terça-feira, 29 de novembro de 2011

Werther

Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é o carioca radical. Sim, ninguém mais carioca, ninguém tão carioca. É uma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dos paralelepípedos da cidade.

Olha o Pão de Açúcar como se fosse a primeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensação de que a luz acaba de inaugurar o Corcovado.

Pois bem. E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando os pombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milho na mão. De repente, ouço o berro: — "Nelson! Nelson!". Era o Palhares, "o que não respeita nem as cunhadas".

Na calçada da Biblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome.

E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparada raspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem um arranhão, sem uma fratura e sem uma trombada.

Olhei o canalha. Como sempre, tinha uma pele de quem lavou o rosto há quinze minutos. E anunciou: — "Tenho uma pra te contar, menino!". Imaginei que devia ser a sua última conquista. O Palhares tem sempre uma "última conquista". E ele, já de olho rútilo, ia começar.

Súbito, balbucia: — "Até logo, até logo!". Segurei-o pelo braço: — "Que é isso, rapaz?". Diz, baixo: — "Vem aí o Torres. Já me viu. Torres, o homem de bem. O maior chato do Rio de Janeiro. Adeus!". Largou-me e fugiu.

E eu, que também conhecia o Torres, tratei de escapar.

Atravessei para a Câmara, dobrei a Evaristo da Veiga e fui andando, rente à parede. Se vocês conhecessem o Torres, "o homem de bem", justificariam o meu horror e o do Palhares.

O Torres é a virtude mais promocional do Rio de Janeiro. Em todas as esquinas, salas e retretas ele esfrega, na cara dos outros, a sua honra. Lembro-me de um dia em que, na esquina de Sete de Setembro, bramava: — "Sou um homem de bem! Sou um homem de bem!". E quando ele aparece as pessoas fogem, como se ele fosse o Juízo Final ou, pior do que isso, o rapa.

Jamais o Torres deu um biscoito a um pobre sem promover tal esmola em manchetes. Mas não é ele o único Narciso da caridade. A toda hora e em toda parte, há íntegros que nos atropelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor. Por isso, chega a ser inquietante o caso de Abrahim Tebet.

Digo-lhe o nome e não sei se vocês o conhecem. Foi homem do esporte, do futebol, do escrete. Mas o que me interessa é o Abrahim Tebet "ser humano". Muita gente só tem de humano o terno, a gravata, os sapatos. E passamos meses e até anos sem ver ninguém parecido com o ser humano.

Há dois ou três dias, Abrahim tomou posse do cargo de presidente do Conselho Estadual de Trânsito. Ah, que figura patética e, eu quase dizia, chapliniana, a do "empossado".

Depois do governador Negrão de Lima, falou o próprio Abrahim. Imaginei: — "Vai chorar!". Mas não chorou. Ah, o esforço que fez para controlar a própria tensão. Ao lado, estava o Luís Alberto Bahia, o chefe da Casa Civil. Nós sabemos que o poder gosta de pôr uma máscara hirta. Mas o nosso Bahia é, justamente, o poder dionisíaco. Sai de casa, num suntuário chapa-branca, e leva no bolso várias gargalhadas. Ria para mim, para o Abrahim, para todo o mundo. Essa alegria antioficial estarrecia os mais tímidos.

Mas sem querer estou pecando contra o meu assunto. Volto a ele. Eis o que eu queria dizer: — vimos a bondade do Torres, que se badala como um sino indigno. Mas a do Abrahim é, justamente, a que se esconde, a que se nega, e se disfarça. Diria que ele faz o bem às escondidas, como quem pratica um ato obsceno. É bom com vergonha de o ser.

Quando ele deixou a CBD, houve quem sussurrasse o vaticínio: — "Vai morrer de fome". Aí está. Abrahim, o doce, sempre terá uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. (Não sei se eu disse que o Luís Alberto Bahia tem o riso luminoso e forte dos sátiros vadios). Falei de Abrahim e passo ao Nelsinho Motta.

Dias atrás, escrevi sobre o jovem cronista, e não só cronista: — também homem de TV, da canção, do romance (ainda não escreveu nenhum romance, mas será, um dia, romancista). E o Nelsinho, que é romântico por dentro e por fora, romântico no terno, romântico na gravata, romântico na calça de veludo e romântico na palidez. Faço ponto, porque já vou arquejando.

E, como ia dizendo: — o Nelsinho escreveu, justamente, contra os românticos. Há uma rapaziada aí que anda bebendo nas fontes líricas da música popular. E meteu-lhe o pau.

Não contente, Nelsinho faz do Chico Buarque de Holanda uma imagem cruelmente inexata. Na sua versão, o autor de A banda seria um vampiro saudoso de carótidas, querendo beber o sangue gelado da burguesia. Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o anti-Chico. Ninguém mais nostálgico, ninguém mais fremente, ninguém mais pungente.

