sexta-feira, 2 de março de 2012

Diálogo de festas

Iam os dois sentados no banco da frente. O ônibus era desses que levam oitocentos em pé e duzentos sentados. Mas ia meio vazio, naquela hora da madrugada. Pelo tempo que eu fiquei parado junto ao poste esperando-o, aquele devia ser o último ônibus do ano.

Mas isto não importa. O que me interessava — pelo menos naquele momento — era a conversa dos dois, no banco da frente.

Um era magrelinha, desses curvadinhos para a frente, vergado ao peso da vida. O outro parecia mais velho, mas era espigadinho. O cabelo ralo, mais grisalho do que o do companheiro.

No momento, quem falava era o espigadinho:

— Eu não cheguei a ver castanha, a não ser em vitrina, é lógico.

— Eu vi! — disse o vergado: — Eu tenho um vizinho... o Alcides, você conhece. Aquele que a filha fugiu com um sargento da Aeronáutica!

— Ainda está com ele?

— As castanhas?

— Não. O sargento da Aeronáutica, inda tá com a filha dele?

— Não. Com ela está é o filho que ele fez. Mas eu dizia: o Alcides comprou castanhas com o 13º. Ele trabalha numa firma que paga certo.

— Estrangeira?

— Deve de ser. O Alcides me mandou seis castanhas.

— Você é que é feliz!

— Feliz nada. Tive que dar pra outro. Tenho sete filhos, seis castanhas ia causar "problema".

O ônibus recebeu mais uns três ou quatro passageiros, que foram sentar lá na frente. A conversa entre os dois continuou. Ainda desta vez, quem falou primeiro foi o espigadinho:

— A mulher do patrão me deu uma camisa.

— Tava boa?

— Tava larga.

— Eu ganhei um sapato, por causa do serviço que eu fiz pra Dona Flora.

— Tava bão?

— Tava apertado.

O curvado jogou o toco de cigarro pela janela e deu um suspiro. O companheiro sorriu: — A gente devia fazer faxina pra dona que tem marido do nosso tamanho, assim o que a gente ganhasse delas no Natal pelo menos cabia na gente.

— Ganhar coisa larga é melhor que apertada.

— Ah é! Largo é melhor que apertado!

Ficaram calados, ruminando esta verdade natalina durante algum tempo. Depois um deles — já não me lembro qual dos dois — ponderou:

— Diz que este ano o comércio levou uma fubecada.

— Conversa. Tinha mais gente nas lojas que no ano passado. Ele sempre se queixa.

— Ué! Pra mim tanto faz. Quem não ganha já perdeu. Eu num tenho pra dar, também não posso ganhar.

Era um raciocínio honesto, cheio de experiência. Tanto que o outro balançou a cabeça, concordando. Mas advertiu o companheiro de que não podia se queixar do Natal. Afinal, ganhara uma cesta de festas.

— Todo ano eu consigo uma. Minha mulher gosta muito dessas cestas de Natal, pra guardar a roupa limpa e fazer a entrega pra freguesia. É fácil da gente arrumar essas cestas. Eles ganham elas, cheias de garrafas e latas de conserva. Depois de esvaziar até gostam quando a gente leva a cesta vazia pra nós.

O curvado pelo peso da vida ficou olhando pela janela e argumentou:

— Natal é bom por causa dessas novidades. Sempre sobra uma coisinha.

— Eu dei a cesta pra minha mulher. E tu? Que é que deu pra tua?

— Dei o sapato. Tava apertado ni mim, mas ela corta atrás e faz chinela.

Um deles fez sinal para o ônibus parar: — Eu salto aqui.

Deu um tapinha nas costas do outro e disse com a maior sinceridade, sem o mínimo laivo de ironia:

— Um feliz 1968 para você!

— Obrigado. Para você também!
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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quinta-feira, 1 de março de 2012

A revolta vacum

 Aconteceu no Rio Grande do Sul, onde a vaca abunda. E isto é mais sintomático ainda, pois as reações das classes produtoras nos seus centros de origem dão muito maior trabalho, para contornar a crise.

