quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A gratificação

Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seu jardim, há uma estátua nua que, nas noites frias, morre gelada). Seu palácio saiu nos "mais belos interiores" de Manchete. Mas o que me fascina, em certas casas, é o requinte.

Outro dia, fui visitar outro casal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma pia inexcedível. A pia ainda não era nada. O que me deslumbrou foi a bica.

Enxuguei as mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe, de olho rútilo: — "Que bica! Que bica!". E ele, na sua flamejante modéstia: — "Ouro maciço!".

Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquela que, certa vez, dizia, lânguida, meio alada: — "Eu sou amante espiritual do Guevara". Em seguida, voltando à vida real, levou-nos para ver o retrato do "Che" em sua alcova. Lá estava ele, de boina; a barba crespa virilizava a doçura da expressão quase infantil. Pois bem. E foi justamente a "amante espiritual" de Guevara que telefonou, ontem, para mim.

Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato de Guevara ia bem de saúde etc. etc. Zangou-se, risonhamente: — "Cada vez mais reacionário!". E eu: — "Pelo amor de Deus!". Mas ela estava com pressa e foi dizendo: — "Vem hoje aqui em casa, ouviu?". Criou um mistério, um suspense: — "Tenho uma surpresa". Resisti de puro charme. Finalmente, disse que ia. Assim nos despedimos.

Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe: — "E a surpresa?". Brincou com a minha curiosidade: — "Calma, calma". Acabou dizendo que a surpresa era um padre. Assustei-me: — "Padre de passeata?". Fez espanto: — "Que história é essa de padre de passeata? Isso não existe!".

Expliquei-lhe que o padre de passeata era um fato concreto e histórico, Acabou admitindo que, realmente, o sacerdote comparecera a duas passeatas; e acrescentou: — "Uma cabeça. E olha. Mais inteligente do que d. Hélder".

Chamou o marido que ia passando, e perguntou: — "Não é mais inteligente do que d. Hélder?". O marido disse, grave, taxativo: — "Uma cabeça!". Se era "uma cabeça", e "mais inteligente do que d. Hélder", eu estava disposto a vê-lo e ouvi-lo.

Pouco depois, chegava "a cabeça". Nada de batina. O sacerdote estava vestido como um anúncio da Ducal. Quando apareceu, houve um frêmito em todos os decotes. Fui apresentado. "Muito prazer", de parte a parte. Duas ou três o levaram. E a dona da casa dizia, no meu ouvido: — "Vai falar sobre sexo". Insinuei: — "Já estou muito velho para educação sexual". Mas uma outra a chamava. Afastou-se.

E eu fui olhar na janela, que se abria para a noite. (O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grã-finas.  Especializara-se em sexo e Guevara). Daí a pouco, sou chamado: — a "cabeça" ia falar. A anfitriã fizera um teatrinho, com umas cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao nível da platéia. Alguém me sussurrou: — "Uma cultura!". E, justamente, a "cultura" começava a falar.

Disse, preliminarmente, que ia fazer uma palestra informal. Estaria disposto a responder perguntas. Mas frisou: — "Estamos aqui num encontro informal". Dizia "informal" com particular satisfação, como se a palavra lhe fizesse cócegas no céu da boca. Não começou imediatamente. No pequeno palco, andava de um lado para outro, de cabeça baixa, as mãos trançadas nas costas. E, súbito, da primeira fila, a anfitriã sugere: — "Conta aquela".

Parou, risonhamente, no meio do palco. Fingiu um lapso: — "Qual?". E a outra: — "Aquela!". Empina o queixo, faz um esforço de memória: — "Aquela?". Risos. As pessoas achavam graça. Ele sentiu que o lapso era um efeito. Fechava os olhos, cruzava os braços.

Teve que admitir: — "Sinceramente, não me lembro". E, como ele não se lembrava, não se sabia o quê, explodiu a gargalhada. O padre de passeata dramatizou o lapso. Apertou a cabeça entre as mãos. Sentiu o sucesso e o agarrou. Há de ter pensado: — "A platéia está no papo".

