Naquela noite, enquanto os tropeiros do Brejo se acocoravam ao redor da
fogueira, contando histórias, o Zé Piaba fez com que todos se calassem e
principiou:
— Nem conto... Quando a “coisa” me deu, eu fiquei imóvel como pedra
dormindo em fundo de açude. Por mais vontade que tivesse de me levantar
não podia...
Puxou um pequeno tição, acendeu o cigarro de palha e prosseguiu, após algumas baforadas:
— Minha mulher, a Raimunda, quando deu pela “bicha”, achou que eu tinha
esticado a canela. Abriu a boca no mundo, a chorar e foi logo chamar o
compadre Bernardino para tratar do enterro. O mais interessante é que eu
não acreditava na minha morte, pois via e ouvia tudo.
Até não pude esquecer nunca a ocasião que a minha costela se lamentava,
dizendo ficar sozinha neste mundão de Nosso Senhor. Eis que o compadre,
sem cerimônia, a apertou nos braços, e disse que ela não se incomodasse
tanto, que se casaria com ela. Como ele era viúvo, seria um casamento
igual, de dois viúvos. Ela ficou mais consolada e tudo ficou
combinadinho, ali mesmo nas minhas barbas.
Quando foi noite fechada, começaram a chegar os conhecidos. A Raimunda, a
todos que lhe davam os pêsames, ia oferecendo boia de carimã com café.
Mais tarde, coisa dumas 10 horas, enfiaram um pau nos punhos da rede. Lá
fora a lua era uma beleza, tomando banho no rio que parecia uma lâmina
cortando os campos.
Saíram com o “defunto” e foram pela estrada, cantando umas cantigas
horríveis, de arrepiar couro e cabelo. Se eu pudesse teria tremido como
queixo de impaludado dos Amazonas. Mais porém eu estava caipora mesmo.
Nem para tremer prestava. Nem um sinalzinho de vida. Inda hoje parece
que ouço a bruta:
Repouso eterno
Dai-lhe, Senhor,
Dá luz perpétua
O resplandor.
Quando acabaram essas “ladainhas” já os galos abriam o bico a cocoricar.
Eu voltei para o ponto de partida, isto é, para o mesmo lugar em casa,
pois o enterro seria no dia seguinte.
De manhã, foi que eu vi o negócio espritar-se mesmo. Iam enterrar-me
vivinho da Silva, sem mais nem menos. Mentalmente fiz uma oração à Nossa
Senhora das Candeias para que iluminasse o espírito daquela gente e não
fizesse comigo aquela judiação. Vocês nem calculam como sofri.
Depois que o Padre rebolou uma porção d'água benta em riba de mim, o
enterro foi marchando subindo a ladeira para o cemitério. Eu sentia um
terror mortal. Acho que minha garganta estava toda cheia por um nó bem
grande que não me deixava gritar. Seria nó mesmo ou apenas suposição?
Não sei. O que sei é que, quase na hora H, vi que já podia fazer algum
movimento.
Estendi a mão e peguei um dos gajos que iam me levando pelo paletó. Ele
se virou e quando deu fé daquilo, nem digo nada: soltou a rede no chão. O
outro fez o mesmo. E todos, julgando que eu era alma do outro mundo,
deram de gâmbias e catrâmbias. Desandaram a correr que nem um estouro de
garrotes bravios.
O compadre Bernardino, o apalavrado futuro marido de minha mulher,
pensou que aquilo eram artes do Não-sei-que-diga. Quis meter-me uma
carga de chumbo nos couros. Mas felizmente a garrucha negou fogo. E
todos corriam com medo de mim como um bando de satanás...
A minha cara-metade só foi para casa depois que o doutor foi ver-me e
disse que eu tive um ataque de “calapsia”. Ele disse uma coisa mais ou
menos assim. Um nomão feio, arrevesado, que só o tal doutor sabe dizer
direito.
E assim eu escapei das garras da morte. Quando à noite apareci de
repente num samba, todo lampeiro, o povo quis correr, pensando que era
assombração.
O compadre Bernardino é que parece que não gostou nadinha. Pouco tempo depois morreu. Penso que de tristura ou paixão recolhida.
Jayme Sisnando
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Fonte: Revista
O Malho, de maio/1944