quarta-feira, 2 de novembro de 2011

A leitora de Marcuse

Não sei se vocês conhecem o meu amigo e editor Alfredo C. Machado. Vale a pena. Eu diria que de todos os brasileiros, vivos ou mortos, é o que mais viaja.

De vez em quando, ligo para o seu escritório. Digo: — "Meu bem, cadê o Machado?". A telefonista, mascando um imaginário chiclete, responde: — "Está em Tóquio". Ou é Tóquio, ou Cingapura, ou Cairo, ou Berlim. E a telefonista fala como se Tóquio fosse ali na esquina.

Nas minhas insônias, que as tenho e crudelíssimas, pergunto, de mim para mim: — "Por que viaja tanto o Machado?". E, de fato, é o único brasileiro que gosta de viajar. Os outros saem do país por imitação, pose ou tédio. Ao passo que, para o Alfredo, a viagem é um dom, uma graça, um destino.

Estivemos juntos, ontem. E já não sei se hoje, agora, neste momento, ele não estará desembarcando num porto qualquer, lá nos mares do Sul. Mas falo, falo, e não digo o essencial. Assim como circula por todas as terras, idiomas e paisagens, o Machado tem o mesmo e fácil trânsito em todos os jornais, em todas as redações. As nossas conversas são picotadas por telefonemas.

E, então, o Machado pede licença e atende. Por exemplo: — ontem. Uma grã-fina liga para o meu amigo. Pedia uma notícia não sei em que jornal. Ora, o Machado podia dizer, simples e lisamente: — "Eu não sou jornalista". Mas ninguém pode exigir que uma linda senhora, e, de mais a mais, capa de Manchete, seja também racional. Ela está acima de qualquer argumento ou raciocínio.

E a grã-fina não se contentava com um único jornal. Seria pouco para a sua fome. Queria que a notícia saísse em todos. E era tal a aflição da capa de Manchete que o Machado quis saber: — "Mas o que é, afinal?". Imagino que, do outro lado da linha, a grã-fina tenha baixado a vista, escarlate de modéstia; e disse: — "Estou lendo Marcuse".

Houve uma pausa, um suspense. No seu espanto, Machado pergunta: — "Como? Como?". A outra suspira: — "Estou lendo Marcuse". E queria que o Machado, que tinha tantas amizades jornalísticas, mandasse publicar que ela, d. Fulana de Tal, lia Marcuse. Era preciso que o mundo, o Brasil, De Gaulle, as amigas, as inimigas, os credores, todos, todos soubessem que ela passava as horas e os dias lendo e relendo Marcuse.

Machado saiu do telefone num radiante espanto; e me perguntava: — "Como pode? Como pode?". Eu, numa curiosidade aflita, queria o nome e, se possível, os dados biográficos da leitora de Marcuse. E quando soube do nome, fiz um risonho escândalo: — "Mas é ela? Ela?". Sim, era "ela".

E, já num interesse profundo, perguntei mais: — "E vais dar a notícia?". Meu amigo admitiu que sim. Estava disposto ao alegre sacrifício de promover uma leitura e uma leitora tão "pra frente".

E o leitor, que é um marginal do grã-finismo, há de pedir também o nome e, se possível, até uma descrição física da pessoa. Vamos por partes: fisicamente, não sei se é bonita; talvez o seja, talvez não. Ou por outra: — eu diria que é uma falsa bonita, como costumam ser as grã-finas. Já a vi em várias festas. Seu decote lembra o de Elizabeth Taylor. Como se sabe, depois dos vários casamentos, a célebre atriz engordou.

E a leitora de Marcuse tem, precisamente, o decote robusto, bem alimentado, de Elizabeth Taylor. Estou agora em dúvida. Não sei se terei outras informações "físicas" sobre a nossa heroína. Ah, já me lembro.

