quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Momento na delegacia

Foi na Delegacia da Penha, onde fui parar acompanhando um amigo que tivera seu carro roubado e — posteriormente — encontrado pelos guardas da jurisdição da "padroeira". Antes de mais nada devo declarar que na Delegacia da Penha acontecem coisas de que até Deus duvida. De dois em dois minutos, uma "ocorrência" para o comissário do dia registrar. O comissário, coitado, tem que quebrar mais galho do que um lenhador canadense.

Mal tinha resolvido o caso de uma gorda que fora mordida pelo cachorro da vizinha, ou foi a vizinha que mordeu o cachorro da gorda? Sei lá... já não me lembro mais. O que eu sei é que, mal tinha saído a gorda, e o pessoal em volta comentava a bagunça que a gorda tentou armar no distrito, e já começava o caso do crioulo de duas mulheres.

Para mim, sinceramente, "O Caso do Crioulo de Duas Mulheres" foi o mais bacaninha de todos. De repente entrou aquele bruto crioulo. Tinha quase dois metros de altura, era forte como um touro, e caminhava no mais autêntico estilo da malandragem carioca.

Ladeado por duas mulheres imobilizadas por uma chave-de-braço cada uma, caminhou calmamente até o centro da sala, enquanto as duas faziam o maior banzé, sem que ele tomasse o menor conhecimento. A que ele trazia presa na canhota era meio puxada para o sarará e chamava-o, com notável regularidade, de "vagabundo", "crioulo ordinário", "homi safado" e outros adjetivos da mesma qualidade.

A que estava presa pelo lado direito tinha a chave-de-braço mais apertada pouquinha coisa (devia ser mais presepeira) e, por isso, estava meio tombada pra frente. Dava as suas impressões sobre o crioulo com menos freqüência, mas — em compensação — quando abria a boca, berrava mais alto que a sarará. Sua reivindicação era sempre a mesma: — "Me larga, seu cachorro!" De tipo, era mulata e gordinha.

O bom crioulo nem parecia... Com a calma já assinalada, olhou em volta, bateu os olhos no comissário e adivinhou:

— Tô falando com o comissário?

O comissário respondeu que sim. A voz do crioulo era surpreendentemente fina para um sujeito de sua estatura. Isto dava um ar bem-humorado à cena, assistida pelos presentes: uns 15 ou 20, se tanto. A gorduchinha tentou se desprender. Ele apertou mais a chave e disse fininho:

— Quieta aí — e, virando-se para o comissário: — Boa tarde, doutor. Eu sou estivador e moro aqui pertinho, num barraco de minha propriedade, com estas duas.

— O senhor vive com as duas? — perguntou o comissário.

— Vivo, sim sinhô. Mas isto nunca foi pobrema. Urtimamente, porém, elas todavia dero pra brigá. Eu saio pro trabáio e quando vorto as duas tão cheia de cachaça e começa com ciumera.

— Que ciumera o quê? Eu lá tenho ciúme de você, seu ordinário? — disse a sarará.

O crioulo interrompeu sua explanação à autoridade e falou pra ela:

—Q uieta aí, senão vai levá uma bolacha na frente do doutô.

A sarará não acreditou, cuspiu pro chão, em sinal de nojo e levou aquela tapona definitiva, franca, imaculada. Calou a boca e voltou para a chave-de-braço. O crioulo pigarreou e prosseguiu:

— Pois é como eu digo, doutô. Faz dois dia que num drumo, tá bem? Dois dia sem drumi. Vê se pode. Tudo por causa do bode que essas duas arma quando eu chego... — largou a sarará, colocou a mão sobre o peito, coberto pela camisa de seda amarela. Usava camisa de seda, uma calça de brim ordinário, mas com vinco perfeito e calçava um chinelo de couro cru, que deve ter custado uma besteira, mas na vitrina de qualquer butique da Zona Sul estaria com o preço marcado para 50 contos, no mínimo.

