terça-feira, 8 de novembro de 2011

O antiteatro

Ah, gosto muito do Sábato Magaldi, o crítico paulista.

Lembro-me do nosso encontro, há anos, aqui no Rio, na esquina de Senador Dantas com Evaristo da Veiga. Eu não o via há meses. E ele me pareceu tão magro e tão só. O que me impressionou mais, porém, foi o olho do amigo, e repito: — o olho de uma doçura intensa, quase insuportável. Com um retoque aqui e ali, o Sábato Magaldi seria um santo, o primeiro santo da crítica teatral.

Mas não é isso que eu queria dizer. Eu ia falar da nossa discussão sobre cinema. Era a época dos primeiros filmes coloridos.

Há entre mim e o caro amigo uma série de cordiais abismos. Quando escreve sobre o meu teatro, sinto que não é o crítico, mas o amigo, quase o irmão (quero crer que ele sempre reage como o amigo e o irmão das coisas). Eu era a favor do filme colorido, e Sábato, contra. Ele só entendia o preto-e-branco.

No meu espanto, perguntei-lhe: — "Mas que diabo! Você é contra a cor?".

E eu não compreendia tal ressentimento visual.

Discutimos uma boa meia hora. E, até o fim, o Sábato Magaldi foi o mesmo e brioso paladino do preto-e-branco. Dizia eu: — "Vem cá, Sábato, vem cá". E insistia: — "Mas que diabo te fez o amarelo? E o verde? E o azul? E o roxo?".

Lembrei-lhe que Van Gogh gostava tanto do amarelo. O meu último argumento foi este: — "Você odeia o arco-íris?". Não o dissuadi. Hoje, imagino que o Sábato deva abominar também o poente do Leblon porque a natureza não o fez em preto-e-branco.

Falei do cinema para chegar ao teatro. Quando começou o cinema, houve o vaticínio mundial: — "O teatro vai morrer". E mais tarde surgiu a televisão. Imediatamente, outros profetas anunciaram também que a televisão era o fim do teatro. Vejam como o teatro vive de mortes e de ressurreições. De vez em quando, vem alguém passar-lhe o atestado de óbito. Mas ele continua. Não importa que a tela cinematográfica seja miguelangesca. (Contra a oposição solitária e ressentida do Sábato Magaldi, a cor vingou triunfalmente). Mas o teatro está vivo, o teatro é um cadáver salubérrimo.

Não sabemos se o cinema morrerá um dia, se outras técnicas vão devorar a televisão. Quanto ao teatro, quero crer que já demonstrou a sua eternidade. Cabe então a pergunta: — e por que sempre existirá um palco e sempre existirá um elenco representando?

Tem sido assim e assim será, para sempre. Pode parecer que o "grande artista" explica essa prodigiosa continuidade. Nem tanto, nem tanto. A eternidade do teatro depende mais do canastrão.

Foi mais ou menos isso que eu disse, no telefone, ao Sábato Magaldi. Imaginem vocês que o crítico ligou para mim, e vamos e venhamos: um interurbano é sempre uma altíssima demonstração de afeto. Lisonjeado, balbuciei: — "Quanta honra!". Não é sempre que um crítico, e dos mais lúcidos, e dos mais agudos, procura um autor.

Conversa daqui, dali, e o Sábato acaba pedindo: — "Por que é que você não faz uma entrevista imaginária com a Cacilda Becker?". Foi aí que, dentro do meu ponto de vista, expliquei que a Cacilda tinha um defeito: — era "a grande atriz".

O Sábato não entendeu: — "Se é grande atriz, melhor". Reagi: — "Pior". E expliquei que é o canastra que, inversamente, nutre a continuidade teatral. O "grande ator" é um para 10 mil. Só a massa de medíocres pode alimentar milhares de elencos e milhares de repertórios.

Todavia, o Sábato, com sua bondade pertinaz e persuasiva, insistia: — "Pelo amor de Deus, faz a entrevista imaginária com a Cacilda. Te peço como amigo". Eu preferia a canastrona, muito mais representativa do que o gênio. A Duse ou Sarah Bernhardt é um corpo estranho dentro de sua geração. Mas o Sábato pedia; e quem, no céu e na terra, pode resistir ao Sábato? Suspirei: — "Está bem. Você manda. Vou entrevistar a Cacilda Becker".

