terça-feira, 29 de novembro de 2011

O homem que não foi a São Paulo

De repente deu-lhe aquela chateação de ter que ir para São Paulo. Olhou para a valise já prontinha, que a mulher preparara e que descansava sobre uma poltrona do escritório, e puxou um longo suspiro.

Depois olhou para a passagem da Ponte Aérea que estava em cima da mesa e sentiu um leve, um quase imperceptível mal-estar.

Afinal, tinha pouca coisa a fazer em São Paulo. Se tivesse sorte de conseguir uma linha, talvez resolvesse tudo com o chefe do escritório de lá e então ficaria com uma noite livre no Rio, iria para onde bem entendesse, dormiria num hotel qualquer e não teria de dar satisfações a Mercedes, que esta estaria crente que ele seguira mesmo para São Paulo.

Pegou o telefone e discou "Interurbano". A voz neutra e irritante da telefonista perguntou o que ele queria. Cruzou os dedos e pediu São Paulo, aliviado de não ouvir em seguida aquela frase cretina: "Os circuitos estão ocupados, queira chamar mais tarde." Quando acabou de dar as ordens ao chefe do escritório, sentia-se bem melhor.

Ao pegar de novo o telefone, parecia muito bem disposto e teve de se conter para não demonstrar sua alegria:

— Mercedes? Sou eu. .. Já vou sim. Não sei, meu bem. Sigo agorinha para o aeroporto e pego o primeiro que tiver lugar. Obrigado. Outro pra você.

Desligou e ficou imaginando que era o golpe. Ir para um bar e encher a caveira? Telefonar para uma daquelas desajustadas de sempre? Ia optar pela segunda hipótese, quando se lembrou que já era um pouco tarde e mulher avulsa que se preze não continua avulsa depois que a tarde cai. O jeito era sair por aí... Mas novamente o telefone entrou em cena. A campainha soou e ele ouviu a voz do Augusto:

— Seu passe está livre para um pagode?

Aquilo caía do céu: — Puxa, Augusto... você encaixou na horinha. Imagine que eu ia para São Paulo e resolvi não ir... Mal telefonei para Mercedes... acabei de ligar, dizendo que ia, mas disposto a ficar por aqui mesmo.

— Ótimo! — exclamou o Augusto. — Pois eu estou de cacho aí com uma pequena bem razoável. Ela me avisou que tem uma amiguinha sobrando, coisa fina, e pediu que eu levasse um amigo.

— Tô nessa boca — berrou o que ia a São Paulo e não foi, achando que mais uma vez se confirmava a sua sorte com mulher. E apressou-se: — Diga à sua amiguinha para levar a outra que eu terei o maior prazer em desencaminhá-la.

Augusto esclareceu que não precisava isso. Já estava tudo combinado: as duas estariam no bar assim-assim, às tantas horas, esperando. E, a uma pergunta aflita, tratou de tranqüilizar o amigo: não conhecia a outra, mas devia ser boa sim, porque tivera o cuidado de se informar sobre este detalhe e sua pequena garantira que era papa-fina.

Saíram logo que Augusto chegou no escritório. Estava tão animado que já ia esquecendo a valise em cima da poltrona. Voltou, apanhou-a e, antes de apagar a luz, rasgou a passagem da Ponte Aérea e jogou na cesta. "Mercedes pode ver esta porcaria no meu bolso e vai ser fogo" — pensou.

E juntou ao pensamento um ditado de sua autoria que costumava usar sempre que se metia numa baderna: "Marido prevenido, casamento garantido."

Augusto manobrou o carro e entrou na vaga com facilidade. Antes de atravessarem a rua, apontou para o barzinho elegante da esquina, explicando que elas estavam esperando ali. Quando entraram na sala um tanto quanto penumbrosa, a penumbra não chegou para esconder a mulher que acenou em sua direção:

— Aquela é a minha — foi dizendo o Augusto — e a outra é a sua.

Como se ele não soubesse que era a sua!

Lá estava ela, toda fresca, no vestido vermelho que ele financiara na véspera. Aliás, foi o ar fresco que lhe deu mais raiva. Partiu por entre as mesas bufando e iniciou incontinenti o festival de bolachas.

