Tinha eu sete anos. Não havia ainda o Poder Jovem e, pelo contrário, o Brasil estava cheio de setuagenários natos. Muitos nasciam com cinqüenta, sessenta, setenta anos. Por exemplo: — Rui Barbosa. Nasceu de fraque e já conselheiro.
Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável. Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez.
Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo. E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha.
A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.
Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes).
D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — "Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!".
Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal.
Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.
Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — "A mais antiga das profissões". Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.
Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.
Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a "Pasionaria" do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — "E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?". Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou "quarenta anos antes do Nada".
Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — "Muerte" a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. "Muerte", portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes.
Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.
Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro.
E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. "O que não respeita nem as cunhadas" começou, às gargalhadas: — "Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?".
Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — "Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual".
Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — "Então, melhor. Não precisam comprar nada".
Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — "Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores".
Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — "Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?".
Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — "Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!".
Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — "E o pior é o sindicato!". Atracado no telefone, fez um comício: — "Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E o problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!".
E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — "Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!".
Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — "Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto".
O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade.
E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — "Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias".
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Volto aos meus seis anos. Ou por outra: — sete, eu disse sete. E, um dia, veio morar, perto da minha casa, uma senhora admirável. Na minha infância, assim como os homens eram velhos, as mulheres eram gordas. E d. Ivonete (ou seria Ivete?) teria cem quilos, talvez.
Às sete horas da manhã, já estava vestida de veludo encarnado, um decote de Elizabeth Taylor, pintada como uma máscara. Usava colares, braceletes, diademas, pingentes, o diabo. Para meu gosto, d. Ivonete era mais bonita do que Dorothy Dalton, heroína do cinema mudo. E d. Ivonete era noiva. Aqui começa a singularidade da nova vizinha.
A partir das dez horas, começavam as visitas do noivo. O Fulano passava quarenta minutos lá e saía. Dez minutos depois, voltava. Todavia, ao voltar, o noivo de d. Ivonete tinha outra cara, outro terno, outra gravata, outra idade e, até, outra cor. O movimento entrava pela noite adentro. E vejam como são as crianças: — não me admirava nada, nada, que o noivo mudasse de cara, de terno, de idade, de meia em meia hora.
Até que, um dia, não sei quem denunciou. E o fato é que a polícia foi bater na porta de d. Ivonete. (Segundo se soube depois, quem deu o serviço foi outra vizinha, uma que falava mal de todo mundo. Era outra gorda. Não me lembro do seu nome, nem de sua cara. Só me lembro das gazes enroladas nas canelas, por cima das varizes).
D. Ivonete foi expulsa da rua, do bairro. Arrastada por três ou quatro, esganiçava palavrões. Berrava: — "Vocês vão me pagar! Vocês vão me pagar!".
Só então se conheceu toda a verdade: — d. Ivonete pertencia à mais antiga das profissões. Bem. E o curioso é que esta lembrança nasceu de uma leitura de jornal.
Li, em toda a imprensa, que há um motim de padres. Os padres se revoltam, e contra que ou contra quem, meu Deus? Contra a castidade. Exigem o fim do celibato. Portanto, odeiam a castidade.
Comecei a ler sobre o motim e pensei, vejam vocês, na vizinha da minha infância (cada gesto seu era uma cintilação, um alarido de pulseiras, colares, pingentes etc. etc.). E de d. Ivonete passei para as mulheres que, em todos os tempos e em todos os idiomas, praticaram o amor pago. Disse eu: — "A mais antiga das profissões". Sim, uma profissão de uns 40 mil anos.
Imaginem vocês se, um dia, d. Ivonete e suas colegas de todas as procedências e sotaques resolvessem fazer também sua revolução. Imagino d. Ivonete propondo, em assembléia geral, não um aumento de tarifas. Não. Os preços ainda estão satisfatórios, ainda garantem uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima.
Na minha fantasia, vejo d. Ivonete, como a "Pasionaria" do sexo — propondo a castidade. Ouviram bem? Eis o seu apelo: — castidade para as prostitutas. Os idiotas da objetividade iriam objetar: — "E o passado? E a tradição? E o hábito? E a féria?". Há 40 mil anos que certas mulheres cobram os seus carinhos. Não sei quem disse, certa vez, que o comércio carnal principiou "quarenta anos antes do Nada".
