Século XVIII. Uma partida de brasileiros atravessa as verdejantes campinas do Rio
Grande do Sul. Impulsionados pela necessidade de braços para as
lavouras, buscam o índio. Hão de avassalar as tribos ocupantes daquela
região. Com esta disposição, viajam bem municiados e armados.
Os índios minuanos, avisados pelas sentinelas da aproximação dos
brancos, montam em seus fogosos cavalos e, armados de flecha e
boleadeiras e lanças, deixam seu acampamento e rumam para as coxilhas.
Ao avistar os brasileiros se aproximando, os índios usam de sua tática
de ocultar-se ao longo do dorso dos cavalos. Destarte, dificilmente
seriam descobertos pelos inimigos.
Imóveis, esperam eles o momento azado para atirar-se sobre os viajantes.
Os brasileiros não são conhecedores dos hábitos e da tática empregada
pelos índios habitantes das campinas do Sul. E avistando à distância o
bando de cavalos pastando, tomam essa direção, muito senhores de si.
Assim, ao se aproximarem os brasileiros, os índios despencam-se nos seus
animais do cimo das coxilhas, em galopada, investindo contra os brancos
com furiosa saraivadas de flechas. Respondem estes com tiros de armas
de fogo. Nova investida dos índios, agora se servindo-se das lanças,
obriga os invasores a fugir em desordem.
Caído por terra acha-se um moço ferido. Ao seu lado uma jovem índia minuano. Fascinara-a a coragem do estrangeiro.
O brasileiro sabe da sorte que o espera. E, interrogando a moça quando
será sacrificado, responde-lhe esta que nada tema, pois estará a seu
lado. Anima-o com palavras confortadoras, cheia de simpatia e compaixão
pela sorte do estrangeiro.
O prisioneiro é levado para o acampamento dos minuano. Enquanto esperam
que se cure da ferida para sacrificá-lo, dão-lhe toda liberdade sob
vigilância das sentinelas.
O jovem branco resolve fazer uma viola. Uma tarde, à sombra de uma
árvore, com a pouca ferramenta de que dispõe, a muito custo vai
improvisando um rústico instrumento. Inicialmente aparelha, em forma de
espessa tábua, uma pau de corticeira. Cava-a dando-lhe a forma de viola.
Coloca uma tampa com abertura circular para dar vibração ao som das
cordas. Para colar a tampa emprega o grude de parasita sombaré, das
árvores da serra. E da própria fibra da parasita ele prepara as cordas
para o instrumento.
A índia já lhe tem muita amizade e está sempre ao seu lado nas horas de
folga. Enquanto o vê trabalhar, canta-lhe suavemente um canto doce e
pitoresco da gente minuana.
Ainda não passara um lua, e já, na grande ocara do acampamento, celebra-se o ritual do sacrifício.
Amarrado a um tronco está o prisioneiro.
Todos os índios da nação, reunidos em volta dele, dançam e cantam a sua
morte. De quando em vez, passam, de mão em mão, cuias contendo delicioso
vinho fabricado com o mel eiratim.
Há um silêncio de morte em todo o acampamento. O chefe minuano ordena que soltem o prisioneiro e tragam-no à sua presença.
Fitando o moço bem nos olhos, assim fala o cacique:
-Que aos teus irmãos sirva de lição esta última derrota. Que não nos
tornem a vir incomodar. Os que vierem nestes campos buscar escravos, hão
de ser esmagados pelas patas de nossos cavalos. E tu, pagarás com a
morte a tua audácia e a dos teus!
Contudo, o chefe minuano diz ao condenado que faça o seu último pedido.
Surpreende-se o branco com tal gesto. E, dotado de uma inteligência não
vulgar, num relance percebe como poderá livrar-se da morte. Sabendo da
emotividade e a influência que exerce a música sobre aquelas criaturas,
pede que lhe tragam o seu instrumento de cordas. Quer tocar pela última
vez. Cantar uma balada de sua terra.
É a jovem índia quem lhe traz a sua viola, debaixo dos olhares curiosos dos índios.
Cheio de fé, o moço pega da viola. Depois de alguns sonoros acordes,
entoa uma canção. E o ricto bárbaro daquelas fisionomias rudes
transforma-se como por encanto.
Ouve-no com enlevo, exclamando a todo instante: – Gaú-che! Gaú-che!… o que significa: gente que canta triste.
Sensibilizados pela doce cantiga do condenado à morte, os índios intercedem para que o sacrifício seja revogado.
E, assim, o brasileiro fica morando com os minuanos.
Enamorado da jovem índia, casa-se com ela. E dessa bela união, do
elemento branco com a indígena, resultou o tipo desse homem
extraordinário que se chama gaúcho.
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Fonte: Lessa, Barbosa -
Antologia ilustrada do folclore brasileiro: Estórias e lendas do Rio Grande do Sul. São Paulo, Editora Literart, 1960