quarta-feira, 12 de outubro de 2011

As duas cabeças

Sou um profissional de velhas gerações. Mas a "jovem revolução" está aí. E quero crer que, em futuro bem próximo, eu e o Carlos Tavares seremos dirigidos pelas estagiárias do Jornal do Brasil. Imaginem vocês uma imprensa de meninas.

E a redação será uma paisagem de bordados, de tapete, com ninfas, ou sílfides, sei lá, bebendo em cascatas artificiais.

Fiz este comentário parnasiano e já mudo de tom. Eis o que eu queria dizer: — três vezes por semana, sou atropelado por uma estagiária. É uma fatalidade. Não atendo telefone, fujo, não estou, não volto mais. Mas a estagiária é invencível. Acaba por me descobrir, e nas horas e locais os mais surpreendentes.

Outras vezes sou eu próprio que, por fraqueza de caráter, ou por indulgência de velho, as atendo. Foi o que aconteceu ontem.

Bateu o telefone e o contínuo me avisa: — Jornal do Brasil. Tinha de ser uma estagiária. Eu podia ter dito como de outras vezes: — "Não estou" ou "Estou no café".

Mas ontem era um dia excepcional e crudelíssimo. Pela manhã, o jornaleiro me assombrou: — "Mataram Kennedy". Por um momento, não soube o que pensar, o que dizer. Quase perguntei: — "Outra vez?". Os dois fatos estavam justapostos na minha cabeça: — Bob e John. Eu já não sabia se eram dois ou um só. Se era o presidente que morria novamente, e não mais no Texas, agora em Los Angeles. O jornaleiro, numa gloriosa excitação, arqueja: — "O rádio está dando! O rádio está dando!".

Não era ainda a morte. Bob Kennedy apenas agonizava. Talvez não morresse. Vim para a cidade já desesperado. E, no Centro, fui ouvindo por toda a parte: — "Um tiro na cabeça".

Se fosse no coração, ninguém diria "um tiro no coração". Mas o assassino de um Kennedy e o assassino do outro Kennedy quiseram a cabeça. Vocês entendem? Quiseram estourar o cérebro.

Como se o morto, morto apenas e ferido no peito, e continuasse pensando, pensando, cadáver pensando, enterrado e pensando, eternamente.

Portanto, era preciso parar a cabeça. Foi assim no Texas. De repente, Jacqueline viu, a seu lado, um marido sem queixo. O presidente era, sobretudo, o queixo forte, crispado, vital. E, agora, em Los Angeles, num hotel vagabundo (não seria hotel vagabundo. Mas a minha visão do crime exige o lívido corredor de um hotel vagabundo), um jovem jordaniano atira muitas vezes. E Bob Kennedy há de ter sentido, antes do medo, o espanto. No corredor, houve uma constelação de estampidos.

Foi, como queria o assassino, uma bala na cabeça.

Não sei por que estou repetindo o que todas as primeiras páginas já disseram e repisaram. Venho para a redação e sou chamado pelo Jornal do Brasil. De fato, era uma estagiária. Entre parênteses, acontece, entre mim e o velho órgão, uma coisa singularíssima. Quase todos os dias uma estagiária me entrevista. No dia seguinte: — não sai a entrevista. É espantoso, mas exato. Não sai, nem a tiro.

Eu opino sobre tudo, desde o Zé da Ilha no barraco, ao arquiduque da Áustria em Sarajevo. E a minha opinião não aparece. Digo as coisas mais ousadas, certo de que ficarão para sempre inéditas.

Naturalmente, o Jornal do Brasil havia de querer o meu ponto de vista sobre o crime. (E, decerto, como das outras vezes, não publicaria uma linha). Muito bem. Sento-me e apanho o telefone.

"Alô", digo. Uma voz feminina pergunta: — "Nelson Rodrigues?". Sou eu, sim. Há situações em que um homem, qualquer um, passa a ser um momento da consciência humana. Ao telefone, eu me sentia, exatamente, esse momento da consciência humana. Já imaginava uma frase. Ia dizer que todos os males pessoais e coletivos têm uma origem obrigatória: — o desenvolvimento.

