Que
Deus perdoe a todos aqueles que cometem a injustiça de achar que são
fantasiosas as histórias que a gente escreve; que Deus os perdoe porque
são absolutamente verídicos os momentos vividos pelo vosso humilde
cronista e que aqui vão relatados.
Foi há dias, pela manhã, que fui surpreendido pelo pedido da garotinha:
queria que eu trouxesse uma nova bone¬quinha com música. Bonequinha com
música — fica desde já esclarecido — são essas caixinhas de música com
uma bailarina de matéria plástica rodopiando por cima. É um brinquedo
caríssimo e que as crianças estraçalham logo, com uma ferocidade de
center-forward.
Como a garotinha está com coqueluche, achei que seria justo fazer-lhe a
vontade, mesmo porque este é o primeiro pedido sério que ela me faz, se
excetuarmos os constantes apelos de pirulitos e kibons.
Assim, logo que deixei a redação, às cinco da tarde, tratei de espiar as
vitrinas das lojas de brinquedos, em busca de uma caixinha de música
mais em conta. E nessa peregrinação andei mais de uma hora, sem me
decidir por esta ou aquela, já adivinhando o preço de cada uma, até que,
vencido pelo cansaço, entrei numa casa que me pareceu mais modestinha.
Puro engano. O que havia de mais barato no gênero custava oitocentos
cruzeiros, restando-me apenas remotas possibilidades de êxito, num
pedido de desconto. Mesmo assim tentei. Disse que era um absurdo, que um
brinquedo tão frágil devia custar a metade, usei enfim de todos os
argumentos cabíveis, sem conseguir o abatimento de um centavo.
Depois foi a vez do caixeiro. Profissional consciencioso, foi-lhe fácil falar muito mais do que eu.
— O doutor compreende. Isto é uma pequena obra de arte e o preço mal
paga o trabalho do artista. Veja que beleza de linhas, que sonoridade de
música. E a mulherzinha que dança, doutor, é uma gracinha.
Pensei cá comigo que, realmente, as perninhas eram razoáveis, mas já ia
dizer-lhe que existem mulheres verdadeiras por preço muito mais
acessível, quando ele terminou a sua exposição com uma taxativa recusa:
— Sinto muito, doutor, mas não pode ser.
E eu, num gesto heróico, muito superior às minhas reais possibilidades, falei, num tom enérgico:
— Embrulhe!
Devidamente empacotada a caixinha de música, botei-a debaixo do braço,
paguei com o dinheiro que no dia seguinte seria do dentista e saí à cata
de condução. Dobrei a esquina e parei na beira da calçada, no bolo de
gente que esperava o sinal "abrir" para atravessar. Foi quando a
caixinha co¬meçou a tocar.
Balancei furtivamente com o braço, na esperança de fazê-la parar e, longe disso, ela desembestou num frenético
Danúbio azul que
surpreendeu a todos que me rodeavam. Primeiro risinhos esparsos, depois
gargalhadas sinceras que teriam me encabulado se eu, com muita presença
de espírito, não ficasse também a olhar em volta, como quem procura
saber donde vinha a valsinha.
Quando o sinal abriu, pulei na frente do bolo que se formara junto ao
meio-fio e foi com alívio que notei, ao chegar na outra calçada, que a
música parara. Felizmente acabara a corda e eu podia entrar sossegado na
fila do lotação, sem passar por nenhum vexame.
Mas foi a fila engrossar e a caixinha começou outra vez.
"O jeito é assoviar" — pensei. E tratei de abafar o som com o meu
assovio que, modéstia à parte, é até bastante afinado. Mesmo assim, o
cavalheiro de óculos que estava à minha frente virou-se para trás com
ares de incomodado, olhando-me de alto à baixo com inequívoca expressão
de censura. Fiz-me de desentendido e continuei o quanto pude, apesar de
não saber a segunda parte do
Danúbio azul e ser obrigado a
inventar uma, sem qualquer esperança de futuros direitos autorais. E já
estava com ameaça de cãibra no lábio, quando despontou o lotação, no
justo momento em que a música parou.
Entrei e fui sentar encolhido num banco onde se encontrava uma mocinha
magrinha, porém não de todo desinteressante. Fiquei a fazer mil e um
pedidos aos céus para que aquele maldito engenho não começasse outra vez
a dar espetáculo. E tudo teria saído bem se, na altura do Flamengo, um
camarada do primeiro banco não tocasse a campainha para o carro parar.
Com o solavanco da freada, o embrulho sacudiu no meu colo e os acordes
iniciais da valsa se fizeram ouvir, para espanto da mocinha não de todo
desinteressante. Sorri-lhe o melhor dos meus sorrisos e ter-lhe-ia mesmo
explicado o que se passava se ela, cansada talvez de passados
galanteios, não tivesse me interpretado mal. Fez uma cara de desprezo,
murmurou um raivoso "engraçadinho" e foi sentar-se no lugar que vagou.
Dali até a esquina de minha rua, fui o mais sonoro dos passageiros de
lotação que registra a história da linha "Estrada de Ferro—Leblon". O
Danúbio azul
foi bisado uma porção de vezes, só parando quando entrei no elevador.
Já então sentia-me compensado de tudo. A surpresa que faria à garotinha
me alegrava o bastante para esquecer as recentes desventuras.
Entrei em casa triunfante, de embrulho em riste a berrar:
— Adivinhe o que papai trouxe?
Rasguei o papel, tirei o presente e dei corda, enquanto ela, encantada,
pulava em torno de mim. Mas até agora, passadas 72 horas, a caixinha
ainda não tocou.
Enguiçou.
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Fonte: "Dois amigos e um chato", Stanislaw Ponte Preta - Coleção Veredas - 23a. edição - Editora Moderna