— Mas o que é isto... mas o que é isto? — perguntava Augusto atônito.

Ninguém ali sabia direito por que é que ele estava batendo, mas Mercedes sabia perfeitamente por que é que estava apanhando.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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Werther

Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é o carioca radical. Sim, ninguém mais carioca, ninguém tão carioca. É uma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dos paralelepípedos da cidade.

Olha o Pão de Açúcar como se fosse a primeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensação de que a luz acaba de inaugurar o Corcovado.

Pois bem. E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando os pombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milho na mão. De repente, ouço o berro: — "Nelson! Nelson!". Era o Palhares, "o que não respeita nem as cunhadas".

Na calçada da Biblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome.

E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparada raspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem um arranhão, sem uma fratura e sem uma trombada.

Olhei o canalha. Como sempre, tinha uma pele de quem lavou o rosto há quinze minutos. E anunciou: — "Tenho uma pra te contar, menino!". Imaginei que devia ser a sua última conquista. O Palhares tem sempre uma "última conquista". E ele, já de olho rútilo, ia começar.

Súbito, balbucia: — "Até logo, até logo!". Segurei-o pelo braço: — "Que é isso, rapaz?". Diz, baixo: — "Vem aí o Torres. Já me viu. Torres, o homem de bem. O maior chato do Rio de Janeiro. Adeus!". Largou-me e fugiu.

E eu, que também conhecia o Torres, tratei de escapar.

Atravessei para a Câmara, dobrei a Evaristo da Veiga e fui andando, rente à parede. Se vocês conhecessem o Torres, "o homem de bem", justificariam o meu horror e o do Palhares.

O Torres é a virtude mais promocional do Rio de Janeiro. Em todas as esquinas, salas e retretas ele esfrega, na cara dos outros, a sua honra. Lembro-me de um dia em que, na esquina de Sete de Setembro, bramava: — "Sou um homem de bem! Sou um homem de bem!". E quando ele aparece as pessoas fogem, como se ele fosse o Juízo Final ou, pior do que isso, o rapa.

Jamais o Torres deu um biscoito a um pobre sem promover tal esmola em manchetes. Mas não é ele o único Narciso da caridade. A toda hora e em toda parte, há íntegros que nos atropelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor. Por isso, chega a ser inquietante o caso de Abrahim Tebet.

Digo-lhe o nome e não sei se vocês o conhecem. Foi homem do esporte, do futebol, do escrete. Mas o que me interessa é o Abrahim Tebet "ser humano". Muita gente só tem de humano o terno, a gravata, os sapatos. E passamos meses e até anos sem ver ninguém parecido com o ser humano.

Há dois ou três dias, Abrahim tomou posse do cargo de presidente do Conselho Estadual de Trânsito. Ah, que figura patética e, eu quase dizia, chapliniana, a do "empossado".

Depois do governador Negrão de Lima, falou o próprio Abrahim. Imaginei: — "Vai chorar!". Mas não chorou. Ah, o esforço que fez para controlar a própria tensão. Ao lado, estava o Luís Alberto Bahia, o chefe da Casa Civil. Nós sabemos que o poder gosta de pôr uma máscara hirta. Mas o nosso Bahia é, justamente, o poder dionisíaco. Sai de casa, num suntuário chapa-branca, e leva no bolso várias gargalhadas. Ria para mim, para o Abrahim, para todo o mundo. Essa alegria antioficial estarrecia os mais tímidos.

Mas sem querer estou pecando contra o meu assunto. Volto a ele. Eis o que eu queria dizer: — vimos a bondade do Torres, que se badala como um sino indigno. Mas a do Abrahim é, justamente, a que se esconde, a que se nega, e se disfarça. Diria que ele faz o bem às escondidas, como quem pratica um ato obsceno. É bom com vergonha de o ser.

Quando ele deixou a CBD, houve quem sussurrasse o vaticínio: — "Vai morrer de fome". Aí está. Abrahim, o doce, sempre terá uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. (Não sei se eu disse que o Luís Alberto Bahia tem o riso luminoso e forte dos sátiros vadios). Falei de Abrahim e passo ao Nelsinho Motta.

