segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Os primeiros clubes de futebol

Os clubes pioneiros deixaram o campo faz tempo. Um deles, o Paulistano, tem uma façanha que até hoje nenhum outro paulista igualou. Ao lado o escudo do Spot Club Rio Grande, da cidade de Rio Grande, RS, considerado o clube de futebol mais antigo do Brasil.

São Paulo Athletic Club

SPAC com Charles Miller no centro (1905)
Os primeiros campeonatos disputados no Brasil tiveram um único dono: o São Paulo Athletic Club, time que congregava os britânicos que residiam na capital paulista.

Com Charles Miller à frente, o clube conseguiu se sagrar tricampeão entre 1902 e 1904. adquirindo a posse definitiva da Taça Casimiro da Costa. a primeira da história do futebol brasileiro.

Nos campeonatos paulistas que se seguiram, acabou a moleza para os "ingleses". Só em 1911 o time voltou a ganhar o campeonato. Ganhou, mas não levou. O Palmeiras (nenhuma relação com o alviverde de hoje) se recusou a passar a taça para o vencedor, alegando ter sido prejudicado numa das partidas.

O clube dos ingleses resolveu então abandonar as disputas oficiais. "Não apenas por causa da bagunça, mas também porque os ventos sopravam para o profissionalismo", explica John Robert Mills, diretor e historiador do São Paulo Athletic. "Mas o maior orgulho do clube foi ter introduzido o futebol no Brasil".

Associação Athletica do Mackenzie College

Quando os alunos e professores do Mackenzie decidiram chutar a bola de basquete, resolveram também fundar um clube dedicado especificamente ao futebol. Assim surgiu, em 1898, o primeiro clube de brasileiros e para brasileiros. Apesar de vitórias esporádicas, o Mackenzie nunca foi campeão de nada. A não ser, talvez, de elegância. O uniforme do time era camisa vermelha, calção e gravata brancos.
   
Club Athletico Paulistano

O Paulistano foi fundado em 1900 para que a fina flor da sociedade paulista pudesse praticar o ciclismo. Não tardou, porém, que os jovens associados descobrissem os atrativos do futebol. E foi o Paulistano o clube mais glorioso do futebol amador.

Primeiro, acabou com a hegemonia dos ingleses ganhando o campeonato de 1905. Depois, conquistou o único tetracampeonato (entre 1916 e 1919) da história do futebol paulista. Sua fama se estendeu até o exterior, quando realizou uma excursão vitoriosa pela Europa, onde seus jogadores foram chamados de "os reis do futebol".

O primeiro time do Paulistano - 1902
Mas no momento em que o profissionalismo foi adotado no Brasil, o clube resolveu abandonar o esporte. Foram ao todo 11 campeonatos paulistas. Seus principais jogadores, entretanto, fundaram o São Paulo que, hoje. é bicampeão do mundo.

Sport Club Germânia

O Sport Club Germânia nasceu da firme decisão de Hans Nobiling de fundar um clube para que a colônia alemã pudesse praticar o futebol. Nos primeiros tempos, entretanto, a rotina da equipe foi a de permanecer na lanterna em todas as competições – apesar de contar com o futebol vigoroso de Hermann Friese, considerado um fenômeno na época.


Fundado em 1899, somente em 1906 o clube conseguiu o título de campeão paulista. O feito se repetiu em 1915, mas nesse tempo o futebol de São Paulo estava dividido em dois campeonatos distintos.

Com a reunificação em 1917, o Germânia esperava mostrar sua força. Entretanto, a Primeira Guerra Mundial declarada pela Alemanha fez com que o clube adotasse a prudente atitude de não se expor. Não disputou nenhum campeonato e abandonou o futebol paulista. A Segunda Grande Guerra também o obrigou a trocar o nome de Germânia para Pinheiros.

Mas quem é o primeiro?