— E elas num tem razão — esclareceu: — Se há um sujeito que num tem preferença sou eu. Elas veve comigo há três ano e num pode ter queixa. É tudo onda delas, doutô. Hoje é minha forga no cais e eu preciso drumi. Eu trouxe elas aqui pro senho prende elas aí. Tá legal? O senho faz isso pra mim? Amanhã quando eu acordá eu venho buscá.

O comissário coçou a cabeça, perguntou a um auxiliar se havia xadrez vago, o auxiliar disse que sim e ele perguntou, para que o crioulo ratificasse:

— Você amanhã passa aqui para apanhar as duas?

— Passo sim, doutô. É só esta noite pra eu podê drumi. Amanhã eu prometo ao senhô que, assim que eu acordá, faço o meu café, tomo um banho e venho aqui buscá elas.

O comissário concordou: dois guardas agarraram as mulheres, que foram lá pra dentro berrando e se debatendo. O crioulo agradeceu ao comissário, virou as costas e foi saindo. Lá dentro, as duas mulheres — longe dele — aumentaram o festival de palavrões em sua homenagem.

O crioulo parou perto de um guarda e perguntou: — Tu que é o prontidão? — o guarda fez um movimento de cabeça afirmativo: — Intão, tu me faz um favô. De vez em quando joga um balde d’água nelas, pra elas esfriá. Amanhã, quando eu vier reclamá a mercadoria, tu leva um "tiradente" pelos serviço prestado, tá?

— Tá! — concordou o prontidão, olhando logo prum canto para conferir a ferramenta de dar fria, ficando notoriamente tranqüilo ao ver um balde velho e amassado, debaixo de um banco.

— Eu lhe agradeço — garantiu o crioulo, com uma pequena reverência. Depois retirou-se naquele mesmo passinho macio, chinelo de couro cru, camisa de seda amarela, frisada pela brisa da tarde. Ia dormir sossegado, no barraco de sua propriedade.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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O Brasil nazi-stalinista

Vocês se lembram do pacto germânico-soviético. Uma manhã, o mundo vê, em todas as primeiras páginas, a cínica, a deslavada fotografia: — Stalin apertando a mão de Ribbentropp.

Digo sempre que o riso pode comprometer ao infinito. Aqui mesmo, contei o caso daquele ministro que não ria, para não se arriscar. E, diante de tudo e de todos, tinha a mesma cara hirta como uma máscara.

Mas Stalin e Ribbentropp riam, um para outro, e a risonha abjeção estarreceu o mundo.

Ou por outra: — não estarreceu. Em verdade, a manchete, a notícia e o clichê só espantaram uma meia dúzia. Os outros sentiram apenas o medo, o Grande Medo.

Os exércitos alemães esperavam apenas o riso e o aperto de mão. Posso dizer que uma fotografia assassinou milhões. Em seguida, a Polônia foi estuprada. Era a nova Guerra Mundial. E morreram tantos que, no fim de certo tempo, o horror deixou de ser horror. E o que havia, por toda a parte e em todos os idiomas, era o tédio da morte, e do sangue, e das mutilações.

Diria também que os próprios sobreviventes tinham vergonha de estar vivos. A vida tornara-se indigna.

Não era bem isso o que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que Stalin e Hitler se juntaram contra a pessoa humana.

Escrevi que a fotografia matou 100 milhões (não sei se mais, não sei se menos). Mas deixemos de lado o horror numérico. Tanto faz 1 ou 100 milhões de defuntos. Quando se assinou o pacto, eu já trabalhava em O Globo. Li o telegrama ainda na redação.

Eis o que me ocorreu, por outras palavras: — se é possível o pacto germânico-soviético, e se o mundo o aceita, tudo é permitido. Durante dias e até meses, fui devorado por uma obsessão. Parecia-me absurdo que cada um de nós continuasse a fazer sua vida, a escovar os dentes, a tomar café, a jogar nos cavalos etc. etc. O meu sentimento era de que o pacto extinguira toda a vida moral.

E, no entanto, em todo o século, não há um ato tão inteligente, uma aliança tão lúcida, um acontecimento tão natural. Rússia e Alemanha tinham que se entender naquele momento. Tão parecidos Stalin e Hitler, tão gêmeos, tão construídos de ódio. Ninguém mais Stalin do que Hitler, ninguém mais Hitler do que Stalin. Do mesmo modo, como são parecidos os radicais da esquerda e da direita!