Um sujeito, a meu lado, com uma barriga de ginecologista, repetia, banhado em delícia: — "Uma cabeça! Uma cabeça!". Fui, então, varado por uma súbita recordação auditiva. Há um tango de Gardel que começava assim: — "Por uma cabeça" etc. etc. E o tango devia ser de Gardel e Le Pera.

Na platéia, já batiam palmas. Era o primeiro lapso aplaudido.

A dona da casa explicava: — "Aquela da prostituta. Aquela!".

O padre de passeata bateu na testa: — "Agora me lembro". E a anfitriã, de pé, virava-se para a platéia; dizia, radiante: — "Ótima, ótima!". Sentou-se novamente. Andando de um lado para outro, o sacerdote não tinha pressa. Parou numa extremidade do palco. De perfil para a platéia, olhando para o alto, disse: — "Realmente, realmente".

Começou: — "Prostituta". Suspirou. E, já no centro do palco, explicava: — "A prostituta não me espanta". Perguntou, de sopetão, à platéia: — "Os senhores se espantam com um bombeiro hidráulico, um ourives ou protético?". Silêncio. Recomeçou:

— "Ser prostituta também é um ofício". Repetiu, com certa ferocidade: — "Ofício, ofício, ofício". Pausa. Novo suspiro: — "Profissão". Profissão, como outra qualquer. "Ganha-pão." Ria agora: — "Aconteceu comigo um fato. Um episódio. Fato de rua".

Jogando as pausas, usando silêncios, ele deliciava os presentes. Disse: — "Nem sei se deva contar". Vozes protestaram: — "Conta, conta!". E o padre de passeata dispôs-se a contar. Agora estava mais ágil, mais lépido, mais brilhante: — "O caso é o seguinte: — fui abordado por uma mulher da vida. Digamos: — mulher da vida. Me abordou".

Excitação na platéia. As pessoas se entreolhavam. Longa pausa. Foi de uma extremidade a outra e vice-versa.

Disse: — "Me fez uma proposta". E, súbito, em tom castamente informativo, ele falou que, hoje, há trottoir por toda a cidade. "Até na porta da igreja." No passado, a prostituição estava localizada. Hoje, não. Às vezes, em ruas rigorosamente familiares, estritamente residenciais, nós vemos uma moça. Parece uma menina. O sujeito jura que é uma menina de família. E, ali, na calçada onde as crianças brincam, ela está exercendo uma profissão. "Não direi profissão infame, porque não há profissões infames. Há profissões."

Vozes perguntam: — "E o que é que o senhor fez?".

Repetiu, criando um suspense delicioso: — "O que é que eu fiz?". Continuou: — "Ela falou comigo em português. E eu respondi em alemão".

Perplexidade divertida.

A "amante espiritual de Guevara" pediu: — "Diz por que é que o senhor falou em alemão".

Sorria, banhado em sucesso: — "Pelo seguinte: — porque eu queria passar por estrangeiro. Saíra da igreja, estava sem batina. Pra todos os efeitos, eu não estava entendendo nada". A dona da casa, em pé, protestou: — "O senhor não está contando direito. Conta, conta. Por que é que o senhor não podia entender a proposta?". E ele, iluminado:

— "Porque se eu entendesse a proposta e recusasse, ela ia pensar que eu sou pederasta".

Foi uma ovação formidável. Os decotes se atiravam para o palco. Era uma euforia geral. E ele, que falara tão pouco, e usara mais pausas do que palavras, suspirava: — "Cansei". Vozes: — "Genial! Genial!".

Meia hora depois, a "amante espiritual de Guevara" chamou-o numa outra sala. E lá o padre de passeata recebeu, no envelope, o cachê.

[10/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Viva o morto!

