terça-feira, 26 de abril de 2011

A governanta

Ela chega amanhã. Vai ganhar Cr$ 100 mil, mas vale a pena — quem falava assim era a mulher de Al­cindo. Já tinham discutido às pampas, o Alcindo e a mu­lher, por causa da tal empregada.

Dona Míriam — mulher do Alcindo — tinha conseguido a empregada com uma parceira de pif-paf, uma tal de Iolanda, com a qual o Al­cindo sempre implicou. Mulherzinha gastadeira, que es­banjava o dinheiro do marido no jogo.

Dona Míriam era vidrada na Iolanda. Achava a Iolan­da o fino da elegância. Imitava a Iolanda, fazia vestidos na costureira da Iolanda, penteava o cabelo no mesmo cabeleireiro da Iolanda e dera até para gastar como a Iolanda.

O Alcindo ia suportando tudo porque os programas de pif-paf da Dona Miriam lhe davam uma frente bárbara. Enquanto a mulher estava fazendo seqüências, trincas, "lo­bas" e outras besteiras, ele ia se espalhando pelas boates, fazendo suas miserinhas pela aí. O Alcindo era muito assa­nhado.

Ultimamente, porém, a Iolanda começara a mandar também em sua casa. Aconselhara Dona Míriam a mudar os móveis da sala (Alcindo teve até que assinar um papa­gaio no Zé Luís para quebrar o galho), fizera Dona Míriam aderir às suas dietas para manter a linha (Alcindo já se sentia um mísero herbívoro de tanto mastigar saladas), e tudo culminara com a dispensa das duas empregadas que não eram lá essas coisas, mas pelo menos respeitavam o patrão.

Dona Míriam — sempre achando que a Iolanda era o máximo - ia seguindo os conselhos. Lá se foram as duas domésticas simplórias e viera a novidade: a Iolanda arran­jara uma espécie de governanta. Uma moça que trabalha­ra para os Martorelli.

— Uma governanta perfeita. Fala até um pouco de inglês - informou Dona Míriam, exaltando as qualidades da nova contratada.

E naquela tarde discutiram pra valer, com Alcindo irritado de tanta badalação dentro de casa. Mas, como Dona Míriam ia passar a noite na casa do pai (o velho esta­va quase abotoando o paletó) e ele ia a um pré-carnavalesco legal organizado pelo Pindoba — grande técnico na es­truturação de badernas íntimas —, acabou concordando.

— Ela chega amanhã. Vai ganhar Cr$ 100 mil, mas vale a pena — foram as últimas palavras de Dona Míriam, antes de sair para a casa do pai moribundozinho.

Alcindo inda ficou zanzando pela casa, tentando se acostumar à idéia de uma governanta em casa; uma mulherzinha provavelmente cheia de chiques, que iria inibir sua comodidade dentro do próprio lar. Grande chatea­ção! Não fosse a perspectiva da farra no tal pré-carnavalesco, e o Alcindo estaria uma fera.

Quando saiu pra festa estava mais calmo. Meteu uma bermuda, uma camisa folgada e mandou brasa. O forró foi numa dessas boates também chamadas de "inferninho", onde o diabo não entra para não se comprometer.

No escurinho tava valendo tudo. Com dois minutos do tem­po regulamentar o Alcindo já estava armado. Pegou uma zinha mais ou menos, lourinha, de narizinho fino e um rebolado que não era assim aquele estouro mas que tam­bém não era de se deixar pra lá.

A noite inteira agarrado, enquanto uma charanga segundo time tocava uma marchinha chamada "O Cachorrinho do Lalau". Quando a charanga meteu o "Cidade Maravilhosa", que dá por en­cerrados os debates, o Alcindo estava de moringa cheia e doido pela lourinha. Fez tudo para comprar o seu passe, mas na confusão da saída, caindo pelas tabelas de tão bêbedo, a lourinha sumiu e ele nem sabe como chegou em casa.

Mas que chegou, isto chegou. Tanto que, no dia se­guinte de manhã, acordou com Dona Míriam a catucá-lo: — Levanta, Alcindo. A Dolores já está aí.

- Dolores?, Que Dolores?

- A governanta. Já estudamos os horários. Ela acha que não devemos dormir depois das dez. O breakfast pode tirar o apetite para o almoço.