Dirá alguém que as intenções são dessemelhantes. Não. Mil vezes não. Um canalha é exatamente igual a outro canalha. Pode parecer que Hitler e Stalin passaram. Nenhuma ilusão mais idiota. Napoleão, o Grande, só foi possível porque a Europa estava saturada de pequeninos napoleões. E o mundo está cheio de Hitler e Stalin liliputianos. No tempo da guerra usava-se muito a expressão nazi-fascismo. Muito mais válido seria dizer-se, ainda hoje, nazi-stalinismo. O pequenino Hitler, ou o pequenino Stalin, tem um íntimo tesouro de ódio. É como se tivéssemos de optar por um ou por outro.

Imaginem que falo pensando no Brasil. Vejamos os brasileiros. Aqui, o radical de esquerda não percebe, ou finge que não percebe, que é um stalinista. O radical, do outro lado, é nazista. A toda hora e em toda a parte, cumprimentamos um pequenino Stalin ou um pequenino Hitler. Instala-se o Brasil do ódio, ou, melhor dizendo, o anti-Brasil. Direi mesmo que o brasileiro está em processo de desumanização.

Imaginem cada um de nós transformado, de repente, na antipessoa. Conheço vários que perderam qualquer semelhança com o ser humano. Aqui abro um parêntese. Não sei se notaram que estou usando uma ênfase, um tom, uma veemência não comuns nesta coluna. Mas explico.

O caso é que, ontem, o Kleber Santos bateu o telefone para mim. Dizia excitadíssimo: — "Imagine, Nelson, imagine!". Sinto a sua dispnéia emocional. E o Kleber, que é um dos nossos grandes diretores de teatro, continua, arquejando: — "Usaram o teu nome! Teu nome!".

Excelente Kleber! Falava como se meu nome fosse um patrimônio, algo de sagrado e intangível como um quepe ou uma espada da Guerra do Paraguai. E, então, mais calmo, contou-me tudo.

Alguém atirara, de um automóvel, na porta do Teatro Jovem, prospectos insultantes. Eu não os li. Mas o meu amigo informa que os panfletos ameaçam e ofendem os artistas. E lá está impresso o trecho de um artigo meu sobre d. Hélder. No seu fervor de amigo, o bom Kleber entende que eu devo repudiar a canalhice.

Aí está por que, desde o começo do presente artigo, sou o mais contrafeito dos colunistas. Se eu apoiasse qualquer ato de violência, da direita ou da esquerda, seria um canalha.

Ao mesmo tempo, é meio humorística a situação de um escritor que, empostando a voz, limpando o pigarro e alçando a fronte, anuncia para o seu público: — "Meus senhores e minhas senhoras, saibam que eu não sou exatamente um canalha". Entendo, ao mesmo tempo, o empenho do Kleber. Sua dispnéia, ao telefone, tinha algo de comovente. Não resisto a um amigo patético. Bem. Vamos lá.

Eu me consideraria o último dos infames se, algum dia, me solidarizasse com a violência. Para mim, a liberdade está acima do pão (e, por isso, o pequenino Stalin ou o pequenino Hitler há de me considerar o mais bestial dos reacionários). D. Hélder e dr. Alceu são contra e a favor da violência. Assumem uma ou outra atitude, taticamente, segundo as conveniências de momento.

Outro dia, li, no d. Hélder, no dr. Alceu e no padre Comblin, que a guerrilha "não adianta". Não se trata de uma objeção moral, religiosa, humana, ou que outro nome tenha. Eles se opõem pela ineficácia. Só.

A dedução é óbvia: — se a carnificina fosse proveitosa, devíamos sair por aí chupando as carótidas uns dos outros. Singular caridade de d. Hélder, do padre Comblin e do dr. Alceu.

Também não aceito o padre de passeata. Quero que me entendam. O padre de passeata é, hoje, uma ordem tão definida, tão caracterizada como a dos beneditinos, dos franciscanos, dos dominicanos e qualquer outra. E está a serviço do ódio. Nunca ninguém verá um gesto meu, ou uma linha, a favor de qualquer terrorismo da esquerda ou da direita.