O curioso é que responderia antes da pergunta; e diria então: — "A civilização é responsável por mais este crime que...". Mas não cheguei a falar. A estagiária falou antes: — "Nelson Rodrigues, eu queria a sua opinião sobre...". Esperei ouvir o nome do Kennedy. A menina continuou: — "Sua opinião sobre o jogo Vasco x Botafogo".

Estou trêmulo de espanto. Insiste, risonhamente: — "Qual é seu palpite?". Estou calado: — "Também queria um palpite seu sobre Flamengo x Bonsucesso, Fluminense x América" etc. etc.

Dei-lhe os palpites pedidos, que o Jornal do Brasil não vai publicar, absolutamente. Saí do telefone humilhado e ofendido. Pensava no dia em que eu e o Carlos Tavares estaremos sob as ordens das estagiárias. Bem, agora tentarei resumir o que não disse à jovem do Segundo Caderno. Vamos lá.

Há pouco tempo, vi um sacerdote afirmar com a ênfase de uma manchete: — "Paz é desenvolvimento". O sacerdote falava com a certeza forte de um Moisés de Cecil B. de Mille.

Disse "Paz é desenvolvimento" e acrescentou-lhe um patético ponto de exclamação. Eis o que eu diria à estagiária: — "Aí está uma opinião falsamente acaciana". Parece o óbvio, mas nunca foi e nunca será o óbvio.

Repito: — é o falso Acácio e o falso óbvio. Justa será a verdade inversa: — "O desenvolvimento não é a paz". Ou: — "O desenvolvimento é a guerra" ou, ainda, "O desenvolvimento criou a antipessoa". A estagiária não se espantaria, porque as estagiárias são insuscetíveis de espanto. E eu diria mais: — "O desenvolvimento é a agressividade, a angústia, a mania de grandeza, o ódio e, ainda, a guerra interna e externa, a mania homicida, o inferno sexual, a morte da alma".

As duas nações mais desenvolvidas do mundo, os Estados Unidos e a Rússia, estão sempre a um passo da guerra nuclear. Dizem, até, que um equívoco pode liquidar a vida e o homem. Falam da Suécia. Mas a Suécia é uma festa de suicidas. Na melhor das hipóteses o desenvolvimento é o tédio mortal. Agora, matam o segundo Kennedy. Dirá alguém que na Rússia não há crime político.

Ao que eu responderia: — só há crime político. Nos EUA, qualquer um mata. E, por trás da Cortina de Ferro, só o Estado mata. Só o Estado é assassino. Mas o que importa notar é a brutal solidão do homem desenvolvido. A feroz infelicidade. E as lesões de sentimento. E as trevas interiores que ninguém pode desafiar em vão.

Não sei quem disse, ou talvez ninguém tenha dito: — "O desenvolvimento é o demônio".

[7/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Caso do marido doido

Quando a mulher entrou em casa, vinda de um cabeleireiro que não tivera tempo de atendê-la, foi para surpreender o marido em flagrante... com a empregada. Era uma empregada nova (no emprego e na idade), admitida dias antes para o serviço de copeira e nunca — está claro — de cooperar.

Assim, surpreendida em afazeres que não eram os seus, a empregada soltou um grito. Foi ela a primeira pessoa ali naquela sala a dar com a recém-chegada (e, pior que recém-chegada... patroa) parada na porta de entrada.

O grito era um misto de espanto e terror e tão alto saiu, que o marido deu um pulo e caiu em pé, no meio do tapete, com uma perna só. A outra perna ficou no ar, suspensa, como que a aguardar os acontecimentos.

A cena durou uns cinco segundos, se tanto. Depois a copeira correu lá para dentro e os dois — marido e mulher — continuaram parados: ele ainda numa perna só, de olhos vidrados, sem mover um músculo. Aparentemente não respirava, sequer.

A primeira palavra que a mulher disse foi "francamente". A segunda foi "cretino". O "francamente" era num tom entre enojado e raivoso. E mais não disse porque o marido mexia-se, afinal. Trocou a perna que estava no ar pela que estava no chão e saiu pulando num pé só. Deu uma volta completa na sala e se dirigiu para a porta do corredor, rumo ao elevador.

A mulher ainda esperou que ele voltasse, mas quando percebeu a demora precipitou-se pelas escadas abaixo, já prevendo o que aconteceria. Ao chegar ao portão, ele já estava lá do outro lado da rua nuzinho, como Deus o fizera, sempre a pular como um saci.

Enlouqueceu, de certo. Tido e havido, há mais de dez anos, como um marido exemplar, ao ser surpreendido em flagrante com a empregada, o choque fora demasiado grande para ele... e enlouquecera. Claro que enlouquecera. Lá ia ele a pular, em direção à praça. Agora gritava a plenos pulmões:

—   Cauby! Cauby! Cauby!

Só doido mesmo. Ele detestava Cauby.

Em seguida mudou de grito. Passou a berrar:

—   Flamengo, Flamengo, Flamengo.

A mulher sabia que ele era Vasco e pensou consigo mesma que felizmente não havia ninguém na rua, com exceção de um gari que até há pouco varria os buracos da calçada e agora encostara a vassoura no muro e pusera as mãos nas cadeiras para melhor apreciar aquele estranho rubro-negro.

A mulher tentara em vão trazê-lo de volta para casa. Ele se desprendia de suas mãos e cada vez pulava mais alto. Somente o estribilho é que mudara. Agora gritava:

—   É o maior! É o maior! É o maior!

A mulher não sabia quem era o "maior", se Cauby ou o Flamengo. Detalhe — de resto — sem importância, diante da idéia de que dentro em breve chegariam outras pessoas, atraídas pelos gritos. Tinha que levá-lo de volta urgentemente. Apelou para o gari, mas este não estava muito propenso a se meter com doido.

—   Que é que o senhor está fazendo aí parado? — perguntou a mulher para o gari.

Nem o gari sabia o que estava fazendo na rua. Mesmo assim — por hábito — respondeu que sua função era de lixeiro. E a mulher, que trazia viva na mente a cena da sala, comentou:

—   Este homem não deixa de ser lixo também.

Graças a esta observação, o gari recolheu-o. Agora vinha mais calmo. Já caminhava direito e o acesso de loucura parecia ter passado, quando, no elevador, seguro pela mulher à direita e pelo gari à esquerda, começou a recitar Shakespeare em francês. Embora nu, segurava uma túnica imaginária e se dizia Marco Antônio:

—   Cétait le plus noble Romain d'eux tous. Sa vie fut noble, et les divers éléments étaient si bien mêlés en lui que la nature pouvait se lever, et dire à 1'univers entier: "Celui-là était un homme!"

Finalmente a mulher, o gari e Marco Antônio chegaram ao seu destino. A primeira deu uma gorjeta ao segundo e carregou o Imperador para o quarto, Imperador que já não era Marco Antônio, pois, contrariando a História Universal, fora substituído por César, a murmurar em tom de lamento:

—   Et tu Brutus! Et tu Brutus!

E a dizer estas três palavras ficou, até a chegada dos parentes. Todos, um por um, tentaram conversar com ele sem nada conseguir. Depois foi chamado um psiquiatra, o único que se fez ouvir e que, ao sair do quarto, aconselhou um mês de repouso num sanatório para doentes nervosos.

O marido foi, calado e triste. Um mês e pouco depois estava de volta, com uma recomendação expressa dos médicos para que, de modo nenhum, comentassem com ele o caso da empregada.

E, neste instante, deitado na cama, o marido, aparentemente distraído, pensa nos acontecimentos dos últimos tempos. Não há dúvida de que representara bem o seu papel de louco. Até os médicos foram na conversa. Mas, pouco a pouco, sua atenção é desviada para os movimentos da nova copeira que — inocentemente — espana os móveis. Já ia chamá-la suavemente pelo nome quando se lembrou que a mulher saíra para ir ao cabeleireiro e bem podia voltar antes da hora, caso não fosse atendida. Mesmo assim chamou a copeira e esta, quando já vinha vindo, recebeu ordem para trazer um café.

Quando ela saiu do quarto, respirou fundo e pensou:

—   Será que eu fiquei maluco mesmo?

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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A batalha do Leblon

Foi à noitinha, aí por volta das 20 horas, que a notícia correu pelas esquinas do Leblon, ganhou amplitude, espalhou-se pelo bairro e foi explodir como uma bomba na Delegacia de Polícia. Os bichos do circo armado perto da pracinha tinham picado a mula. Foi aí que começou a ignorância. O delegado não estava, é claro. O comissário também, é lógico, e a coisa sobrou na mão do prontidão.