Alcindo levantou-se estremunhado. Entrou debaixo do chuveiro (era dia de adutora consertada) e tomou uma ducha legal. Quando chegou na sala de jantar, foi aquele espanto. Sua mulher ouvia encantada as "ordens" da go­vernanta. E a governanta era igualzinha à lourinha da vés­pera. Seria a mesma? Era muito azar do goleiro. Alcindo cumprimentou-a meio ressabiado. Ela respondeu com um sorriso amável. Não, não era a mesma. Estava era imagi­nando besteira. Mas foi Dona Miriam ir lá pra dentro e a governanta começou a cantarolar baixinho a marcha "O Cachorrinho do Lalau".

Coitado do Alcindo, anda numa rosca soviética! Só ato institucional pra cima dele a governanta já assinou uns três para cercear os seus direitos humanos.

Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
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sábado, 23 de abril de 2011

Os fantasmas de Anhatomirim

Florianópolis - O nome

Uma das dezenas de ilhotas ao redor da Ilha de Florianópolis, principal pólo turístico do sul do Brasil, esconde no cenário paradisíaco pintado com cores naturais pelo azul do mar e realçado pelas marcas irretocáveis do tempo uma história de fantasmas daquelas de arrepiar.

O palco principal é a Fortaleza de Santa Cruz. Nela ainda há quem escute o arrastar de correntes dos 185 homens fuzilados, degolados ou enforcados em abril de 1894 acusados de conspiração contra o presidente Floriano Peixoto no episódio que pôs fim à Revolta da Armada.

Os funcionários da Universidade Federal de Santa Catarina, que cuidam do lugar, são testemunhas. O zelador Amílton dos Santos, o "Nino", de 38 anos, já cansou de sair da cama para conferir sons que pareciam passos nos assoalhos. São doze anos de madeira rangendo, correntes sendo arrastadas - além do barulho das ondas que quebram no mar. O nome do lugar não ajuda em nada. Anhatomirim significa, em tupi-guarani, Pequena Ilha do Diabo.

"Algumas vezes os ruídos pareciam tão reais que tive certeza de que encontraria alguém, vivo ou morto", conta Nino. Sem desdenhar da possibilidade de Anhatomirim ser um lugar carregado - "Se eu disser que assombração não existe, elas podem aparecer só para provar o contrário" -, ele ensaia uma explicação racional. "A madeira pega sol durante o dia e trabalha à noite, estalando. E às vezes trabalha tanto que arrebenta os pregos enferrujados. Daí o barulho que lembra o de correntes sendo arrastadas."

A bem da verdade, os fantasmas de Anhatomirim estão mais vivos do que nunca na memória de uns tantos manezinhos da ilha - como são conhecidos os nascidos na parte da capital de Santa Catarina cercada por algumas das praias mais belas do litoral brasileiro e enfeitada pela Lagoa da Conceição.

Banidos da História

Só os turistas que lotam hotéis e pousadas não chegam a perceber a reação dos moradores ao nome da cidade. Anhatomirim virou atração depois que a Universidade Federal de Santa Catarina reformou os dez prédios que compõem a fortaleza erguida entre 1739 e 1744. Só no ano passado recebeu cerca de 100 mil visitantes - que chegam até ela de escuna, num passeio com duração de 40 minutos e parada para banho em alto-mar, por R$ 35,00 mais R$ 4,00 pela entrada na ilha. A maioria sai de lá sem saber da ligação entre o lugar e a origem do nome Florianópolis, pois os fuzilamentos e enforcamentos são citados apenas de passagem pelos guias turísticos.

Fortaleza na Ilha de Anhatomirim - Pórtico de Entrada - Fpolis.
No Mercado Público e nas rodas de dominó da Praça 15 de Novembro, no entanto, não é difícil encontrar quem se recuse a escrever ou até mesmo pronunciar a palavra maldita: "Florianópolis". Não vai tão longe assim o tempo em que essa resistência chegou a gerar movimentos articulados que pregavam um rebatismo. Ajudam a manter indelevelmente acesa a chama da mudança às lembranças da Chacina de Anhatomirim, uma história banida do ensino oficial, mas repassada de geração em geração há 110 anos.

Os fantasmas de hoje eram os rebelados de ontem. Faziam parte do grupo de revoltosos da Marinha que, nos turbulentos anos que se seguiram à Proclamação da República, se insurgiram contra o governo do Marechal de Ferro e tentaram tirá-lo do poder. Enquanto a revolta era combatida no Rio de Janeiro, seis navios sob comando dos rebeldes seguiram rumo ao Sul. No final de setembro de 1893, a Ilha do Desterro - primeiro nome dado ao acidente geográfico batizado de Ilha de Santa Catarina, que forma hoje, com a parte continental, a capital Florianópolis - foi invadida e declarada Capital Provisória da República.