Rosamundo estava no quarto, suando em bicas, para abotoar o colarinho e dar o laço da gravata. No verão ele detesta essas coisas protocolares e, se pudesse, iria até à posse de diretor de autarquia, com discurso, filmagem da "Atlântida" e presença de altas autoridades, em ceroulas.

Mas era o aniversário de seu afilhado e Rosamundo tinha que comparecer, levar presentes, ajudar — na qualidade de padrinho — o aniversariante a apagar as velinhas do bolo. Enfim, aquela chateação.

Já estava prontinho para sair, com o embrulho do presente debaixo do braço e o pescoço envolto em suor e colarinho engomado, quando o telefone tocou. A mulher atendeu e disse um "Não" de espanto. Agradeceu a informação e, virando-se para Rosamundo que, distraidamente, tinha jogado a cinza do charuto no aquário dos peixinhos:

— Morreu o chefe da sua repartição!

Mais aquela. Se fosse ao aniversário não teria tempo de passar no velório, se fosse ao velório não daria tempo para entregar o presente do afilhado. Ficou naquela indecisão de todos os distraídos e acabou resolvendo a coisa de maneira mais prática: iria dar um pulinho no velório, faria um pouco de presença e depois se mandava para o aniversário. Das duas chateações, a menor.

Foi o que fez.

Chegou esbaforido no velório do chefe da repartição, com aquele embrulho de presente debaixo do braço e parece que sofreu a influência do referido embrulho porque, mal entrou na sala, dando com o corpo do chefe em cima da mesa, cercado por quatro velinhas, nem conversou: com sua distração habitual, encaminhou-se para a viúva, entregou-lhe o embrulho e disse:

— Muitas felicidades pelo dia de hoje.

Depois, sempre com aquele ar ausente que é faceta marcante de sua entortada personalidade, dirigiu-se para a mesa onde estava o falecido, soprou as velinhas e cantou o "Parabéns pra você nesta data querida".
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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Mulher reformada

Há quem diga que Rosamundo deve pensar que quem descobriu o Brasil foi o Duque de Caxias, de tanto que ele confunde o patrono do nosso Exército com Pedro Álvares Cabral. Não têm conta às vezes que Rosamundo entregou a um vagabundo qualquer uma cédula de mil cruzeiros, com linda pose de Cabral, pensando que era uma japonezinha de duas pratas, com o semblante do Duque, à guisa de esmola.

A mulher de Rosamundo já o proibiu do vício do óbolo, na certeza de que a distração e filantropia são duas coisas que não combinam. Aliás, a mulher do Rosamundo era bem feinha, prova de que, até pra casar, o infeliz se distraiu.

E foi justamente por ser feia que a mulher de Rosamundo resolveu fazer uma recauchutagem para surpreender o marido.

Durante a habitual temporada em Petrópolis ela fez que subiu a serra e foi, mas é pra uma clínica de um desses médicos bárbaros para reformar mulher bagulho: um cirurgião-plástico.

Botou nariz novo, afinou cintura, tirou barriga, esticou a pele, amendoou os olhos. Fez misérias. E, não contente, saiu direto da clínica para um salão de beleza, onde tingiu os cabelos e castigou um penteado desses modernos, que a mulher parece que está com uma moringa na cabeça.

Assim completamente remodelada e até que mais jeitosa, apareceu em casa. Foi entrando e nem disse palavra, foi encontrar Rosamundo na sala e tacar-lhe um beijo estilo desloca-maxilar. Rosamundo ficou verdadeiramente encantado e surpreendido com a mulher.

Mas puxa!... Rosamundo é um bocado distraído. Passou a noite toda naquele encantamento e só na manhã seguinte é que fez a primeira referência à vida do casal. Virou-se para a mulher e disse:

— Filhinha eu acho bom você deixar o número do telefone e ir caindo fora, que minha esposa está em Petrópolis e pode chegar de repente. Se ela encontrar você aqui vai dar uma bronca desgraçada.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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