No lugar chamado Viamão, um distinto agricultor foi ferido a bala por uma vaca. Não foi crime passional, mas ninguém pode — em sã consciência — afirmar que não tenha sido o primeiro passo para uma revolução causada por pressão econômica ou talvez pela eterna injustiça da exploração da vaca pelo homem.

O agricultor — Sr. Heitor Barcelos Nunes — foi ordenhar a sua vaca e, em meio à tarefa, deve ter chateado a bichinha, pois esta largou-lhe um coice bem dado. O Heitor meteu uma ginga pro lado, para não ser atingido, mas foi pior a "amêndoa do que a sineta" — como diz o Ibrahim. A pata da vaca foi alcançar o revólver de Heitor e a arma disparou, tendo Heitor ido para o hospital onde, felizmente, foi posto fora de perigo.

Ora, ser ferido por uma vaca é coisa corriqueira. Chifre de vaca então vive ferindo gente, embora muita gente com chifre fique ferida por causa da vaca, enfim. .. deixa isso pra lá. Onde é que eu estava mesmo? Ah sim... pois é, o cara ser ferido a tiros por uma vaca é coisa inédita e tanto pode ser simples acidente como também o início de uma revolução.

Não é segredo para ninguém que a vaca vem sendo exploradíssima pelos tubarões do leite e da carne. No Rio Grande então, nem se fala. A vaca gaúcha, em matéria de coitada, só está perdendo para nordestino, embora este não tenha carnes e nem seja de dar leite.

Não é de hoje que os especuladores vêm fazendo da vaca a verdadeira mártir da economia nacional. Essas coisas um dia acabam por levar a classe oprimida à reação. Possivelmente esta vaca é a líder da revolução que aí vem. 

Ou eles dão uma colher-de-chá a essas coitadas opressas, ou então vai ter. Com as vacas armadas o leite vai secar, com as vacas armadas eu quero ver quem aumenta o preço do filé. Resta agora a declaração da turma da direita, dizendo que quem está fornecendo armas para as vacas são os comunistas.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975
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A cachaça é nossa

Esta aqui no circunspecto matutino: "Em virtude do grande interesse que diversas firmas importadoras no exterior têm demonstrado através de cartas e solicitações, o Itamaraty enviou para os escritórios; do SEPRO, em Nova Iorque, Londres e Berna, amostras de aguardente brasileira, fabricadas em vários Estados e de várias marcas".

A gente lê uma coisa dessas e fica a imaginar a cara enjoada daquela turma do Itamaraty, que só bebe champanha e uísque do bom, tendo que elogiar a nossa proverbial cachaça, para os estrangeiros interessados nela.

O sucesso da cangibrina no exterior é ponto pacífico. É só os gringos provarem o chamada capote-de-pobre para ficar freguês. Principalmente se for daquela pura que-só-alma-de-moça-donzela.

Mas a notícia dá mais detalhes. Diz ainda: "Por outro lado, o Ministério das Relações Exteriores pediu às firmas exportadoras e fabricantes brasileiros, que estejam interessados, o envio de mostruários e preços de suas cachaças". E então vem a idéia de traduzir o produto para o inglês, que é língua universal e vai ajudar a vender o produto.

Estive aqui a relembrar algumas marcas de cachaça e, para ajudar a indústria nacional, tratei de fazer algumas traduções para colocarem nos rótulos das garrafas destinadas ao exterior.

Por exemplo: "Eye of Water" (Olho d'água), "Crying at the slope" (Chora na Rampa), "Extra Grandmother" (Vovó Extra), "Big Shrimp" (Pitu), "Any One" (Qualquer Uma), "Memories of One Nine Hundred Forty" (Recordações de 1940), "Old Monkey" (Macaco Velho), "Virgin's Tear-drop" (Lágrima de Virgem), "Be quiet Lion" (Sossega Leão), "Exhalation of the Panther" (Bafo da Onça), etc, etc.

E puxa... será um bocado bacaninha ver os gringos tomando "track of lemon" (batida de limão).

Não há brasileiro que não se sinta orgulhoso ao ver um "lord" cheio de bacanidade num sofisticado clube londrino, pedindo ao garçom "aquela que matou o guarda", com o maior sotaque britânico.

— Please, waiter... give me that one who kül the policeman!
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975
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