E, antes de me despedir, fiz o apelo: — "Me abençoa, Sábato, me abençoa". E o amigo, em sua infinita misericórdia, me abençoou.

Saí do telefone, isto é, não saí do telefone. Desliguei e, imediatamente, disquei para 01. Feita a ligação fulminante, uma voz feminina atende. Peço: — "Quer-me chamar a Cacilda?". A resposta foi taxativa: — "Não mora aqui".

Protesto: — "É esse o número, minha senhora. Cacilda Becker. Mora aí". E a outra: — "Engano". E, súbito, desconfio da verdade. Berro: — "É você que está falando, Cacilda? Sou eu, Nelson!". Há uma pausa dramática. Finalmente, explode a voz feminina: — "É mesmo, é mesmo! Agora me lembro. Cacilda Becker. Eu era Cacilda, fui Cacilda. O sobrenome é Becker? Fui Cacilda Becker".

A conversa estava meio alucinatória. Numa impressão profunda, pergunto: — "Está-me ouvindo, Cacilda? Esteja, hoje à meia-noite, no terreno baldio. Você vai-me dar uma entrevista imaginária. Entendeu? Uma entrevista imaginária, na presença da cabra vadia".

A grande atriz pluralizou: — "Lá estaremos". E eu: — "Boa noite". Ela respondeu em voz pungente, em voz plangente: — "Boa noite".

Às dez para meia-noite, estou eu no terreno baldio.

Tomei todas as providências. Reuni os gafanhotos, sapos, corujas, caramujos e minhocas. Fui de um em um, pedindo pelo amor de Deus: — "Modos, hem; modos!". E, súbito, vem correndo um caramujo: — "Está chegando a passeata". Pulo: — "Que passeata? Eu não chamei passeata nenhuma. Vou entrevistar a Cacilda Becker. Só a Cacilda e mais ninguém".

Mas era a estarrecedora verdade. Ao longe, empunhando archotes, vinha a passeata. E, no meio, hirta, sonâmbula, vestida de Ofélia, pude ver a minha entrevistada, Cacilda Becker.

Aterrado, esperei aquela massa ululante. Ouvia-se o coro: — "Par-ti-ci-pa-ção! Par-ti-ci-pa-ção!". O vozerio subia aos céus.

Lá em cima, as estrelas começaram a atirar listas telefônicas e cinzeiros sobre os manifestantes. A quinze metros do local, o Vladimir Palmeira trepa na capota do próprio automóvel. Diz, forte: — "Classe teatral!". Silêncio. E o Vladimir: — "Estamos cansados. Vamos sentar".

A docilidade foi total. A Classe sentou-se no asfalto, o Líder deixou passar cinco minutos; e comanda: — "Já descansamos. Vamos marchar!". E todos marcharam os quinze metros que faltavam.

Só então, dilacerado e confuso, dirijo-me à própria Cacilda: — "Escuta, houve um lamentável engano, um equívoco horrendo. Eu só convidei você, Cacilda!". E a atriz: — "Eu não sou Cacilda. Sou a passeata!".

Lá estava Paulo Autran: — "Você, Paulo Autran, ao menos você, é Paulo Autran?". Resposta: — "Sou uma assembléia!".

Ao lado, vi o Ferreira Gullar: — "Ferreira, diga, berre: — eu sou Ferreira Gullar!". Retruca: — "Eu sou um abaixo-assinado! Sou uma comissão de intelectuais!". Em seguida, puxou um isqueiro e incendiou um exemplar de A luta corporal.

Vozes repetiam: — "Sou um comício! Sou um panfleto! Sou a Classe!". Cada qual era ninguém. Olho aquelas caras. Todos tinham perdido a noção da própria identidade. Recuo, apavorado. Uma coruja rola com ataque.

E, então, a marcha continua. A massa coral repetia: — "Par-ti-ci-pação! Par-ti-ci-pa-ção!". A cabra vadia veio sentar-se no meio-fio e começou a chorar. As estrelas atiravam catálogos telefônicos sobre a passeata.