Tempos atrás, fui ao Estádio Mário Filho ver um Fla-Flu qualquer. Coincidiu que entramos juntos: — eu, por uma borboleta; a grã-fina, por outra borboleta. Mas que faria ela em tal lugar? Realmente, entende tanto de futebol que, entrando no ex-Maracanã, é capaz de perguntar, nervosamente: — "Quem é a bola? Quem é a bola?".

Outra coincidência: — eu, ela e o marido (quinto marido) subimos pelo mesmo elevador. Estávamos amontoados num espaço sufocante e numa promiscuidade vagamente abjeta. Justamente, eu ia lado a lado com a leitora de Marcuse (que ainda não era leitora de Marcuse). Houve um momento em que a olhei, de esguelha. E, súbito, fiz a observação que jamais ocorreu a ninguém: — ela tem narinas de cadáver!

Entendem? Pode ser bonita, e eu admito que o seja. Mas suas possíveis virtudes, físicas e espirituais, não alteram este fato iniludível, fato que está acima de qualquer dúvida, de qualquer sofisma: — tem narinas de cadáver.

E, ali, no elevador, antes de chegar ao sexto andar, eu percebia toda a verdade. A leitora de Marcuse, contando com o atual, teve cinco maridos e só se desquitou do primeiro. Nos restantes casamentos, dispensou ou esqueceu a formalidade do desquite. E o que perturbou sua convivência com os quatro maridos anteriores foram, ouso presumir, as narinas de cadáver.

Eu já não ia dizer-lhe o nome. E, agora, muito menos, já que existe um claro impedimento nasal. Feita a ressalva, volto ao Machado. Saí do seu escritório e, dois dias depois, estou pesquisando as seções sociais.

No fim da leitura, eis a minha conclusão: — "O Machado trabalhou direito". E, de fato, em todos os jornais, menos O Dia e Luta Democrática, estava a notícia borbulhando: — "A sra. Fulana de Tal está lendo Marcuse".

Os simples, os românticos, os que não têm uma certa malícia não imaginam o que é, e como é, o grã-finismo. Dois dias depois, repasso as colunas sociais e lá está: — Fulana de Tal lê Marcuse; Beltrana de Tal lê Marcuse; Sicrana de Tal lê Marcuse. E, de repente, todas as grã-finas, vivas, mortas ou analfabetas, estão lendo Marcuse.

A coisa é tão contagiosa como o foi, outrora, a escarlatina.

A grã-fina que "lê Marcuse", e o confessa por toda a parte, está dando um atestado de ideologia. E, realmente, a conhecida do Machado e minha é esquerdista e radical como as que mais o sejam. Quer violência, não abre mão de sangue. Acha que, sem luta armada, o desenvolvimento é uma absoluta e eterna impossibilidade.

No mais, freqüentou todas as passeatas; foi vista, numa sacada, atirando listas telefônicas. De outra feita, marchou pela Avenida. Só fez uma concessão à própria classe. Foi quando Vladimir mandou a multidão sentar. Ela desobedeceu para não sujar o vestido.

Por fim, o leitor há de querer um informe cultural sobre a nossa heroína. Seria desairoso eu próprio opinar. Prefiro dar a palavra aos fatos.

Certa vez, fui a um sarau de grã-finos no Alto da Boa Vista. Ela compareceu com as suas narinas de cadáver e seu decote de Elizabeth Taylor. Descobri entre os presentes o Daniel Caetano, moreno como um galã do neo-realismo italiano. E havia também um dominicano, vestido de branco, que passava, solene, por entre os decotes. Era um imaculado pavão de arminho.

Alguém falou de Molière. A então futura leitora de Marcuse teve uma dúvida: — "Esse Molière é brasileiro?".

Um pau-d'água grã-fino respondeu na hora: — "Cearense".
[20/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Os noivos

Tinha eu sete anos. Não havia ainda o Poder Jovem e, pelo contrário, o Brasil estava cheio de setuagenários natos. Muitos nasciam com cinqüenta, sessenta, setenta anos. Por exemplo: — Rui Barbosa. Nasceu de fraque e já conselheiro.

Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável. Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez.

Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo. E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha.

A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.

Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes).

D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — "Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!".

Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal.

Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.

Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — "A mais antiga das profissões". Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.

Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.

Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a "Pasionaria" do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — "E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?". Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou "quarenta anos antes do Nada".

Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — "Muerte" a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. "Muerte", portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes.

Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.

Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro.

E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. "O que não respeita nem as cunhadas" começou, às gargalhadas: — "Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?".

Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — "Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual".

Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — "Então, melhor. Não precisam comprar nada".

Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — "Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores".

Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — "Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?".

Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — "Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!".

Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — "E o pior é o sindicato!". Atracado no telefone, fez um comício: — "Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E o problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!".

E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — "Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser  contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!".

Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — "Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto".

O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade.

E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — "Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias".

[18/7/1968]


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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Teatro de Revista - Parte Final

Parte Final: O Luxo e a Decadência

"Depois de largo período de entrosamento com o samba, o Teatro de Revista se volta para o luxo e abandona a faceta de lançador de sucessos, até que a censura e a televisão o levam à decadência."

Manuel Pinto foi um dos empresários mais bem sucedidos do teatro de revista, no início do século. Coube a Walter Pinto herdar o gosto do pai pelo negócio, fazê-lo crescer e tornar-se um dos mais ricos produtores do setor. Para isso, contribuíram alguns fatores que acabaram por influir na própria cultura popular carioca e, mais remotamente, brasileira.

A fim de ganhar mais dinheiro que o pai, Walter Pinto ousou mais. Investiu, procurou caminhos diferentes, modificou esquemas e teve êxito. Quem se deu mal nesse contexto foi o samba, a médio prazo.

Ao assumir, o novo empresário decidiu que ninguém teria mais destaque que ele em seus espetáculos. Assim, durante anos, uma enorme fotografia sua aparecia no cartaz do teatro e nos anúncios dos jornais, garantindo: Walter Pinto apresenta. E seguiam-se os nomes (sem fotografia de ninguém) dos mais famosos artistas do teatro de revista, em ordem de importância, as vedetes, os comediantes, as modelos, as atrações. Com isso, criou sua marca registrada.

As pessoas não iam ao teatro ver esse ou aquele artista; iam ver um espetáculo de Walter Pinto, o que era sinônimo de qualidade. Ao menos da qualidade que seu gosto passou a impor, modificando inteiramente o conceito de se fazer revista, vigente até os anos 40. Da mesma forma que a Ba-Ta-Clan e outras companhias de revista européias mudaram o formato revisteiro no princípio do século, Walter Pinto voltaria a fazê-lo, nesse momento de transformação.

A diferença foi que, na primeira reviravolta, o samba ganhou espaço para se apresentar. O talento das estrelas estava centrado nas vozes e interpretações, embora a beleza das pernas e demais atributos físicos fossem também da maior importância. Mas, quem não cantasse bem, não se escorasse em um bom samba inédito a cada estréia, teria carreira curta e dificilmente chegaria ao estrelato.

Luxuosa montagem de Walter Pinto, anos 40
Uma das primeiras luxuosas montagens de Walter Pinto, no Teatro Recreio, no Rio de Janeiro, anos 40.
Com o advento da era Pinto, tudo mudou, O eixo do talento foi transferido, o essencial era a beleza física e, principalmente, o desembaraço no trato com o público. Para ser vedete, era fundamental o jogo de cintura, que permitia enfrentar o chamado “número de platéia”. Nele, a atriz, em trajes mínimos, depois da breve introdução de um assunto malicioso, dialogava com a platéia e tinha que ter a necessária rapidez de raciocínio para responder, quase sempre com duplo sentido, a quaisquer perguntas, sem se deixar embaraçar, expondo o espectador ao riso dos demais. Se cantasse um pouquinho, já estava bom. Samba, nem pensar!