Dias atrás, escrevi sobre o jovem cronista, e não só cronista: — também homem de TV, da canção, do romance (ainda não escreveu nenhum romance, mas será, um dia, romancista). E o Nelsinho, que é romântico por dentro e por fora, romântico no terno, romântico na gravata, romântico na calça de veludo e romântico na palidez. Faço ponto, porque já vou arquejando.

E, como ia dizendo: — o Nelsinho escreveu, justamente, contra os românticos. Há uma rapaziada aí que anda bebendo nas fontes líricas da música popular. E meteu-lhe o pau.

Não contente, Nelsinho faz do Chico Buarque de Holanda uma imagem cruelmente inexata. Na sua versão, o autor de A banda seria um vampiro saudoso de carótidas, querendo beber o sangue gelado da burguesia. Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o anti-Chico. Ninguém mais nostálgico, ninguém mais fremente, ninguém mais pungente.

E como é antiga e infeliz a sua ternura. Querem transformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzal vagabundo.

Dirá o leitor: — "E Roda viva?". Ah, Roda viva é também o anti-Chico, e por outras palavras: — Roda viva é o José Celso. O diretor sentou-se na alma do espetáculo. No texto que lá aparece não há uma janela. Ora, o Chico tem, como as modinhas antigas, a obsessão das janelas. Eu me lembro de uma letra de Hermes Fontes (de Hermes Fontes ou Olegário). Diz assim: — "Pela janela da saudade" etc. etc. Aí está insinuada a Carolina.

E eu achei que toda a crônica do Nelsinho tinha um som de moeda falsa. Por que o pudor de ser piegas? Que somos nós, todos nós, senão 80 milhões de piegas? E o Nelsinho, que é capaz de fazer um pacto de morte na primeira esquina, e Chico, idem? Um ou outro devia aparecer na boca-de-cena e anunciar, de fronte alta: — "Damas e cavalheiros: — Eu sou um piegas nato e hereditário". E o Sérgio Buarque de Holanda, uma das inteligências mais sérias do Brasil? Em várias entrevistas, já declarou: — "Eu sou apenas o pai do Chico". Eis um gesto do piegas radical e incontrolável.

Quando escrevi sobre o Nelsinho, estava disposto a uma feroz polêmica. Seria o patético, raiando pelo sublime: — de um lado, eu, velho, de uma velhice inenarrável; de outro lado, o Nelsinho, com todo o esplendor das Novas Gerações.

Mas não há tal polêmica. O Nelsinho pensa como eu, sente como eu, e mais: — usa contra mim as minhas próprias piadas. Quando cruzar com esta figura da belle époque, hei de perguntar-lhe: — "Quando é o pacto de morte?".

E dirá ele, pálido como um Werther: — "Estou caprichando".

[8/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Pagode no Cosme Velho

Foi ao cair da tarde. O amigo telefonou, ele estava sonolento no escritório refrigerado, refestelado numa poltrona, com os pés estendidos em cima da mesa. Estava mesmo doido para um programa diferente.

Atendeu o telefone meio aborrecido, pensando que fosse algum chato, falando de negócios. Mas era o amigo convidando para o "Grito de Carnaval".

— Mas já??? — perguntou, espantado.

O amigo explicou que era um misto de grito de carnaval com grito de Natal, enfim, era uma festinha dessas de sair faísca, só com gente séria, isto é, gente que sai do sério, mas não espalha. Uísque às pampas, mulher aos potes, dando sopa. Coisa muito íntima e se ele não fosse não saberia nunca o que perdeu.

— Mas eu estou com terno de casimira escura. Hoje fui à missa de sétimo dia do meu sócio. Você não vai querer que eu vá para um pagode desses vestido de Jorgito Chaves.

— E isto é problema? — incentivava o amigo. Saía do escritório, ia numa loja por ali por perto e comprava um short colorido, uma camisa dessas de espantar americano e um chapeuzinho "Nat King Cole".

— E os sapatos? Eu estou de sapatos pretos, meias idem e ligas na canela.