E como é antiga e infeliz a sua ternura. Querem transformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzal vagabundo.

Dirá o leitor: — "E Roda viva?". Ah, Roda viva é também o anti-Chico, e por outras palavras: — Roda viva é o José Celso. O diretor sentou-se na alma do espetáculo. No texto que lá aparece não há uma janela. Ora, o Chico tem, como as modinhas antigas, a obsessão das janelas. Eu me lembro de uma letra de Hermes Fontes (de Hermes Fontes ou Olegário). Diz assim: — "Pela janela da saudade" etc. etc. Aí está insinuada a Carolina.

E eu achei que toda a crônica do Nelsinho tinha um som de moeda falsa. Por que o pudor de ser piegas? Que somos nós, todos nós, senão 80 milhões de piegas? E o Nelsinho, que é capaz de fazer um pacto de morte na primeira esquina, e Chico, idem? Um ou outro devia aparecer na boca-de-cena e anunciar, de fronte alta: — "Damas e cavalheiros: — Eu sou um piegas nato e hereditário". E o Sérgio Buarque de Holanda, uma das inteligências mais sérias do Brasil? Em várias entrevistas, já declarou: — "Eu sou apenas o pai do Chico". Eis um gesto do piegas radical e incontrolável.

Quando escrevi sobre o Nelsinho, estava disposto a uma feroz polêmica. Seria o patético, raiando pelo sublime: — de um lado, eu, velho, de uma velhice inenarrável; de outro lado, o Nelsinho, com todo o esplendor das Novas Gerações.

Mas não há tal polêmica. O Nelsinho pensa como eu, sente como eu, e mais: — usa contra mim as minhas próprias piadas. Quando cruzar com esta figura da belle époque, hei de perguntar-lhe: — "Quando é o pacto de morte?".

E dirá ele, pálido como um Werther: — "Estou caprichando".

[8/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Pagode no Cosme Velho

Foi ao cair da tarde. O amigo telefonou, ele estava sonolento no escritório refrigerado, refestelado numa poltrona, com os pés estendidos em cima da mesa. Estava mesmo doido para um programa diferente.

Atendeu o telefone meio aborrecido, pensando que fosse algum chato, falando de negócios. Mas era o amigo convidando para o "Grito de Carnaval".

— Mas já??? — perguntou, espantado.

O amigo explicou que era um misto de grito de carnaval com grito de Natal, enfim, era uma festinha dessas de sair faísca, só com gente séria, isto é, gente que sai do sério, mas não espalha. Uísque às pampas, mulher aos potes, dando sopa. Coisa muito íntima e se ele não fosse não saberia nunca o que perdeu.

— Mas eu estou com terno de casimira escura. Hoje fui à missa de sétimo dia do meu sócio. Você não vai querer que eu vá para um pagode desses vestido de Jorgito Chaves.

— E isto é problema? — incentivava o amigo. Saía do escritório, ia numa loja por ali por perto e comprava um short colorido, uma camisa dessas de espantar americano e um chapeuzinho "Nat King Cole".

— E os sapatos? Eu estou de sapatos pretos, meias idem e ligas na canela.

Pois que fosse assim mesmo. Dava um toque de galhofa na coisa: short, camisa colorida, chapeuzinho "Nat King Cole", mas de sapatos e meias pretas, com liga na canela.

— Não ficarei ridículo? — perguntou, com certo receio.

— Ora, Rosamundo! Ridículo é ir para casa se chatear, tendo um pagode desses dando sopa — disse o amigo, convencendo-o em definitivo.

Combinaram tudo e ele já ia desligar, quando se lembrou do outro problema:

— Mas onde é que eu vou mudar de roupa? Se eu sair daqui do escritório vestido para a festa, eu fico tão desmoralizado com meus empregados que eles vão exigir até o 14º salário.

— No carro, Rosamundo. A festa é lá no Cosme Velho, numa casa discretíssima, pombas! Você muda de roupa no carro.

É... mudaria a roupa no carro.- Apertou o telespeak, quando a secretária entrou (era uma velhota muito da castigada pelas intempéries da vida, que sua mulher escolhera para secretária), avisou que ia sair.

— Se Margarida (era a esposa) telefonar, diga que eu fui a uma reunião no ministério e chegarei mais tarde para jantar.

Dali saiu direto para uma loja de artigos mais ou menos masculinos. O leitor vai perdoar o "mais ou menos", mas é que certas lojas grã-finas de artigos masculinos andam vendendo cada camisinha, cada calcinha apertadinha de confecção tão marota que, eu vou te contar... O nosso amigo, porém, queria era um short, um chapeuzinho, aquele, etc. Entrou, escolheu tudo, disse que não precisava embrulhar, pagou e se sacudiu para a tal casa do Cosme Velho.