Foi um caso sério.
[25/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Elizabeth Montgomery, a feiticeira

Elizabeth Montgomery (Elizabeth Victoria Montgomery), atriz, nasceu em Los Angeles, Califórnia, em 15/04/1933, e faleceu na mesma cidade, em 18/05/1995. Sua carreira artística se estendou por cinco décadas, e é lembrada principalmente por seus papéis em Bewitched como Samantha Stephens, em A Case of Rape como Ellen Harrod e em The Legend of Lizzie Borden como Lizzie Borden.

Ela e seu irmão mais novo, Robert Montgomery Jr., nascido em 1936, tiveram uma infância privilegiada, por serem ricos e filhos de famosos atores de Hollywood. Costumava passar os verões, em sua casa de campo em England, Nova Iorque, onde montavam cavalos em companhia de celebridades. Freqüentou a Westlake School, uma escola de jovens refinadas da alta classe americana. Nesta escola, com 5 anos de idade, atuou pela primeira vez como suplente em uma produção de língua francesa Little Red Riding Hood, onde interpretou um lobo.

Em 1950, sua família mudou-se para Nova Iorque, onde seu pai iniciou um programa próprio de televisão chamada Robert Montgomery Presents. Quando os Montgomerys se divorciaram em dezembro daquele mesmo ano, Elizabeth ficou primeiramente na casa de sua mãe, mas subseqüentemente mudou-se para a casa de seu pai e a segunda esposa dele. Entrou para a Spence School, outra escola educacional exclusivamente da alta classe novaiorquina formando-se em 1951 e logo em seguida matriculou-se na American Academy of Dramatic Art.

Elizabeth fez sua primeira aparição na televisão, aos dezenove anos, em 1951, no programa de seu pai (Robert Montgomery Presents), em um episódio intitulado Top Secret, onde ela e seu pai foram fotografados juntos. Mas sua verdadeira estréia profissional na televisão, ocorreu mesmo no programa Armstrong Circle Theatre, no episódio "The Right Approach", de 1953.

Em outubro deste mesmo ano fez também sua estréia na Broadway no espetáculo Late Love e também em algumas produções da Brigadoon and Biography. No ano seguinte, 1954, ela faria outra participação em Armstrong Circle Theatre, no episódio "The Milestone", interpretando a personagem Ellen Craig.

Em 1954, aos  21 anos, casou-se com o diretor de televisão Frédéric Gallatin Carmmann e continuou a trabalhar na televisão. Seu casamento, porém, durou pouco tempo. Durante os anos 1950 a 1960, Elizabeth apareceu em diversos programas na televisão, inclusive em 1960, recebeu sua primeira indicação ao Emmy por sua representação de uma prostituta sulista Rusty Heller, num dos episódios de The Untouchables (Os Intocáveis). Em 1954, fez seu primeiro filme, The Court-Matial of Billy Mitchell, ao lado de Gary Cooper.

"A Feiticeira": Dick York e Elizabeth
No dia 28 de dezembro de 1956, Elizabeth casou-se pela segunda vez com o ator Gig Young. Foi um casamento muito turbulento, pois ele era um alcoólatra crônico e ela sendo 23 anos mais jovem que ele, ficava difícil controlar o problema.

Durante as filmagens de Johnny Cool, acabou apaixonando-se pelo diretor do filme, Willian Asher e em 1963, casou-se pela terceira vez, em El Paso, Texas. Juntos iniciaram um projeto que culminou com a criação da série Bewitched (A Feiticeira). Dessa união nasceram três crianças, Robert, William e Rebecca. Por duas vezes, a gravidez de Elizabeth, em  meio as filmagens da série,  justificaram o surgimento dos personagens Tabitha e Adam.

Depois do encerramento de A Feiticeira, Asher foi trabalhar em outra emissora em um novo projeto e Elizabeth viajou para a Europa. Antes do final do ano de 1973, também terminava seu matrimônio de quase dez anos com Asher. Um ano depois já estavam legalmente divorciados.

Juntos eles foram responsáveis pela criação de Samantha Stephens, uma feiticeira que se casa com um mortal. A feiticeira teve oito temporadas apresentadas pela rede ABC. O elenco recebeu várias indicações ao Emmy e outros prêmios. A magia da série "A Feiticeira" terminou em 1972.

Voltou a atuar novamente na televisão em Mrs. Sundance. Durante as filmagens conheceu o ator Robert Foxworth e os dois logo se apaixonaram. Nervosa com um quarto casamento, Elizabeth preferiu simplesmente viver junto com ele.

