Foi na Delegacia da Penha, onde fui parar acompanhando um amigo que tivera seu carro roubado e — posteriormente — encontrado pelos guardas da jurisdição da "padroeira". Antes de mais nada devo declarar que na Delegacia da Penha acontecem coisas de que até Deus duvida. De dois em dois minutos, uma "ocorrência" para o comissário do dia registrar. O comissário, coitado, tem que quebrar mais galho do que um lenhador canadense.
Mal tinha resolvido o caso de uma gorda que fora mordida pelo cachorro da vizinha, ou foi a vizinha que mordeu o cachorro da gorda? Sei lá... já não me lembro mais. O que eu sei é que, mal tinha saído a gorda, e o pessoal em volta comentava a bagunça que a gorda tentou armar no distrito, e já começava o caso do crioulo de duas mulheres.
Para mim, sinceramente, "O Caso do Crioulo de Duas Mulheres" foi o mais bacaninha de todos. De repente entrou aquele bruto crioulo. Tinha quase dois metros de altura, era forte como um touro, e caminhava no mais autêntico estilo da malandragem carioca.
Ladeado por duas mulheres imobilizadas por uma chave-de-braço cada uma, caminhou calmamente até o centro da sala, enquanto as duas faziam o maior banzé, sem que ele tomasse o menor conhecimento. A que ele trazia presa na canhota era meio puxada para o sarará e chamava-o, com notável regularidade, de "vagabundo", "crioulo ordinário", "homi safado" e outros adjetivos da mesma qualidade.
A que estava presa pelo lado direito tinha a chave-de-braço mais apertada pouquinha coisa (devia ser mais presepeira) e, por isso, estava meio tombada pra frente. Dava as suas impressões sobre o crioulo com menos freqüência, mas — em compensação — quando abria a boca, berrava mais alto que a sarará. Sua reivindicação era sempre a mesma: — "Me larga, seu cachorro!" De tipo, era mulata e gordinha.
O bom crioulo nem parecia... Com a calma já assinalada, olhou em volta, bateu os olhos no comissário e adivinhou:
— Tô falando com o comissário?
O comissário respondeu que sim. A voz do crioulo era surpreendentemente fina para um sujeito de sua estatura. Isto dava um ar bem-humorado à cena, assistida pelos presentes: uns 15 ou 20, se tanto. A gorduchinha tentou se desprender. Ele apertou mais a chave e disse fininho:
— Quieta aí — e, virando-se para o comissário: — Boa tarde, doutor. Eu sou estivador e moro aqui pertinho, num barraco de minha propriedade, com estas duas.
— O senhor vive com as duas? — perguntou o comissário.
— Vivo, sim sinhô. Mas isto nunca foi pobrema. Urtimamente, porém, elas todavia dero pra brigá. Eu saio pro trabáio e quando vorto as duas tão cheia de cachaça e começa com ciumera.
— Que ciumera o quê? Eu lá tenho ciúme de você, seu ordinário? — disse a sarará.
O crioulo interrompeu sua explanação à autoridade e falou pra ela:
—Q uieta aí, senão vai levá uma bolacha na frente do doutô.
A sarará não acreditou, cuspiu pro chão, em sinal de nojo e levou aquela tapona definitiva, franca, imaculada. Calou a boca e voltou para a chave-de-braço. O crioulo pigarreou e prosseguiu:
— Pois é como eu digo, doutô. Faz dois dia que num drumo, tá bem? Dois dia sem drumi. Vê se pode. Tudo por causa do bode que essas duas arma quando eu chego... — largou a sarará, colocou a mão sobre o peito, coberto pela camisa de seda amarela. Usava camisa de seda, uma calça de brim ordinário, mas com vinco perfeito e calçava um chinelo de couro cru, que deve ter custado uma besteira, mas na vitrina de qualquer butique da Zona Sul estaria com o preço marcado para 50 contos, no mínimo.
— E elas num tem razão — esclareceu: — Se há um sujeito que num tem preferença sou eu. Elas veve comigo há três ano e num pode ter queixa. É tudo onda delas, doutô. Hoje é minha forga no cais e eu preciso drumi. Eu trouxe elas aqui pro senho prende elas aí. Tá legal? O senho faz isso pra mim? Amanhã quando eu acordá eu venho buscá.
O comissário coçou a cabeça, perguntou a um auxiliar se havia xadrez vago, o auxiliar disse que sim e ele perguntou, para que o crioulo ratificasse:
— Você amanhã passa aqui para apanhar as duas?
— Passo sim, doutô. É só esta noite pra eu podê drumi. Amanhã eu prometo ao senhô que, assim que eu acordá, faço o meu café, tomo um banho e venho aqui buscá elas.
O comissário concordou: dois guardas agarraram as mulheres, que foram lá pra dentro berrando e se debatendo. O crioulo agradeceu ao comissário, virou as costas e foi saindo. Lá dentro, as duas mulheres — longe dele — aumentaram o festival de palavrões em sua homenagem.
O crioulo parou perto de um guarda e perguntou: — Tu que é o prontidão? — o guarda fez um movimento de cabeça afirmativo: — Intão, tu me faz um favô. De vez em quando joga um balde d’água nelas, pra elas esfriá. Amanhã, quando eu vier reclamá a mercadoria, tu leva um "tiradente" pelos serviço prestado, tá?
— Tá! — concordou o prontidão, olhando logo prum canto para conferir a ferramenta de dar fria, ficando notoriamente tranqüilo ao ver um balde velho e amassado, debaixo de um banco.