Estacionou bem pertinho, mas não em frente, para poder trocar de roupa, e meia hora depois estava se esbaldando na festa, abraçado a uma pioneira sexual, dessas que de tarde são mocinhas desgarradas e de noite passeiam pela Avenida Atlântica assoviando fininho para os carros que passam.

O forró só acabou aí pelas onze da noite. Suado e amarrotado voltou para o carro e então percebeu que esquecera de trancar a porta.

A suspeita que logo lhe veio à mente transformou-se na amarga realidade. Alguém se aproveitara e roubara sua roupa. E agora? Como é que ia pra casa naqueles trajes?

— Bem que eu estava com a impressão de que isto ia dar galho — bufava ele para o amigo que o convidara. Este, sentindo-se um pouco culpado (mais por causa do uísque do que por ter consciência), foi quem encontrou a desculpa ideal.

— Vai pra casa assim mesmo. Quando sua mulher perguntar você diz que ia passando debaixo de um tapume, quando o pintor que pintava o tapume deixou cair a lata de tinta em cima de você. Diz que sua roupa ficou inutilizada. Diz que estava comigo que eu confirmo depois. Fala pra ela que o jeito foi entrar numa loja qualquer e comprar um short e uma camisa, que era mais barato.

— E o chapeuzinho "Nat King Cole"? Que é que eu faço? — dizia o infeliz, sem disfarçar o nervosismo.

— O chapeuzinho você joga fora agora, sua besta — propôs o outro, juntando a ação à palavra e atirando longe o dito cujo.

Rosamundo chegou em casa meio encolhido, com medo de que a mentira não colasse. A esposa estava de tão bom humor que acreditou em tudo. Já suspirava aliviado, quando ela disse:

— A roupa suja de tinta está ali naquela poltrona, seu cretino.

Só então ele viu, só então percebeu: o paletó, a gravata, as calças, tudo dobradinho, tal como ele deixara no assento traseiro do carro, estava numa poltrona da sala.

O desquite será decidido breve, embora Rosamundo não saiba como pôde dar tanto azar assim da esposa passar justo numa rua sem qualquer movimento, lá no Cosme Velho, ver seu carro... puxa, era muita falta de sorte!

Aliás, não era. O desquite, para Rosamundo, até que será um grande negócio, porque ele não sabe, mas Margarida também ia àquele pagode.

Só não foi porque, ao chegar na porta da casa, viu o carro de Rosamundo estacionado.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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O paulista

Certa vez, estou em casa, quando bate o telefone. Atendo: — era o paulista. Fiz-lhe uma festa imensa: — "Como vai? Há quanto tempo!". E, de fato, não nos víamos há uns três anos. Ou mais. Quatro ou cinco anos. Sou um desses brasileiros que vão pouco a São Paulo. Em 55 anos de vida passei por lá três ou quatro vezes. Só. E não sei se por culpa minha ou de São Paulo ou de ambos. Creio que de ambos.

Um dia, fui a São Paulo, de automóvel, ver um jogo. Se não me engano, Brasil x Tchecoslováquia. Exatamente, Brasil x Tchecoslováquia. E ele foi comigo ao Pacaembu. Torcíamos juntos, ou por outra: — só me lembro da minha torcida. A dele apagou-se completamente na minha memória.

Do Pacaembu saímos para jantar. Jantamos. E já me pergunto: — será que jantamos mesmo? Sei lá. Passamos a noite juntos. Ele não arredava o pé de mim. Fazia um frio tão feroz — era junho — que, em dado momento, tive vontade de chorar, sentado no meio-fio.

O homem foi para mim uma espécie, digamos, de irmão súbito. Não consegui pagar uma caixa de fósforo. Ele subvencionou tudo. E fez questão de me levar no trem.

Desembarquei no Rio e me saturei, até os sapatos, de vida carioca. Passa-se o tempo e, de vez em quando, me lembrava do paulista. Via com a maior nitidez a sua cara, o terno, a camisa, e nada mais. Lembrava-me, sim, do seu pigarro. Mas não me ficara de nossa convivência uma palavra, uma frase, um "boa-noite", um "adeus". Cheguei a pensar que, em minha passagem por São Paulo, ou eu era surdo ou ele mudo.

Mas claro que se tratava de uma ilusão auditiva: — até uma múmia acompanhada há de falar coisas, dizer frases, soltar palavrões etc. etc. E eu só me lembrava de um único e escasso pigarro.

Mas, enfim, estava ele no Rio. Ótimo, ótimo. Eu ia vê-lo e, mais do que isso, ia ouvi-lo. No telefone, combinamos um jantar. Exagerei, patético: — "Você não imagina a minha alegria". Quis saber: — "Quanto tempo vai passar aqui?". Resposta: — "Dois dias". Ao sair do telefone, juntei ao pigarro mais umas quinze palavras. Vejam bem: — quinze palavras e um pigarro tinham, para mim, quase que a abundância de uma ópera.