Também neste mesmo ano , 1974, fez A Case of Rape, onde foi aclamada pela crítica especializada, na qual representava uma vítima de estupro e onde recebeu uma indicação ao Emmy. Em 1975, voltou novamente a televisão atuando em The Legend of Lizzie Borden, onde foi novamente indicada ao Emmy.

A maioria dos seus papéis após a série A Feiticeira, foi fazendo papéis dramáticos e não cômicos. Em 1976 fez um remake de Dark Victory, atuou no gameshow Password and Password Plus. Novamente em 1978 outro Emmy lhe escapou com The Awakening Land. Na televisão se seguiram Face to Face (1990) e With Murder In Mind (1992), entre outros.

Em 1993 Elizabeth narrou o Academy Award um documentário intitulado Panama Deception. Fez duas narrações de The Erotic Adventures of Sleeping Beauty. Elizabeth Montegomery não foi somente uma grande e versátil atriz, mas também lutou em causas como AIDS e foi ativista da Gay Rights. No dia 28 de Junho de 1992, desfilou ao lado de Dick Sargent na grande parade gay, Gay-pride Parade em Los Angeles, Califórnia.


No dia 28 de janeiro de 1993, depois de viver quase 20 anos juntos, Elizabeth e Robert Foxworth casaram-se numa cerimônia íntima e muito simples. Na primavera de 1995, durante as filmagens de um outro filme para a televisão Deadline For Murder: From the Files of Edna Buchanan, Elizabeth começou a sentir-se fatigada.

Ela procurou procurou um médico e diagnosticada como acometida por um câncer de cólon, já em estado bem avançado. Poucas semanas depois, no dia 18 de maio de 1995, Elizabeth faleceu junto ao seu marido Foxworth, seus filhos em sua próprio quarto, em Beverly Hills. Ela tinha 62 anos.

Fontes: Wikipedia; tvsinopse.kinghost.net.
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domingo, 6 de novembro de 2011

Choro, vela e cachaça

Enterro de pobre tem sempre cachaça. É para ajudar a velar pelo falecido.

Sabem como é; pobre só tem amigo pobre e, portanto, é preciso haver um incentivo qualquer para a turma subnutrida poder agüentar a noite inteira com o ar compungido que o extinto merece.

Enfim, a cachacinha é inevitável, seja numa favela carioca, seja num bairro pobre da cidade do interior.

Agora mesmo, em Minas, me contaram, morreu um tio de um tal de Belarmino. Houve velório com a melhor cachaça daquelas bandas, uma chamada "Suor de Virgem". Quando um desgraçado que não tinha sido convidado pro velório do tio de Belarmino soube que fora servida a cachaça "Suor de Virgem" saiu em procura do sobrinho do extinto e, ao encontrá-lo, lascou a ameaça:

— Belarmino, eu soube que tinha "Suor de Virgem" no velório de seu tio e você não me convidou. Mas num há de ser nada. Faço fé em Deus que inda morra alguém na minha família, que é pra eu gastar um desperdício de "Suor de Virgem" e num convidar safado nenhum da sua.

São fatos como os citados que provam a importância da cachaça nas exéquias de quem morre teso, embora — às vezes — a cachaça, ao invés de ajudar, atrapalhe.

Foi o que aconteceu agora em Ubá (MG), terra do grande Ari Barroso. Morreu lá um tal de Sô Nicolino, numa indigência que eu vou te contar. Segundo o telegrama vindo de Ubá, alguns amigos de Sô Nicolino compraram um caixão e algumas garrafas de cangibrina, levando tudo para o velório.

Passaram a noite velando o morto e entornando a cachaça. De manhã, na hora do enterro, fecharam o caixão e foram para o cemitério, num cortejo meio ziguezagueado e num compasso mais de rancho que de féretro. Mas — bem ou mal — lá chegaram, lá abriram a cova e lá enterraram o caixão.

Depois voltaram até a casa do morto, na esperança de ter sobrado alguma cachacinha no fundo da garrafa. Levaram, então, a maior espinafração da vizinha do pranteado Sô Nicolino.

É que os bêbados fecharam o caixão, foram lá enterrar, mas esqueceram o falecido em cima da mesa.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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