quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Órfãos de rosas

E, de repente, o sujeito fez um comício. Era um sarau de grã-finos.

A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Estava com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandálias.

Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.

Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d'água precisa beber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, melhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.

Que dizia o pau-d'água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — "A grã-fina não tem alma". Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — "Todas?". E o bêbedo, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — "Todas!".

Foi então que alguém objetou: — "É um erro generalizar".

Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d'água, na sua cólera fácil, explodiu: — "Erro, vírgula; erro, uma ova!". Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — "Há uma exceção" — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — "Há uma exceção". Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.

O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — "Fulana!". Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — "Eu explico, eu explico!". E disse, por fim: — "Leu as orelhas de Marcuse!".

A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela). Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, tinha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da última passeata.

Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas. Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — "Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa". Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — "Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma rosa" (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eternamente rosa.

Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — "A senhora tem uma rosa em seu jardim?". A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — "O autor do meu jardim é o Burle Marx". Para o ébrio, a autoria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — "Vamos ver! Quero ver!".

Organizou-se uma súbita expedição ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — "O Burle Marx é um gênio! Um gênio!".

Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação vagamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhuma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — "É mesmo! É mesmo!". O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava.

Dizia, em arrancos: — "O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!". Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um outro: — "Há quanto tempo você não vê uma rosa?". Um confessou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — "Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!".

Varado de indignação, berrava: — "Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?".

Interpelava os presentes, damas e cavalheiros: — "Somos cabras?". Embora parecesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — "Não, não, não!".

E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre.

Só quem falava era o bêbedo nato.

Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flores. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacional achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas.

Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defuntos têm flores.

Eu continuava um maravilhado ouvinte de tantas opiniões ilustres. E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — "As passeatas vão salvar o Brasil".

Alguém duvidou: — "Por que, meu Deus?". A papada do gordo vibrou: — "É o povo! É o povo!". Falava e o suor pingava da papada como um pranto.

E, então, o bêbedo teve outro rompante: — "A passeata não salva ninguém!". O gorducho bramava: — "É o povo! E o povo!". Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concordavam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — "Povo nenhum! O povo não se meteu!". Na ira de sua embriaguez, teimou: — "Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!".

Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário.

O pau-d'água começou a chorar: — "Sabem quem estava lá?". Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — "Quem estava lá eram as classes dominantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!".

E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nossas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes dominantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Avenida.

As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.
[31/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Menino precoce

Diz que era um menino de uma precocidade extraordinária e vai daí a gente percebe logo que o menino era um chato, pois não existe nada mais chato que menino precoce e velho assanhado.

Todos devemos viver as épocas condizentes com as nossas idades; do contrário, enchemos o próximo.

Mas deixemos de filosofias sutis e narremos: diz que o menino era tão precoce que nasceu falando. Quando o pai soube disso não acreditou. O pai não tinha ido à maternidade, no dia em que o filho nasceu, não só porque não precisava, como também porque tinha que apanhar uma erva com o Zé Luís de Magalhães Lins, para pagar a "délivrance" que era quase o preço de um duplex, pois a mulher cismou de ir para a casa de saúde do Guilherme Romano.

Mas isto também não vem ao caso. O que importa é que o menino já nasceu falando.

Quando o pai soube da novidade, correu à maternidade para ouvir o que tinha o menino a dizer. Chegou perto da incubadeira e o garoto logo se identificou com um "Oba". O cara ficou assombrado e mais assombrado ficou quando o nenenzinho disse:

— Papai vai morrer às 2 horas! — dito o que, passou a chupar o bico da mamadeira e mais não disse nem lhe foi perguntado.

O cara voltou para casa inteiramente abilolado. Sem conter o nervosismo, não contou pra ninguém a previsão do menininho precoce, mas ficou remoendo aquilo. Dez e meia, onze, meio-dia... e o cara começou a suar frio.

Uma da tarde, o cara já estava suando mais que o marcador de Pelé.

Quando deu duas horas ele estava praticamente arrasado e quando passou da hora prevista um minuto ele começou a se sentir mais aliviado.

E estava dando o seu primeiro suspiro, quando ouviu um barulho na casa do vizinho. Uma gritaria, uma choradeira. Correu para ver o que era: o dono da casa tinha acabado de falecer.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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A atriz inteligente

Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o óbvio ululante. Paciência). E não se trata do estilo de representação.

Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Dama das camélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.

Mas o que me impressiona não é a dessemelhança de comportamento cênico. O artista mudou até na vida real.

Voltemos, por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salvaram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a primeira audição do Danúbio azul.

Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz? Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma Sarah Bernhardt amava mais no mundo do que no palco. Seria uma humilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que a Duse amou D'Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso apogeu.

Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma vergonha não ser amante de D'Annunzio. E a Duse o amou e, pior do que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu "relações-públicas" espalhar que pagava o esteta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, por fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou deixava de ser bilheteria.

Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos.

Ainda outro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: — "Estou amando! Estou amando!". A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Finalmente, a menina recebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amor virou doença.

Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — "O que é que mudou essencialmente nas atrizes, nos atores, nos diretores?". Outra pergunta: — "E por que não há mais Duse, nem há mais D'Annunzio?".

Imaginem vocês que, de repente, descobri toda a verdade.

Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker, Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saber que tratamento lhe deu Kleber Santos). Mas aconteceu não sei o que e fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi a entrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque. Uma é inteligente e a outra não.

Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava, simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a unanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma frase própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia, com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras).

Pois bem. O que a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando. O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. E justiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro somente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também a considerável vantagem do métier, que é a inflexão. E como a TV é imagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras duas ou três
verdades eternas.

A notável atriz está representando, no momento, uma peça do falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente, sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. Maria Fernanda. Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim, respondeu: — "A peça é o problema de opção".

Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: — "O problema da nossa época é a opção". Alguns descontentes, que sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo, nem de profundo.

Vejamos: — "O problema de nossa época é a opção". Isso, dito por qualquer outra, não teria maior transcendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago "bom-dia", dito da maneira certa, adquire uma profundeza inimaginável. E a "opção" da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: — "Inteligência aqui é mato".

Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao nosso teatro.

Tenho um amigo que é um retrógrado, um obscurantista, que os íntimos chamam de "a própria Idade Média". Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — "Eu, que sou a Idade Média" etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações românticas.

Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poesia dramática exige. Quanto à "opção", não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados.

É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas. A última passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.

Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeira trepou no automóvel e disse: — "Estamos cansados". Ninguém estava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga).

Em seguida, ele acrescentou: — "Vamos sentar". Falava para a parte mais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes, arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes, engenheiros (só não víamos um único preto ou
um único operário).

Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia.

Todos sentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D'Arc.

[30/7/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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