Pois que fosse assim mesmo. Dava um toque de galhofa na coisa: short, camisa colorida, chapeuzinho "Nat King Cole", mas de sapatos e meias pretas, com liga na canela.

— Não ficarei ridículo? — perguntou, com certo receio.

— Ora, Rosamundo! Ridículo é ir para casa se chatear, tendo um pagode desses dando sopa — disse o amigo, convencendo-o em definitivo.

Combinaram tudo e ele já ia desligar, quando se lembrou do outro problema:

— Mas onde é que eu vou mudar de roupa? Se eu sair daqui do escritório vestido para a festa, eu fico tão desmoralizado com meus empregados que eles vão exigir até o 14º salário.

— No carro, Rosamundo. A festa é lá no Cosme Velho, numa casa discretíssima, pombas! Você muda de roupa no carro.

É... mudaria a roupa no carro.- Apertou o telespeak, quando a secretária entrou (era uma velhota muito da castigada pelas intempéries da vida, que sua mulher escolhera para secretária), avisou que ia sair.

— Se Margarida (era a esposa) telefonar, diga que eu fui a uma reunião no ministério e chegarei mais tarde para jantar.

Dali saiu direto para uma loja de artigos mais ou menos masculinos. O leitor vai perdoar o "mais ou menos", mas é que certas lojas grã-finas de artigos masculinos andam vendendo cada camisinha, cada calcinha apertadinha de confecção tão marota que, eu vou te contar... O nosso amigo, porém, queria era um short, um chapeuzinho, aquele, etc. Entrou, escolheu tudo, disse que não precisava embrulhar, pagou e se sacudiu para a tal casa do Cosme Velho.

Estacionou bem pertinho, mas não em frente, para poder trocar de roupa, e meia hora depois estava se esbaldando na festa, abraçado a uma pioneira sexual, dessas que de tarde são mocinhas desgarradas e de noite passeiam pela Avenida Atlântica assoviando fininho para os carros que passam.

O forró só acabou aí pelas onze da noite. Suado e amarrotado voltou para o carro e então percebeu que esquecera de trancar a porta.

A suspeita que logo lhe veio à mente transformou-se na amarga realidade. Alguém se aproveitara e roubara sua roupa. E agora? Como é que ia pra casa naqueles trajes?

— Bem que eu estava com a impressão de que isto ia dar galho — bufava ele para o amigo que o convidara. Este, sentindo-se um pouco culpado (mais por causa do uísque do que por ter consciência), foi quem encontrou a desculpa ideal.

— Vai pra casa assim mesmo. Quando sua mulher perguntar você diz que ia passando debaixo de um tapume, quando o pintor que pintava o tapume deixou cair a lata de tinta em cima de você. Diz que sua roupa ficou inutilizada. Diz que estava comigo que eu confirmo depois. Fala pra ela que o jeito foi entrar numa loja qualquer e comprar um short e uma camisa, que era mais barato.

— E o chapeuzinho "Nat King Cole"? Que é que eu faço? — dizia o infeliz, sem disfarçar o nervosismo.

— O chapeuzinho você joga fora agora, sua besta — propôs o outro, juntando a ação à palavra e atirando longe o dito cujo.

Rosamundo chegou em casa meio encolhido, com medo de que a mentira não colasse. A esposa estava de tão bom humor que acreditou em tudo. Já suspirava aliviado, quando ela disse:

— A roupa suja de tinta está ali naquela poltrona, seu cretino.

Só então ele viu, só então percebeu: o paletó, a gravata, as calças, tudo dobradinho, tal como ele deixara no assento traseiro do carro, estava numa poltrona da sala.

O desquite será decidido breve, embora Rosamundo não saiba como pôde dar tanto azar assim da esposa passar justo numa rua sem qualquer movimento, lá no Cosme Velho, ver seu carro... puxa, era muita falta de sorte!

Aliás, não era. O desquite, para Rosamundo, até que será um grande negócio, porque ele não sabe, mas Margarida também ia àquele pagode.

Só não foi porque, ao chegar na porta da casa, viu o carro de Rosamundo estacionado.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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