— Eu lhe agradeço — garantiu o crioulo, com uma pequena reverência. Depois retirou-se naquele mesmo passinho macio, chinelo de couro cru, camisa de seda amarela, frisada pela brisa da tarde. Ia dormir sossegado, no barraco de sua propriedade.
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Mal tinha resolvido o caso de uma gorda que fora mordida pelo cachorro da vizinha, ou foi a vizinha que mordeu o cachorro da gorda? Sei lá... já não me lembro mais. O que eu sei é que, mal tinha saído a gorda, e o pessoal em volta comentava a bagunça que a gorda tentou armar no distrito, e já começava o caso do crioulo de duas mulheres.
Para mim, sinceramente, "O Caso do Crioulo de Duas Mulheres" foi o mais bacaninha de todos. De repente entrou aquele bruto crioulo. Tinha quase dois metros de altura, era forte como um touro, e caminhava no mais autêntico estilo da malandragem carioca.
Ladeado por duas mulheres imobilizadas por uma chave-de-braço cada uma, caminhou calmamente até o centro da sala, enquanto as duas faziam o maior banzé, sem que ele tomasse o menor conhecimento. A que ele trazia presa na canhota era meio puxada para o sarará e chamava-o, com notável regularidade, de "vagabundo", "crioulo ordinário", "homi safado" e outros adjetivos da mesma qualidade.
A que estava presa pelo lado direito tinha a chave-de-braço mais apertada pouquinha coisa (devia ser mais presepeira) e, por isso, estava meio tombada pra frente. Dava as suas impressões sobre o crioulo com menos freqüência, mas — em compensação — quando abria a boca, berrava mais alto que a sarará. Sua reivindicação era sempre a mesma: — "Me larga, seu cachorro!" De tipo, era mulata e gordinha.
O bom crioulo nem parecia... Com a calma já assinalada, olhou em volta, bateu os olhos no comissário e adivinhou:
— Tô falando com o comissário?
O comissário respondeu que sim. A voz do crioulo era surpreendentemente fina para um sujeito de sua estatura. Isto dava um ar bem-humorado à cena, assistida pelos presentes: uns 15 ou 20, se tanto. A gorduchinha tentou se desprender. Ele apertou mais a chave e disse fininho:
— Quieta aí — e, virando-se para o comissário: — Boa tarde, doutor. Eu sou estivador e moro aqui pertinho, num barraco de minha propriedade, com estas duas.
— O senhor vive com as duas? — perguntou o comissário.
— Vivo, sim sinhô. Mas isto nunca foi pobrema. Urtimamente, porém, elas todavia dero pra brigá. Eu saio pro trabáio e quando vorto as duas tão cheia de cachaça e começa com ciumera.
— Que ciumera o quê? Eu lá tenho ciúme de você, seu ordinário? — disse a sarará.
O crioulo interrompeu sua explanação à autoridade e falou pra ela:
—Q uieta aí, senão vai levá uma bolacha na frente do doutô.
A sarará não acreditou, cuspiu pro chão, em sinal de nojo e levou aquela tapona definitiva, franca, imaculada. Calou a boca e voltou para a chave-de-braço. O crioulo pigarreou e prosseguiu:
— Pois é como eu digo, doutô. Faz dois dia que num drumo, tá bem? Dois dia sem drumi. Vê se pode. Tudo por causa do bode que essas duas arma quando eu chego... — largou a sarará, colocou a mão sobre o peito, coberto pela camisa de seda amarela. Usava camisa de seda, uma calça de brim ordinário, mas com vinco perfeito e calçava um chinelo de couro cru, que deve ter custado uma besteira, mas na vitrina de qualquer butique da Zona Sul estaria com o preço marcado para 50 contos, no mínimo.
— E elas num tem razão — esclareceu: — Se há um sujeito que num tem preferença sou eu. Elas veve comigo há três ano e num pode ter queixa. É tudo onda delas, doutô. Hoje é minha forga no cais e eu preciso drumi. Eu trouxe elas aqui pro senho prende elas aí. Tá legal? O senho faz isso pra mim? Amanhã quando eu acordá eu venho buscá.
O comissário coçou a cabeça, perguntou a um auxiliar se havia xadrez vago, o auxiliar disse que sim e ele perguntou, para que o crioulo ratificasse:
— Você amanhã passa aqui para apanhar as duas?
— Passo sim, doutô. É só esta noite pra eu podê drumi. Amanhã eu prometo ao senhô que, assim que eu acordá, faço o meu café, tomo um banho e venho aqui buscá elas.
O comissário concordou: dois guardas agarraram as mulheres, que foram lá pra dentro berrando e se debatendo. O crioulo agradeceu ao comissário, virou as costas e foi saindo. Lá dentro, as duas mulheres — longe dele — aumentaram o festival de palavrões em sua homenagem.
O crioulo parou perto de um guarda e perguntou: — Tu que é o prontidão? — o guarda fez um movimento de cabeça afirmativo: — Intão, tu me faz um favô. De vez em quando joga um balde d’água nelas, pra elas esfriá. Amanhã, quando eu vier reclamá a mercadoria, tu leva um "tiradente" pelos serviço prestado, tá?
— Tá! — concordou o prontidão, olhando logo prum canto para conferir a ferramenta de dar fria, ficando notoriamente tranqüilo ao ver um balde velho e amassado, debaixo de um banco.
— Eu lhe agradeço — garantiu o crioulo, com uma pequena reverência. Depois retirou-se naquele mesmo passinho macio, chinelo de couro cru, camisa de seda amarela, frisada pela brisa da tarde. Ia dormir sossegado, no barraco de sua propriedade.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora