Tinha resolvido que este ano a família iria veranear! Alugou uma casa em Petrópolis e levou todo mundo, inclusive os brinquedos das crianças, a geladeira — porque a desgraçada da senhoria escondera a dela num galpão do fundo do quintal, que ficou trancado a sete chaves — cobertores, a rede (para armar na varanda), enfim, fez uma mudança legal.
Instalou a família e desceu novamente para o Rio. Ele, coitado, não podia gozar as delícias do clima da serra. Escravo do padrão ouro, teria que ficar cá em baixo, trabalhando, mas subiria às sextas-feiras, para descansar um bocado.
E precisava mesmo: sabem como é; com a família fora, enveredou para o perigoso caminho da galhofa e toda noite caía na maior baderna.
Às vezes, quando chegava com o dia clareando, ao se lembrar que dali a horas teria de estar na cidade, enfrentando o trabalho, sorria só de pensar na casa que alugara no fresquinho. Era uma casa acolhedora, simpática mesmo, e tão calma! Ainda mais porque a casa ao lado — informaram-no ao alugar — estava praticamente abandonada, uma vez que seus proprietários raramente subiam para ocupá-la. E ele então suspirava, pensando no regalo que ia ter.
Na primeira sexta-feira, lá se foi serra acima, com o carro cheio de frutas, biscoitos, essas bossas. Chegou de noitinha, beijou as crianças, a esposa e até a sogra (que subiu para dar uma mãozinha) e depois de jantar regaladamente, meteu-se debaixo das cobertas, dos tépidos lençóis cheirando a coisa lavadinha. Num minuto roncava toda a sua canseira de trabalhos e prevaricações cariocas.
Foi quando o galo cantou. Bateu asas e meteu um pungente co-co-ró-có que veio ferir seus ouvidos e acordá-lo de estalo. "Oh diabo... pensou, ferrei no sono mesmo. Os galos já estão cantando... deve ser de madrugada". Virou para o lado e já estava quase dormindo, quando o galo meteu outro canto. Remexeu-se na cama e achou que aquele galo era um chato. Podia perfeitamente parar de cantar. Mas qual, o galo cantou a segunda, a terceira, a quarta vez... não parou mais de cantar.
Levantou-se estremunhado, pensando em fazer um café.
Acordar cedinho era bom para a saúde — lembrou-se ele, só para se consolar. Mas quando passou pela sala rumo à cozinha e viu no relógio que eram 11 e meia, correu sobressaltado ao relógio de pulso em cima da mesinha de cabeceira, em busca de confirmação. Tava lá: 11 e meia. Galo desgraçado.
Desistiu do café e voltou para a cama. Só que praticamente não dormiu mais. Quando já estava quase, naquele período entre semiconsciente e o semidormido, o galo lascava o canto outra vez.
De manhã, de cara murcha, disse para a mulher:
— Mata o galo para o almoço.
— Que galo? — estranhou a distinta dama.
— Esse galo que cantou a noite inteira e não me deixou dormir.
Aí a senhora explicou que também sofria insônias por causa do galo, mas acontece que o galo era do vizinho: pertencia ao caseiro da casa ao lado, a tal que vivia fechada porque os proprietários não subiam nunca. Ele coçou a cabeça e coçando a cabeça ficou durante toda a noite de sábado, pois o galo era um chato e cantava sem parar até mesmo de dia, como ficara provado durante as 12 horas que precederam a sua segunda noite em claro.
De manhã estava doido para comer um "coc au vin". Mais por vingança do que por apetite. Saiu de sua casa e foi bater na do vizinho. Veio o caseiro e propôs a compra do galo. O caseiro estranhou; pois se havia uma quitanda na esquina, com um monte de galos para vender, por que o cavalheiro queria comprar o seu?
Como? Para comer? Ora essa... e o caseiro sentiu-se ofendido. Aquele galo era de estimação, criara o bichinho desde que era pinto.
— Mas ele canta sem parar, pombas! Sim, de fato cantava, concordou o caseiro, com um certo orgulho, e — por isso mesmo — não vendia de jeito nenhum. Ele apreciava um canto de galo assim, na calada da noite. O homem ofereceu três contos, subiu para cinco e chegou a querer pagar dez, mas o caseiro deu uma bela prova de bom caráter, ao dizer que o galo valia muito menos, mas para matar não vendia.
Na semana seguinte subiu de novo e tornou a viver o drama do galo. O pior de tudo continuava a ser aquela insônia por motivos galináceos. Já nem estava fazendo as farras que programara no Rio, por causa daquele maldito galo. Gastara um dinheirão para alugar a casa e poder ficar solto no Rio e via tudo ir por água abaixo por causa de um simples co-co-ró-có.
Naquele domingo fez uma inspeção por cima do muro e reparou que o caseiro do lado não tinha nem criação de galinhas. Era só aquele maldito galo.
Voltou a bater no portão do vizinho. O caseiro veio e ele o recebeu com um sorriso:
— Se é pra vender o galo não adianta, doutor. Eu jurei que não vendo e sou muito religioso. Não. Não queria mais comprar o galo... mas estivera pensando. Quem sabe o galo não cantava assim por falta de galinha? Estivera inspecionando também e notara que o caro amigo só tinha de si, no quintal, aquele galo. Se o amigo não levasse a mal, traria umas galinhas de presente para ele.
— Ou melhor — emendou — para o seu galo.
O caseiro concordou. Não estava em situação de recusar presentes e, já na outra semana, quando ele subiu de novo, trazia quatro belas galinhas de presente para o vizinho. A mulher até bronqueou, pois ele prometera trazer um pernil e o dinheiro não chegara: em vez de trazer o pernil pra família, trazia aquelas galinhas para o galo do vizinho. Ridículo.
Encurtando conversa: as galinhas foram soltas no quintal, segundo relato fiel do caseiro, mas de noite foi a mesma coisa. O galo nem se importou com as galinhas. Cantou desbragadamente, de cinco em cinco minutos. Não queria nada com as galinhas, ele queria era cantar. Foi aí, aliás, que passou a chamar o galo de Cauby — numa homenagem.
E assim foi até o período do carnaval. Quando subiu na última sexta-feira em que tinha direito à casa, para passar os dias de carnaval (logo depois teria que entregar as chaves porque o aluguel acabava ali), chegou a Petrópolis mais triste que um tango de arrabalde.
No entanto, o caseiro não foi mais incomodado com reclamações. O caseiro até estranhou, quando, na quarta-feira de cinzas, com a família e todos os trens aboletados no carro, ele lhe deu um cumprimento efusivo. O caseiro respondeu, deu de ombros e esqueceu o temporário vizinho.
Mas estranhar mesmo o caseiro estranhou quando — passada uma semana — ouviu baterem palmas no portão. Foi ver quem era e era o cara que quis comprar o seu galo. Deu bom dia e teve o desprazer de ouvir nova proposta:
— Meu amigo, eu subi a Petrópolis especialmente para comprar seu galo.
— Mas doutor... eu já não disse que não vendo? Sim, dissera, mas isso foi quando ele confessou que queria matar o galo. Agora era diferente: vinha comprar o galo para levar pro Rio, onde — jurava — seria bem tratadíssimo.
O caseiro arregalou os olhos, incrédulo. Palavra de honra, não tinha a menor intenção de matar o galo. Pelo contrário.
— Se o senhor não quer matar o galo, por que faz tanta questão de comprar?
— Porque nenhum canta tanto quanto ele — informou o comprador em potencial.
— Eu sei disso — tornou o porteiro, novamente orgulhoso.
— Por isso eu quero comprá-lo — e, visivelmente encabulado, esclareceu: — Fiquei viciado. Não consigo mais dormir sem galo cantando.
E agora Cauby (o galo) canta a noite inteira na área de um edifício de Copacabana, chateando 48 condôminos que, por sua vez, de cinco em cinco minutos, telefonam para o síndico perguntando quem é o dono do bicho, e quanto quer para silenciá-lo. Mas a ave é de estimação, para matá-la o dono não vende.
Dizem até que — para o Cauby cantar mais — ele está misturando bolinha no milho do galo.
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Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975