Agora mesmo cometeu-se um crime contra o teatro brasileiro. Espancou-se a platéia, espancou-se o elenco de Roda viva. Despiram as atrizes. Uma delas estava grávida, e gritou a própria gravidez. Foi arrastada, pisada, chutada.

Começou um Brasil nazi-stalinista.

[24/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A leitora de Marcuse

Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C. Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é o que mais viaja.

De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — "Meu bem, cadê o Machado?". A telefonista, mascando um imaginário chiclete, responde: — "Está em Tóquio". Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim. E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.

Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim para mim: — "Por que viaja tanto o Machado?". E, de fato, é o único brasileiro que gosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que, para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino.

Estivemos juntos, ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não estará desembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul. Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras, idiomas e paisagens, o Machado tem o mesmo e fácil trânsito em todos os jornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas por telefonemas.

E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: — ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em que jornal. Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — "Eu não sou jornalista". Mas ninguém pode exigir que uma linda senhora, e, de mais a mais, capa de Manchete, seja também racional. Ela está acima de qualquer argumento ou raciocínio.

E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria pouco para a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a aflição da capa de Manchete que o Machado quis saber: — "Mas o que é, afinal?". Imagino que, do outro lado da linha, a grã-fina tenha baixado a vista, escarlate de modéstia; e disse: — "Estou lendo Marcuse".

Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: — "Como? Como?". A outra suspira: — "Estou lendo Marcuse". E queria que o Machado, que tinha tantas amizades jornalísticas, mandasse publicar que ela, d. Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, as amigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horas e os dias lendo e relendo Marcuse.

Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — "Como pode? Como pode?". Eu, numa curiosidade aflita, queria o nome e, se possível, os dados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonho escândalo: — "Mas é ela? Ela?". Sim, era "ela".

E, já num interesse profundo, perguntei mais: — "E vais dar a notícia?". Meu amigo admitiu que sim. Estava disposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão "pra frente".

E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e, se possível, até uma descrição física da pessoa. Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não. Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bonita, como costumam ser as grã-finas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Taylor. Como se sabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou.

E a leitora de Marcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimentado, de Elizabeth Taylor. Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações "físicas" sobre a nossa heroína. Ah, já me lembro.

Tempos atrás, fui ao Estádio Mário Filho ver um Fla-Flu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; a grã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, entende tanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar, nervosamente: — "Quem é a bola? Quem é a bola?".

Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelo mesmo elevador. Estávamos amontoados num espaço sufocante e numa promiscuidade vagamente abjeta. Justamente, eu ia lado a lado com a leitora de Marcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que a olhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: — ela tem narinas de cadáver!

Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveis virtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acima de qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver.

E, ali, no elevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitora de Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou do primeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade do desquite. E o que perturbou sua convivência com os quatro maridos anteriores foram, ouso presumir, as narinas de cadáver.

Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claro impedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e, dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais.

No fim da leitura, eis a minha conclusão: — "O Machado trabalhou direito". E, de fato, em todos os jornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — "A sra. Fulana de Tal está lendo Marcuse".

Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginam o que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e lá está: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lê Marcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estão lendo Marcuse.

A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.

A grã-fina que "lê Marcuse", e o confessa por toda a parte, está dando um atestado de ideologia. E, realmente, a conhecida do Machado e minha é esquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mão de sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta e eterna impossibilidade.

No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vista, numa sacada, atirando listas telefônicas. De outra feita, marchou pela Avenida. Só fez uma concessão à própria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceu para não sujar o vestido.

Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína. Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos.

Certa vez, fui a um sarau de grã-finos no Alto da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadáver e seu decote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presentes o Daniel Caetano, moreno como um galã do neo-realismo italiano. E havia também um dominicano, vestido de branco, que passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculado pavão de arminho.

Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuse teve uma dúvida: — "Esse Molière é brasileiro?".

Um pau-d'água grã-fino respondeu na hora: — "Cearense".
[20/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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