Como o São Paulo Athletic e o Mackenzie abandonaram o futebol, a honra de ostentar o título de clube mais antigo em atividade no Brasil está entre a Ponte Preta, de Campinas (SP), e o Rio Grande, da cidade de Rio Grande (RS). Se valer a data, a primazia cabe ao Rio Grande, fundado em 14 de julho de 1900.

A Ponte Preta surgiu menos de um mês depois, no dia 6 de agosto. Mas os defensores da "Macaca" alegam que o clube de Campinas merece a honraria já que suas atividades futebolísticas jamais foram interrompidas, ao contrário do que aconteceu com o time gaúcho. Esta ainda é uma disputa sem vencedores.

Fontes: Revista Placar; S. C. Rio Grande; Wikipedia.
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O menino Kennedy

Vocês devem estar lembrados. Era um dia como outro qualquer, ou por outra, não era um dia como outro qualquer. E repito: — era um dia dramatizado pela greve do rádio e da televisão.

Dirá alguém que os jornais circulavam. Mas o tempo da imprensa é um e outro o das câmeras e microfones. Em jornal, o fato leva 24 horas para ser notícia. Ao passo que tanto o rádio como as TVs são fulminantes (mais uma vez, estou aqui proclamando o óbvio).

Eis o que eu queria lembrar: — Kennedy morreu e custamos a saber. Entre nós e a tragédia houve a greve. Um tiro arrancou o queixo presidencial. E, aqui, ninguém desconfiava de nada. Quando as extras saíram, Kennedy já estava no caixão, Johnson tomara posse, Jacqueline improvisara o luto de sua viuvez atônita. (Aliás, foi furada a greve do rádio e da televisão. Se não me engano, a Roquette Pinto estava no ar.

Mas o rádio educativo faz sua audição para surdos. Ninguém o ouve, ninguém, ou por outra: — só uma meia dúzia o ouve. E foi essa meia dúzia que saiu contando para os amigos, os familiares, os conhecidos; e assim, de boca em boca, a notícia tomou conta, paulatinamente, da cidade.

Todavia o silêncio do rádio e da televisão parecia humilhar, parecia desfeitear a catástrofe). Estou falando de Kennedy e de sua morte porque meu filho Joffre chegou de Nova York. Está aqui de passagem e voltará. E, nos Estados Unidos, ele vai de um assombro a outro assombro. Lá, vive ele num mundo quase absurdo. Um dia, abre a televisão e vê um filme sobre "as atrocidades norte-americanas". O mesmo filme passara, antes, normalmente, num gigantesco circuito de cinemas.

Só um país, no mundo, ousaria tamanha antipropaganda, tamanha antipromoção. E o Joffre, em conversas intermináveis, fala de tudo que há de pueril, trágico, jamais concebido, na vida americana. Súbito, meu filho chega a Bob Kennedy. Nós o conhecemos fisicamente; nós o vimos, aqui, na praia, de calção, dourando-se ao sol como um camaleão (rimou com calção, e desculpem).

Mas o Bob que por aqui passou e viu muitos poentes de Leblon nada tem a ver com o Bob candidato. Naquele tempo, ele preservava, como um segredo, como um pudor, a sua intenção presidencial. Fazia de conta que o sonho do poder ainda não se instalara no seu coração. Mas, ao falar de Bob, não resisto à tentação de contar um episódio brasileiro. Vamos lá.

Certa noite, o nosso Bob teve um encontro com vários patrícios nossos, inclusive o dr. Alceu. Eram intelectuais, estudantes, cada qual fazendo a sua pose e cada qual dando seu recado. Por coincidência, todos vendiam a mesma imagem do Brasil. Houve um momento em que o Tristão empostou-se, ergueu o gesto e disse, textualmente, o seguinte: — "Posso assegurar-lhe que não havia o menor perigo comunista no Brasil!".

Foi imensamente divertido o tom inapelável de verdade eterna com que o mestre atirava na cara do ilustre visitante tamanha barbaridade. Os presentes, menos Bob Kennedy, balançaram a cabeça, e com o maior descaro. Mas nada descreve a amarga perplexidade do americano. Eis as perguntas que ele, espantadíssimo, teve o decoro de não fazer: — "Como não há perigo comunista? Isto aqui não é um país subdesenvolvido? Não há fome? Existe ou não existe o Nordeste? A tal mortalidade infantil é pura escroquerie?".