Mas vamos dar rédeas ainda à fantasia. Visualizemos uma passeata de tais mulheres. Carregam faixas, cartazes, com dizeres assim: — "Muerte" a não sei quê. Ou por outra, sei: — ao sexo. "Muerte", portanto, ao sexo. As sacadas atirariam listas telefônicas e cinzeiros sobre as manifestantes.
Estas agradeceriam, entrelaçando as mãos no alto, como os pugilistas. Havia de ser patético ou, por outra, sublime.
Eis o que eu queria dizer: — um movimento de meretrizes a favor da castidade não me espantaria mais do que o motim dos padres contra a castidade. Um, tão absurdo, divertido ou trágico quanto o outro.
E a coisa é tão alucinatória que recebo um telefonema, sabem de quem? Do Palhares, o canalha. "O que não respeita nem as cunhadas" começou, às gargalhadas: — "Você leu? Não leu o manifesto dos padres, pedindo o fim de celibato?".
Conversamos, no telefone, uma hora talvez, ou mais. O Palhares falava mais do que eu. E a sua objetividade começou a me deprimir e a me consternar (por vezes, os canalhas têm um implacável, luminoso senso comum). Simplesmente, o Palhares dizia o seguinte: — "Ah, duzentos padres, ou trezentos, ou mil que sejam, querem casar? Não precisam apelar para a Conferência de Bispos. É simples como água: — vão ali na Ducal, compram dois ternos e substituem a batina pelo terno. E, assim, no crediário, conquistam uma fulminante liberdade sexual".
Lembrei ao canalha que muitos sacerdotes já se vestem como a gente. Ele retruca: — "Então, melhor. Não precisam comprar nada".
Ponderei que os padres queriam casar. O Palhares morria de rir: — "Não precisa casar. Se a castidade não significa nada, nem o casamento. Pra que casamento? Vamos sair por aí como livres atiradores".
Mas houve um momento em que o Palhares falou sério. (O Palhares, grave, pela primeira vez grave!) Disse, amargo: — "Como se põe pela janela uma castidade de vinte séculos? E só agora, 2 mil anos depois, é que descobrem o sexo?".
Por fim, o Palhares fala do próprio caso: — "Por que é que não sou padre? Porque não posso ver mulher. Não posso. Digo a verdade: — não posso. Um dia, cruzei com a cunhada no corredor. Era cunhada. Dei-lhe um beijo. Um ato vil, está certo. Mas nunca quis ser padre. E, se duvidarem, subo numa mesa e digo: — Sou um canalha!".
Parou, um momento, arquejante da própria sinceridade. Tomou fôlego e voltou com outra indignação: — "E o pior é o sindicato!". Atracado no telefone, fez um comício: — "Querem sindicato, descontar para o Instituto? Vão para o cais do porto. Carregar saco é uma solução. O estivador desconta para o INPS. Ótimo. Os ex-padres serão segurados do INPS. E o problema da castidade deixa de existir. Mas pode ser que eles não queiram carregar saco. Ora, o cais do porto não é só estiva. Há o contrabando!".
E, já esquecido de suas fantasias éticas, o pulha está radiante: — "Aí está: — o contrabando. Os ex-padres podem ser contrabandistas. Uma mina, uma mina! Cigarro americano, lingerie. Há cada camisola, menino! Cremes, o diabo!".
Mas Palhares tinha que ver uma pequena no Leblon e estava na hora. Novamente lúgubre, suspirou: — "Eles não sabem que não há, nunca houve, satisfação sexual. Sábio é o casto".
O que o Palhares queria dizer é que todo mundo tem, claro, suas tensões, suas angústias, seus desesperos. Ao passo que o casto sofre menos e está mais perto da serenidade.
E, antes de se despedir, concluiu o canalha: — "Esses padres não devem casar. Quem traiu um celibato de 2 mil anos há de trair um matrimônio de quinze dias".
[18/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.