Em termos cenográficos, as inspirações eram importadas dos grandes shows da Broadway e dos cassinos de Las Vegas, nos Estados Unidos. O Follies Bergère e o Lido, parisienses, também eram fontes de informações para espetáculos estruturados em monumental aparato, procurando imitar os musicais que Hollywood produzia e distribuía para o mundo.

Com o êxito financeiro, Walter Pinto viajava com freqüência para o exterior, onde, além de comprar luxuosas fantasias para seu guarda-roupa cênico, contratava coristas e vedetes de rara beleza e tipos físicos bastante diferentes das brasileiras, criando forte aura de curiosidade e desejo ao redor delas.

Francesas, inglesas, americanas e, mais modestamente, argentinas eram vistas em geral nas leiterias da praça Tiradentes, antes e depois dos espetáculos, como se estivessem com tranqüilidade em Picadilly Circus, na Broadway, em Pigalle, ou na Avenida Corrientes. Duas brasileiras, porém, conseguiram atravessar a cortina de seda das estrangeiras e marcar seus nomes como as mais importantes vedetes dos meados do século.

Em 1944, Walter Pinto estreou no Teatro Recreio, a revista Momo Na Fila, de Geysa Bôscoli e Luiz Peixoto. A estrela era Dercy Gonçalves, mas, lá atrás, nas últimas fileiras das coristas, alinhava-se uma paraense loira e linda, recém-chegada ao Rio de Janeiro, desquitada e com filhos, cujo primeiro emprego foi-lhe dado pelo empresário Pinto. Na carteira de trabalho, o nome Osmarina Colares Cintra. Em muito pouco tempo, transformou-se em Mara Rúbia (foto logo acima neste artigo), nome que passou a ser escrito em destaque, com luzes, na marquise do mais famoso teatro de revista do Brasil. Mara Rúbia, durante anos, foi apontada pela metade do país como a maior vedete brasileira.

A outra metade tinha favorita diferente. Uma que contava com as preferências de ninguém menos que Getúlio Vargas, presidente da República, que assistia a todas as revistas do Recreio e tinha pendor especial por Virgínia Lane (foto ao lado), a quem deu o apelido que ela adotou para sempre: a Vedete do Brasil. Procedente dos cassinos, tarimbadíssima no “número de platéia”, a pequenina Virgínia tinha tal presença em cena que parecia crescer a quase um metro e oitenta e ombrear-se com as espigadas coristas que Walter Pinto importava do outro lado do mundo, mas que acabavam por servir apenas de moldura à baixinha, dentucinha, mas talentosíssima estrela do Recreio, de mais ou menos 20 anos.

Já não havia definitivamente espaço para o samba, no teatro de revista. Quando um ou outro aparecia, era simples repetição de sucesso já ditado pelo rádio ou alguma paródia política que usava a música de um deles em voga, para criticar alguma coisa ou alguém. Nunca mais um samba inédito foi lançado em um palco do teatro de revista, que agora se refestelava na grandeza e no luxo das bem-cuidadas cenografias, dos guarda-roupas deslumbrantes e na sensualidade de mulheres belíssimas, das quais a arte de cantar era o que menos se exigia.

Enquanto a concorrência à revista se limitou aos shows das luxuosas boates cariocas, da ainda capital da República, confinando-se aos pequenos palcos do Golden Room do Copacabana Palace Hotel, das boates Casablanca, Night and Day, Montecarlo, Fred’s e congêneres, Walter Pinto reinou absoluto na praça Tiradentes, de onde saía para incursões por São Paulo, Belo Horizonte ou Porto Alegre, deixando espaço, por pouco tempo, para companhias menores.

Mas, quando a censura política amordaçou os comediantes do teatro de revista, abrindo as portas para a pornografia explícita, e a televisão roubou-lhe os elencos, pagando melhor, ele, praticamente, encerrou as atividades e com elas um período marcante, que, a partir daí, foi só decadência.

Fonte: História do Samba - Editora Globo; http://teatrobr.blogspot.com
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