Com a conivência e o descaro dos brasileiros presentes, o dr. Alceu estava sendo de uma monstruosa e consciente inveracidade. Digo "consciente" porque ele não ignora, decerto, a fome, o Nordeste, a mortalidade infantil etc. etc.

Volto aos Estados Unidos. Conta Joffre que Bob mudou, até fisicamente. Há pouquíssimo tempo era, na televisão, um modesto, um humilde, um cerimonioso. Não olhava, cara a cara, os vários milhões de telespectadores. Baixava a cabeça. Tinha como que a vergonha física do poder. E, súbito, o candidato secreto, inconfesso, começou a borbulhar, irresistivelmente. Bob Kennedy se deflagra. Seu gesto, sua inflexão, sua ênfase, sua ira, tudo, tudo promove, impõe, desfralda o candidato.

E, com isso, ficamos sabendo que a modéstia, a humildade, a suavidade anteriores eram uma pose. Aliás, pode-se datar a sua candidatura: — no dia, ou, melhor dizendo, no momento em que John Kennedy morreu, ele começou a ser candidato, automaticamente candidato. Não importa o pudor que, por muito tempo, disfarçou, negou o automatismo dessa candidatura.

Eu diria que, no seu caminho presidencial, só resta uma dúvida. E, de fato, custa crer que existam, numa mesma família, dois Kennedys. Seria o mesmo que pretender dois Napoleões. E, quando dois nomes coincidem, passamos de um Napoleão, o Grande, para o Napoleão III, o idiota. Há, todavia, uma hipótese para o nosso Bob: — de que o verdadeiro Kennedy não seja o morto, mas o sobrevivente.

Sempre me pareceu que John Kennedy era, como líder, um equívoco. Escrevi, aqui mesmo, que o verdadeiro líder é um canalha. E Kennedy era um pobre ser crispado de humanidade, igual a um de nós, perplexo, frágil, dilacerado, menino, como um de nós. Menino sim, infinitamente menino.

Kennedy tinha uma mulher bonita; amava e era amado. Não há Jacqueline na História e na Lenda de Lenin, Stalin, Hitler. E a mulher bonita só tem sentido para o líder quando o trai. E mais: — o líder morre na hora certa, e não antes.

John Kennedy morreu antes, e repito: — morreu antes da obra. Um Napoleão que morresse na tomada da Bastilha não seria Napoleão. Um Cristo morto aos três anos de idade, de coqueluche, já não seria Cristo. De mais a mais, o verdadeiro líder há de morrer com o rosto.

Sim, a morte tem que preservar seu perfil para a moeda, a cédula, a medalha. O último rosto, o rosto do caixão, precisa estar intacto. E tiveram que fechar o caixão de Kennedy para esconder o queixo arrancado.

[25/3/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A fotografia do ódio

É uma fotografia de Manchete, e com a agravante: — colorida. Lá está o sangue coagulado. O olho enorme, que ninguém fechou; e os intestinos escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãos entrevadas pela morte.

Morreu, não há dúvida, morreu. E odeia.

Morreu com esgar de ódio, com a boca aberta em grito. Nem sei se é de um lado ou de outro; se é guerrilheiro ou não. Morreu, mas o ódio sobrevive. É um cadáver e continua odiando. Olho a fotografia e vejo tudo.

Não é americano, não pode ser americano. Tem de ser do outro lado, e explico. O mistério de Manchete está na impressão, em cores. Seus anúncios são graficamente exemplares. Lembro-me de uma salada de página inteira. A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese, tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete imprimiu o cadáver vietnamita com o mesmo virtuosismo da
salada.

Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela miséria dentária. Eram cacos, não dentes. Dirá alguém que de um lado e do outro há maus dentes. Seja como for, instala-se em mim a certeza, talvez pueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.

Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos pendurados nas feias gengivas. O que realmente apavora é o ódio. Imaginem vocês que acabo de receber a carta de uma leitora. É uma brasileira que me escreve e não assina. A meu ver, não há carta anônima intranscendente. Se não tem assinatura, passa a valer como um documento trágico. Desde os velhos folhetins, a carta anônima é de uma veracidade apavorante.

A leitora fala da moça chamada Gisela, que morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de hospital em hospital, e não encontrou um médico, uma enfermeira, um estudante, um porteiro. Teria sido salva, sem maiores problemas, se alguém a atendesse em tempo. Mas vinha um médico, olhava o braço partido e dizia: — "Não é urgente". E a mandava embora.

Qualquer barbeiro diria: — "É de urgência, sim". Mas não houve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio. Não houve uma enfermeira, nem um funcionário.

Há uma escola que se chama, pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras, práticas ou formadas, as serventes, ninguém teve pena, simplesmente pena. Temos pena de uma cachorra manca. E ninguém teve pena da gangrena em flor.

No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão nítido, tão límpido, tão inequívoco. Qualquer um, a olho nu, veria a cor da gangrena e da orquídea. Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os hospitais, continuavam a negar, de pés juntos, a gravidade e a urgência. Até que a menina morreu, apenas morreu, e nada mais.

E, então, a leitora me escreve. O que me impressionou na carta foi o ódio. Um ódio só comparável ao do cadáver que continuava odiando. Sempre digo que o verdadeiro amor continua para além da vida e para além da morte. Mas vejo o cadáver da guerra. E sinto que também o verdadeiro ódio dura mais que a vida e dura mais que a morte.

Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu, não a irritação efêmera, não a raiva que passa, não o protesto que se esquece. Não, não. Ela toma uma posição radical. É uma paixão que não conhecia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer nada. Nada, nada?

Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente nada. Mas a leitora tem um tesouro de ódio, íntimo tesouro, que não sabe como aplicar ou contra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é que morreu uma só e repito: — uma só Gisela.

Se fossem duzentas, trezentas Giselas, talvez tivéssemos, por aí, um surto de piedade convencional e enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignificação numérica que comove de uma maneira muito epidérmica e ineficaz. E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos toda uma imensa organização, toda uma estrutura gigantesca. E sabem para quê? Para que um médico olhe uma gangrena inequívoca, óbvia, evidentíssima, e diga: — "Não é de urgência".

Ora, eu sou um obsessivo. E uma das minhas idéias fixas é, justamente, a seguinte: — o médico ou é um santo ou um gângster. Meu Deus, não vejam nas minhas palavras nem exagero, nem caricatura. Um médico tem responsabilidades que ninguém tem. Estou dizendo o óbvio, mas paciência.

O médico só devia ser médico depois de sofrer uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos. O sujeito teria de passar três anos nos cafundós da África, tratando de negros leprosos. Como é que se pode passar um atestado de óbito sem tremer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina um atestado de óbito substituiu Deus e O antecipa.

Mas não se aflijam. Os médicos que não identificaram a gangrena, que não enxergaram o óbvio e despacharam alegremente a moça continuarão a fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, a assobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mereceu de Manchete uma impressão de salada.

Eu falei de dois ódios e passo a um terceiro. Desta vez é um chofer de praça. Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.

Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados.

Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.

A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o Teatro Jovem ia levar, se passa num xadrez. Seis ou sete marginais estão em cena. E, de repente, entra mais um preso, um adolescente, preso porque brigara num bar do Leblon. Os outros o agarram, e qualquer um pode imaginar o resto.

Pergunto: — que faremos nós? Desta vez, foi tomada a providência justa: — interditou-se a peça. Obscena é a denúncia e não a monstruosidade. A moral está salva, porque se emudeceu uma peça. E o ser humano continuará sendo violentado em cada xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento é impotente, como o ódio do chofer.

[20/3/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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