—   Chamem a Polícia — berrou o infeliz.

—   Mas a Polícia somos nós — advertiu um outro guarda.

Refeito da distração, o prontidão começou a procurar seus superiores para saber como agir. À muito custo conseguiu telefonar para um primo da noiva do comissário e localizar o distinto.

—   Peçam uma patrulha do Exército — recomendou o comissário.

Pediu-se. Mas havia outras corporações disponíveis. E apelou-se para o Corpo de Bombeiros, para a Polícia Militar, Radiopatrulha e — ninguém até agora sabe explicar por que — um carro-socorro da Light.

—   Talvez seja para evitar curto-circuito no leão — disse um mulato magrela, com cara de gozador.

O elefante, segundo informações de um soldado desconhecido, seguira rumo à praia. Elefante, ao que se presume, não nada. Ou será que nada? O povo dava palpites e, como sempre, do povo saiu um mais bem informado pouquinha coisa, para dizer que na África nada sim, mas não era o caso deste, cujo se chamava Bômbolo, e que nascera num outro circo e nunca vira água a não ser em balde.

Já então havia uma multidão apreciando as manobras. A praça era uma das trincheiras, o Jardim de Alá era a retaguarda das tropas. Pela rua principal não passaria nenhum bicho que mata gente, salvo lotações, mas estes têm licença pra matar.

Um homem de porte marcial, com muito mais estrelas do que os outros, reclamava contra a demora do tanque. Sim, ele requisitara um tanque-de-guerra e isto começou a parecer ridículo a uns tantos e emocionante para outros. A preta gorda, que mal acabara de servir o jantar dos patrões, palpitou:

—   Só onça tem umas quatro.

Mas o garoto que estava perto desmentiu, dizendo que estava farto de ir àquele circo e nunca vira onça nenhuma. Foi quando chegou o tanque. Não sabemos se vocês já repararam que tanque-de-guerra no asfalto fica mais deslocado do que — digamos — mulher nua dentro de um elevador do Ministério da Fazenda. O povo começou a desconfiar, vendo o tanque manobrando, que a coisa ia ser mais cômica do que trágica.

—   O tigre foi pra Praia do Pinto — disse um crioulo.

—   Pra Praia do Pinto vai nóis que semo teso — retrucou seu companheiro, que usava camisa de meia e touca.

Nessa altura apareceu correndo, lá do outro lado da praça, um soldado. Vinha acelerado e parou na frente do homem que tinha mais estrelas do que os outros. Fez uma continência legal e avisou que não havia elefante na praia. Imediatamente recebeu ordens de ir pelas casas avisando para que todo o mundo trancasse as portas por causa dos leões.

—   Manda espiar primeiro se o leão já não entrou, senão é fogo na jacutinga, trancar porta com leão dentro — gozou o mulato.

O soldado explicou que não era preciso, porque não tinha leão. Nem leão, nem tigre, nem onça. Apenas um "popótis".

—   Hipopótamo — corrigiu o que tinha mais estrelas do que os outros.

Então — já conhecido o inimigo — começou o cerco ao "popótis". Dos que estavam nas proximidades, poucos sabiam o que era um hipopótamo. Uns diziam que era maior do que elefante, outros diziam que era menor, mas muito mais feroz. E nessa troca de impressões ficaram até que surgiu um outro soldado que, vindo correndo em diagonal pela praça, bateu continência e disse pro de mais estrelas:

—   O "popótis" se rendeu-se.

—   Hipopótamo — voltou a corrigir o chefe, deixando passar a abundância de pronomes.

Soube-se que, realmente, o hipopótamo fora localizado dentro de um jardim, numa residência grã-fina, comendo girassóis. E logo depois apareceu na esquina o dono do circo, puxando um bicho que não era muito maior que um cachorro dinamarquês e que o acompanhava de passo pachorrento. Decepção geral, inclusive dos soldados, preparados para mais uma batalha que, como tantas outras, não houve.

—   Ainda por cima o bicho come flor — disse a preta gorda.

—   Come flor sim, uai! — explicou o de touca. — Então tu não sabia que "popótis" é veterinário?
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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