Com apenas 20.000 habitantes, o lugarejo - que sequer tinha ligação com o continente, já que a primeira das três pontes do arquipélago seria inaugurada três décadas depois - não teve como resistir à invasão. Quando os navios República e Palas se aproximaram da ilha, a instauração do governo provisório foi simplesmente comunicada às autoridades locais e posta em prática sem violência. Três meses depois, o encouraçado Aquidaban, à época o maior navio da Marinha do Brasil, trazia o líder da revolta: Custódio de Melo.

Enquanto isso, o marechal Floriano Peixoto organizava uma nova frota, comprada às pressas no exterior e enviada a Ilha do Desterro, em abril de 1894, com quinhentos homens liderados pelo coronel Moreira César, para reconquistar a cidade. Levados a Anhatomirim, os prisioneiros passaram por humilhações e tortura antes de executados sem julgamento. Entre eles estavam dezenas de moradores acusados de colaborar com os revoltosos. Gente que fazia parte da elite social e intelectual da cidade - como o juiz Joaquim Lopes de Oliveira e o comerciante Caetano Nicolau de Moura - e militares - como o marechal Manoel de Almeida Gama d'Eça, o Barão do Batovi, um herói da Guerra do Paraguai.

Oportunismo e humilhação

A Ilha do Desterro foi, então, rebatizada por um desses oportunismos políticos. O deputado Genuíno Vidal propôs, em outubro de 1894, que a vitória do presidente fosse eternizada com a troca do nome da cidade para Florianópolis. Com o marechal ainda no poder, ninguém se atreveu a contestar a idéia. Só dois anos depois, quando os jornais de oposição voltaram a circular, foram registrados os primeiros protestos. Em editorial na edição de 3 de julho de 1896, o jornal "O Estado" deu o tom: "O tal nome, semelhante a um escarro cuspido em nossa capital, bateu na lâmina limpa de sua cútis, escorreu para baixo e veio emporcalhar aquele que o cuspira."

Florianópolis virou uma humilhação. Não foi por outra que, há uma década, o movimento Cem Anos de Humilhação reuniu historiadores, advogados e jornalistas em defesa da substituição do nome. A articulação esbarrou na Lei Orgânica do Município, que estabelece que isso só pode ser feito por plebiscito convocado pela Câmara de Vereadores.

Como o nome original, Desterro, poderia espantar os turistas, o movimento admitia algumas alternativas. Ilha de Santa Catarina, Ondina, por sugestão do poeta Virgílio Várzea, Meiembipe, nome dado à ilha pelos índios carijós e que significa Montanha Dentro do Mar e, até mesmo, a oficialização do apelido Floripa, que para muitos seria suficiente para desvincular a imagem da cidade da de Floriano Peixoto.

A proposta de submeter à população a escolha de um novo nome para a capital catarinense conquistou a simpatia de uns poucos vereadores dos partidos de esquerda, mas não seguiu adiante na Câmara de Vereadores. Quatro anos antes, a vereadora Jalila El-Achkar, do Partido Verde (PV), teve uma decepção ainda maior ao apresentar o mesmo projeto: nenhum colega a apoiou.

"O assunto foi tratado com desdém, como uma idéia exótica de uma vereadora de um partido exótico", lembra Jalila, hoje dona de uma imobiliária. "A troca do nome só será possível quando a população realmente desejá-la, mas enquanto a história da chacina de Anhatomirim não for contada de verdade nas escolas não haverá a menor chance."

Os fantasmas do general

Os maiores críticos da proposta de trocar o nome da cidade são os empresários ligados ao turismo. "Mesmo que Floriano Peixoto tenha sido um sanguinário, não se pode abrir mão de uma grife conhecida no

mundo inteiro em função do que ocorreu há mais de cem anos. Isso traria enormes prejuízos à cidade", diz o presidente da seção catarinense da Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, João Eduardo Amaral Moritz. Mesmo os que sabem da Chacina de Anhatomirim acham que o prazo de validade do revanchismo já está vencido.

A antigüidade do nome é um argumento usado com freqüência para defendê-lo, mas quem prega a substituição lembra que a denominação anterior tinha mais de dois séculos. Desterro era uma simplificação de Nossa Senhora do Desterro, escolhida para padroeira da povoação fundada pelo bandeirante paulista Francisco Dias Velho em 1675.

