficácia promocional. Todas as portas se abriram para o canalha. No emprego, por coincidência ou não, o chefe aumentou-lhe o ordenado. Certa vez, fui a um aniversário. Estava lá o Palhares. Tão cínico que, a um canto, perto da janela, cheirava uma camélia. Não era camélia, mas vá lá. E lembro-me que uma senhora gorda, abanando-se com uma Revista do Rádio, suspirava: — "Adoro o Palhares!". Dizia isso e tinha, no pescoço, um colar de brotoejas. Em outra ocasião, entrei no Antonio's e o vejo com um vasto embrulho debaixo do braço. Pergunto: — "Que é isso?". E ele, com ardente seriedade: — "O Cristo!". Em seguida, desembrulha e mostra o retrato de Guevara.

Lá estava o guerrilheiro, de boina, a cara virilizada por uma barba crespa. Guevara era o Cristo.

Chamo o canalha para um canto. Digo-lhe: — "Rapaz, a piada tem limite". Ele refaz o embrulho, amarra o barbante e se justifica: — "A cruz não dá mais nada. É preciso, de vez em quando, mudar de Cristo". Olha para os lados e baixa a voz: — "Este retrato é uma mina. Convido as meninas para ver o Guevara no meu apartamento. Tiro e queda. Vai por mim: — é o verdadeiro Cristo. Esse negócio de amar o próximo é uma laranja chupada. Não pinga mais nada". E, no fim, deu-me o conselho:

— "Você tem de ser socialista. É o golpe".

Mas nunca me ocorrera, nem como hipótese suicida, que, um dia, o Palhares viesse a explodir como o revolucionário da educação sexual.

Bati o telefone: — "Escuta, Palhares. Que negócio é esse de professor? E de educação sexual ainda por cima?". Fiz-lhe mesmo a pergunta contundente: — "Desde quando deixaste de ser analfabeto?".

Sendo um canalha, o Palhares tem uma virtude admirável: — não reage. Achou uma graça saudabilíssima. Inicialmente, foi de um luminoso impudor: — "Continuo o mesmo analfabeto, o mesmo. Não leio nem manchete".

Fiz a pergunta impaciente: — "Mas qual é o teu colégio?".

Ao ouvir falar em colégio, Palhares soltou uma gargalhada de se ouvir no fim da rua: — "Colégio? Me achas com cara de colégio?".

Eu já não entendia mais nada. Já o canalha explicava: — "Faço educação sexual a domicílio. Percebeste? A domicílio".

Em todas as suas palavras, inflexões, pontos de vista, sentia-se o bem-sucedido total: — "Podes chamar-me de analfabeto. E eu sou analfabeto com muita honra. Mas escuta: — ninguém precisa do bê-a-bá para ensinar educação sexual". Conversamos duas horas.

Afirma o Palhares que nós tivemos sorte de nascer na presente época. "Os novos tempos são tão gigantescos que a gente pode dizer tudo, fazer tudo, pensar tudo."

Quase me despedindo, fiz uma amarga ironia: — "Resumindo, qual é o conselho que você me dá?".

Fingiu modéstia: — "Quem sou eu pra te dar conselhos?".

Insisti. E, então, o canalha tira um pigarro, coloca a voz e diz, gravemente: — "Seja o ex-católico. No momento, é o que dá mais. O ex-católico tem todos os trunfos na mão".

Aquilo deu-me um novo e agudo interesse pela conversa. Eu já queria crer que certas coisas, certas verdades, exigem um canalha para dizê-las.

Pergunto: — "Que história é essa de ex-católico?".

O nosso Palhares foi preciso: — "É o seguinte. Repara. Há uma colossal maioria católica. Não há? É o óbvio". E continuou. Segundo ele, não adianta nada ser "maioria". Quem tem o poder de decisão, e o exerce furiosamente, é uma pequena minoria de ex-católicos. O Palhares cita como exemplos de ex-católicos o dr. Alceu e d. Hélder. Ah, os minoritários como influem, como decidem, como agitam. E a maioria católica está aí, por todo o Brasil, aturdida, acuada, humilhada.

Ouvi o Palhares sem interrompê-lo.

Terminou com uma profecia jucunda: "Toma nota. Escreve o que te estou dizendo. Ainda seremos o maior povo ex-católico do mundo".

[19/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O cinzeiro azul

O homem, para justificar a si mesmo, ou para justificar a mulher, inventou a máxima: a mulher só engana o homem por causa dele.

Que seja ou que não seja. Não estamos aqui para desbaratinar os casos de amor dos outros.

O fato é que estes dois estavam brigados. Ela tinha enveredado aí pelo lado alegre da vida, enfiando o braço noutro braço, em passeios e namoros que um dia vieram a ser do conhecimento dele. Brigaram. Lágrimas de parte a parte: as dela de arrependimento, as dele de sentimento.

Mas não quis perdoar. Um recente samba de Jorge Veiga diz assim: "O que você fez está feito, não me sinto no direito de lhe conceder perdão". O samba é bom e não sabemos se ele o conhecia. Sabemos — isto sim — que agiu como está no samba. E cada um foi para seu lado, depois de alguns anos lado a lado nas coisas de amor.

Passou a primeira semana, e ele firme. Não telefonava, não passava nos lugares onde ela pudesse estar, evitava falar no assunto mesmo com os amigos mais íntimos. Passou um mês e ele legal. Fazia força para convencer a si mesmo que já estava passando a fase aguda da dor de cotovelo, cujo único remédio é o tempo... e o tempo, irmãos, é remédio de laboratório homeopático.

Uma tarde o telefone tocou. Era ela. Fingimento de parte a parte e vem a pergunta que ele não queria ouvir: "Você sente muito a minha falta?" Engoliu em seco e não mentiu:

— Vamos que eu tivesse ganho, quando tinha menos 10 anos, um cinzeirinho azul. Durante todo esse tempo, o cinzeirinho azul esteve na minha mesa de cabeceira. Agora o cinzeirinho azul quebrou. Eu vou sentir falta dele. Pois, se até com um objeto a gente se acostuma, como é que eu não vou sentir a falta de quem era o meu amor?

Ela gostou de ouvir aquilo e, timidamente, como as mulheres fazem sempre, propôs a reconciliação. Ele agüentou firme, explicando que, depois de partido, o cinzeirinho azul estava acabado. Não adiantava colar, porque já não seria a mesma coisa.

Foi então que ela disse: "Mas vamos que você sentisse falta do cinzeiro porque ele sumiu, alguém roubou, ou qualquer coisa assim. Agora por uma coincidência qualquer, você torna a encontrar o cinzeirinho azul".

...e o bestalhão voltou.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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