Vou encurtar, porque não quero tomar o tempo do leitor.

Jantamos, nesse dia, almoçamos e jantamos no dia seguinte, fomos ao teatro e ainda ceamos na sua última madrugada de Rio. De manhã, compareci ao aeroporto. Perguntei-lhe: — "Até quando?". Teve um sorriso inescrutável e não disse uma palavra. Por fim, tomou o avião e partiu. Vim embora e aqui começa a minha trágica perplexidade: — eu voltava à mesma situação. O outro era um paulista fino, inteligente, um homem de sensibilidade, de imaginação. Há momentos em que o mais incomunicável dos homens tem que fazer uma confidencia. Ou faz uma confidência ou morre. E ele, nos seus dois dias de Rio, não fizera nenhuma confidência.

A princípio, ainda tentei forçar aquela barreira de silêncio. Mas senti que era inútil e calei-me também. E, então, aconteceu esta coisa vagamente alucinatória: — éramos dois silêncios que andavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, bebiam, fumavam e se entreolhavam.

Deu-me, por vezes, a vontade de ouvir-lhe o som do pigarro. Se não tinha o que dizer, podia dar-me a esmola auditiva de um pigarro. Por imitação inconsciente, eu ia-me tornando paulista também.

Saí do aeroporto numa melancolia hedionda. E a primeira buzina que ouvi deu-me uma desesperada euforia. Pensei: — "Ao menos as buzinas falam!".

Entrei na redação e fui adiantar serviço. Passei dez minutos diante da máquina. Mas não me ocorria absolutamente nada. O papel estava na máquina, branco, virginal.

Acabei decidindo: — "Vou escrever sobre o kaiser". Mas quando comecei a bater as teclas, saiu-me esta frase: — "A pior forma de solidão é a companhia de um paulista". Reli, honestamente espantado. A coisa nascera sem nenhuma elaboração prévia.

Continuei a escrever. Expliquei a verdade, isto é, que a frase me escapara sem querer. E fiz toda uma crônica sobre o kaiser.

Dias depois, encontrei-me, na casa do Pitanguy, com a sra. Clô Prado. Falou da minha frase com uma ternura agradecida: — "Como é verdadeiro o que você disse! Como é exato! Como é perfeito!". Nessa mesma noite, e ainda na casa do Pitanguy, um dos convidados achou que eu escrevera, numa simples frase, uma verdade estadual inapelável e eterna.

Já no fim da madrugada, uma terceira pessoa me levou para os fundos da casa. Pitanguy tem uma piscina. E foi, perto da piscina, que conversamos.

Era ainda a frase. O convidado começou por dizer que o paulista é a única solidão do Brasil. E aí está sua formidável superioridade sobre todos os outros brasileiros. E o que explica a epopéia industrial de São Paulo é a solidão.

Realmente, o paulista é capaz de viver, amar, envelhecer sem fazer jamais uma confidência, nem ao médium depois de morto. Os demais brasileiros são extrovertidos ululantes, está certo. Mas não fazem o Brasil. O único que faz o Brasil é o paulista. O autor do Brasil é São Paulo.

Fiz-lhe a pergunta: — "O senhor é paulista?". Era.

Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas. Não sei se me entendem. São frases que adquirem vida própria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que as obras completas do autor.

Imaginem que a da solidão paulista ainda me rende bons dividendos. Ontem, por exemplo. O telefone me chama. Vou lá. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Veio a pergunta: "Seu Nelson?". E eu: — "Pois não". Começou dizendo que era paulista. Começo a ficar inquieto.

Continua: — "Vim-lhe falar sobre aquilo que o senhor escreveu". Eu não digo nada ou, melhor, digo: — "Ah, sim, sim". Evidentemente, era a frase. Pergunto: — "A senhora concorda ou não?". E a voz de anjo defunto: — "Foi a maior verdade que o senhor já disse na sua vida. O senhor é paulista?". Quase pedi desculpas de ser pernambucano.

Conversamos uma hora ou mais. Disse a idade: — oitenta.

Era paulista há oitenta anos. Casada desde os quinze, vivera com o marido, outro paulista, por 65 anos. Ele era fazendeiro, não sei onde. E passavam dias, semanas, meses de silêncio total. Muitas vezes, ela já não se lembrava de como era a voz do marido e chegava a esquecer a própria. E a velhinha me perguntou: — "O senhor acredita se eu lhe disser que enterrei meu marido na semana passada?". Acreditei. Em mais de meio século de coabitação, nem lhe conhecera o gemido, o simples gemido. Um ficava escutando o silêncio do outro. Ele agonizara sem gemer.

E, depois, lá foi ela para a capelinha. Floriu, velou e chorou um desconhecido.

[7/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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