O desterro de Nossa Senhora deu-se quando Herodes decretou a morte de todas as crianças com menos de dois anos e Maria fugiu para o Egito para salvar Jesus. Na campanha pela adoção da homenagem a Floriano, Genuíno Vidal afirmava equivocadamente que o nome Desterro se originara do fato de a ilha ter sido usada como prisão para criminosos portugueses.

Pelo menos um companheiro de farda do marechal sentiu a reação dos manezinhos toda vez que seu nome é evocado. Foi o inesquecível presidente João Figueiredo. Em meio a uma campanha de popularização do último governo militar, ele resolveu visitar a ilha em novembro de 1979 para inaugurar uma placa em homenagem a Floriano Peixoto na Praça 15 de Novembro. Pra quê?

Depois de apedrejar o palácio do governo estadual e atacar os carros oficiais, estudantes conseguiram arrancar a placa e queimá-la no meio da praça. De quebra, provocaram uma das reações mais bizarras da história republicana brasileira.

Conhecido pelo destempero emocional, Figueiredo reagiu às provocações, trocou desaforos com os estudantes e quis partir para a briga no corpo-a-corpo. Teve de ser contido pelos seguranças. Dizem que o vexame foi coisa dos fantasmas de Anhatomirim.
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Fonte: "A mudança de nome da capital, de Nossa Senhora do Desterro para Florianópolis" - Mensagem original de: Dom Paulo [mailto:jairpaulo@terra.com.br] - Enviada em: sexta-feira, 21 de janeiro de 2005 00:01 - Para: Gen Santa Catarina; Origens; GenealBR - Assunto: [GBr] Historia que não ensinam na escola - site: http://sites.google.com/site/monarquiasempre/historia-do-brasil/historia-do-brasil---o-inicio-da-republica-em-santa-catarina/a-mudanca-de-nome-da-capital-de-nossa-senhora-do-desterro-para-florianopolis
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sexta-feira, 22 de abril de 2011

Não sei se você se lembra

Então, não sei se você se lembra, nos veio aquela vontade súbita de comer siris. Havia anos que nós não comíamos siris e a vontade surgiu de uma conversa sobre os almoços de antigamente. Lembro-me bem — e não sei se você se lembra — que o primeiro a ter vontade de comer siris fui eu, mas que você aderiu logo a ela, com aquele entusiasmo que lhe é peculiar, sempre que se trata de comida ou de mulher.

Então, não sei se você se lembra, começamos a rememorar os lugares onde se poderia encontrar uma boa batelada de siris, para se comprar, cozinhar num panelão e ficar comendo de mãos meladas, chão cheio de cascas do delicioso crustáceo e mais uma para rebater de vez em quando. E só de pensar nisso a gente deixou pra lá a vontade pura e simples e passou a ter necessidade premente de comer siris.

Então, não sei se você se lembra, telefonamos para o Raimundo, que era o campeão brasileiro de siris e, noutros tempos, dava famosos festivais do apetitoso bicho em sua casa. Ele disse que, aos domingos, perto do Maracanã, havia um botequim que servia siris maravilhosos, ao cair da tarde. Não sei se você se lembra que ele frisou serem aqueles os melhores siris do Rio, como também os únicos em disponibilidade, numa época em que o siri anda vasqueiro e só é vendido naquelas insípidas casquinhas.

Ah... foi uma alegria saber que era domingo e havia siris comíveis e, então, nos dois — não sei se você se lembra — apesar da fome que o uisquinho estava nos dando — resolvemos não almoçar para ficar com mais vontade ainda de comer siris. Passamos incólumes pela refeição, enquanto o resto do pessoal entrava firme num feijão que cheirava a coisa divina do céu dos glutões. O pessoal — aliás — achava que era um exagero nosso, guardar boca para um siri que só comeríamos à tarde, porque podíamos perfeitamente ter preparo estomacal para eles, após o almoço.

Mas — não sei se você se lembra — fomos de uma fidelidade espartana aos siris. Saímos para o futebol com uma fome impressionante e passamos o jogo todo a pensar nos siris que comeríamos ao sair do Maracanã.

Então — não sei se você se lembra — saímos dali como dois monges tibetanos a caminho da redenção e chegamos no tal botequim. Então — não sei se você se lembra — que a gente chegou e o homem do botequim disse que o siri já tinha acabado.


Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: A crônica acima consta do livro "Garoto Linha Dura", lançamento da Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1964, pág. 163.
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