E, de repente, o sujeito fez um comício. Era um sarau de grã-finos.
A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Estava com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandálias.
Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.
Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d'água precisa beber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, melhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.
Que dizia o pau-d'água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — "A grã-fina não tem alma". Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — "Todas?". E o bêbedo, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — "Todas!".
Foi então que alguém objetou: — "É um erro generalizar".
Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d'água, na sua cólera fácil, explodiu: — "Erro, vírgula; erro, uma ova!". Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — "Há uma exceção" — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — "Há uma exceção". Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.
O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — "Fulana!". Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — "Eu explico, eu explico!". E disse, por fim: — "Leu as orelhas de Marcuse!".
A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela). Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, tinha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da última passeata.
Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas. Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — "Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa". Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — "Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma rosa" (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eternamente rosa.
Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — "A senhora tem uma rosa em seu jardim?". A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — "O autor do meu jardim é o Burle Marx". Para o ébrio, a autoria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — "Vamos ver! Quero ver!".
Organizou-se uma súbita expedição ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — "O Burle Marx é um gênio! Um gênio!".
Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação vagamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhuma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — "É mesmo! É mesmo!". O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava.
Dizia, em arrancos: — "O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!". Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um outro: — "Há quanto tempo você não vê uma rosa?". Um confessou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — "Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!".
Varado de indignação, berrava: — "Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?".
Interpelava os presentes, damas e cavalheiros: — "Somos cabras?". Embora parecesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — "Não, não, não!".
E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre.
Só quem falava era o bêbedo nato.
Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flores. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacional achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas.
Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defuntos têm flores.
Eu continuava um maravilhado ouvinte de tantas opiniões ilustres. E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — "As passeatas vão salvar o Brasil".
Alguém duvidou: — "Por que, meu Deus?". A papada do gordo vibrou: — "É o povo! É o povo!". Falava e o suor pingava da papada como um pranto.
E, então, o bêbedo teve outro rompante: — "A passeata não salva ninguém!". O gorducho bramava: — "É o povo! E o povo!". Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concordavam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — "Povo nenhum! O povo não se meteu!". Na ira de sua embriaguez, teimou: — "Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!".
Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário.
O pau-d'água começou a chorar: — "Sabem quem estava lá?". Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — "Quem estava lá eram as classes dominantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!".
E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nossas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes dominantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Avenida.
As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.
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A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Estava com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandálias.
Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.
Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d'água precisa beber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, melhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.
Que dizia o pau-d'água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — "A grã-fina não tem alma". Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — "Todas?". E o bêbedo, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — "Todas!".
Foi então que alguém objetou: — "É um erro generalizar".
Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d'água, na sua cólera fácil, explodiu: — "Erro, vírgula; erro, uma ova!". Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — "Há uma exceção" — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — "Há uma exceção". Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.
O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — "Fulana!". Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — "Eu explico, eu explico!". E disse, por fim: — "Leu as orelhas de Marcuse!".
A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela). Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, tinha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da última passeata.
Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas. Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — "Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa". Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — "Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma rosa" (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eternamente rosa.
Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — "A senhora tem uma rosa em seu jardim?". A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — "O autor do meu jardim é o Burle Marx". Para o ébrio, a autoria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — "Vamos ver! Quero ver!".
Organizou-se uma súbita expedição ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — "O Burle Marx é um gênio! Um gênio!".
Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação vagamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhuma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — "É mesmo! É mesmo!". O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava.
Dizia, em arrancos: — "O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!". Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um outro: — "Há quanto tempo você não vê uma rosa?". Um confessou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — "Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!".
Varado de indignação, berrava: — "Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?".
Interpelava os presentes, damas e cavalheiros: — "Somos cabras?". Embora parecesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — "Não, não, não!".
E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre.
Só quem falava era o bêbedo nato.
Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flores. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacional achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas.
Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defuntos têm flores.
Eu continuava um maravilhado ouvinte de tantas opiniões ilustres. E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — "As passeatas vão salvar o Brasil".
Alguém duvidou: — "Por que, meu Deus?". A papada do gordo vibrou: — "É o povo! É o povo!". Falava e o suor pingava da papada como um pranto.
E, então, o bêbedo teve outro rompante: — "A passeata não salva ninguém!". O gorducho bramava: — "É o povo! E o povo!". Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concordavam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — "Povo nenhum! O povo não se meteu!". Na ira de sua embriaguez, teimou: — "Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!".
Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário.
O pau-d'água começou a chorar: — "Sabem quem estava lá?". Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — "Quem estava lá eram as classes dominantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!".
E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nossas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes dominantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Avenida.
As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.
[31/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.