Havia no bairro um grupo de bebedores da melhor qualidade. A turma se reunia no fundo de um armazém de secos & molhados, onde existiam uma mesa, ampla e algumas cadeiras. No começo eram uns poucos, mas depois o grupo recebeu algumas adesões, e os aderentes sentavam em caixotes vazios, que era o que mais tinha no fundo do armazém.
Está claro, sendo um grupo de bebedores, embora fosse o local uma firma — como ficou dito — de secos & molhados, nunca ninguém da turma se interessou pelos secos. Era tudo gente dos molhados. E de tal forma eram que acabaram inventando uma espécie de hierarquia de bebedores.
Reparem que estou a chamá-los de bebedores e não de bêbados; isto é, a turma era consciente e não um vulgar amontoado de pés-de-cana.
Mas, eu dizia, resolveram inventar uma hierarquia baseada no maior ou menor rendimento de cada um, na admirável (pelo menos para eles) arte de curtir um pileque com dignidade. Assim, aqueles que fossem uns frouxos e não passassem de uns tantos cálices, seriam cabos ou sargentos; os que conseguiam agüentar dose maior seriam tenentes, e acima os capitães, majores... enfim, a graduação subia na ordem direta da cachaça de cada um ou, como disse um deles, mais cínico pouquinha coisa, na capacidade de virar gargalo.
Um detalhe importante que, depois de inventado esse pequeno exército da pinga, todos passaram a respeitar foi a obediência ao posto. Um tenente nunca entrava em qualquer lugar público sem bater continência para um major, pedir licença para permanecer no recinto, etc.
Foi quando Geraldina conheceu Adamastor, que era major já fazia mais de um ano. Saiu com ele uma noite, para jantar, e ficou muito impressionada. Estavam os dois esperando os pratos encomendados, quando aproximou-se um cavalheiro e, fazendo continência para Adamastor, falou:
— Dá licença, Major?
—À vontade — respondeu Adamastor, meio cabreiro, por causa da presença dela.
Aquilo deu a Geraldina um certo orgulho. Afinal, aquele cavalheiro que a acompanhava não era um qualquer. Tinha a sua importância, recebia certas deferências. É verdade que Geraldina era nova no bairro e nunca suspeitaria em que exército Adamastor servia no posto de major.
E digo mais. Pouca gente sabia daquela brincadeira. Sim, porque quem não era da turma encarava a combinação do grupo como simples brincadeira, ainda que a seriedade com que eles se davam ao ritual da continência provasse que — pelo menos os do exército da cachaça — não tinham aquilo em conta de brinquedo.
Mas voltemos a Geraldina e ao Major Adamastor. Continuaram a sair juntos, tornaram-se namorados e, mais do que isto, comprometidos. Adamastor já tinha levado Geraldina para conhecer sua família e vice-versa. À beira de um noivado, portanto.
Foi então que, um dia, conversando com uma tia fofoqueira de Adamastor, Geraldina disse: — Uma das coisas que eu mais admiro no Adamastor é a importância dele, Dona Babilônia (a tia chamava-se Babilônia, embora jamais pudesse ser incluída entre as 7 maravilhas do mundo, muito pelo contrário — velha vesga estava ali). Mal Geraldina fez aquela cândida confissão, Dona Babilônia meteu lá um muxoxo e uma cara de nojo, para lascar:
— Que importância que nada, minha querida. O Adamastor é um beberrão. Sabe que título de major é esse? Pois é por causa de cachaça. Aqueles moleques que fazem continência para ele também são bêbados. Quem bebe mais cachaça vai subindo de posto.
Geraldina ouviu aquilo tudo gelada, mas como já gostasse de Adamastor, não quis mais pensar no assunto. Sabem como é: só o amor constrói para a eternidade. Mas também não ia deixar que ele continuasse a enganá-la nas suas bochechas com aquela besteira de major. E foi batata.
À noite o casal combinou um cinema, e estavam ambos na fila, para comprar entrada, quando apareceram dois sujeitos. Pararam em frente de Adamastor, bateram a devida continência e perguntaram se podiam entrar na fila também. Adamastor respondeu que sim, que podiam. E ficou murcho dentro da roupa, sem olhar para Geraldina, numa atitude que ela antes pensava que fosse de modéstia e agora estava achando que era de cinismo.
Pobre Geraldina, não percebia que Adamastor não tinha o menor orgulho do título. Pelo contrário, sentia-se um injustiçado, tanto assim, que, ao ouvir a bronca, revoltou-se pela primeira vez.
— Não seja cretino, Adamastor — disse ela. — Não fique com esse fingimento, não. Então não sei por que é que esses vagabundos o chamam de major?
E Adamastor: — Pois fique sabendo que é uma injustiça, ouviu? Tem nego lá no armazém que bebe muito menos do que eu e já é coronel.
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Está claro, sendo um grupo de bebedores, embora fosse o local uma firma — como ficou dito — de secos & molhados, nunca ninguém da turma se interessou pelos secos. Era tudo gente dos molhados. E de tal forma eram que acabaram inventando uma espécie de hierarquia de bebedores.
Reparem que estou a chamá-los de bebedores e não de bêbados; isto é, a turma era consciente e não um vulgar amontoado de pés-de-cana.
Mas, eu dizia, resolveram inventar uma hierarquia baseada no maior ou menor rendimento de cada um, na admirável (pelo menos para eles) arte de curtir um pileque com dignidade. Assim, aqueles que fossem uns frouxos e não passassem de uns tantos cálices, seriam cabos ou sargentos; os que conseguiam agüentar dose maior seriam tenentes, e acima os capitães, majores... enfim, a graduação subia na ordem direta da cachaça de cada um ou, como disse um deles, mais cínico pouquinha coisa, na capacidade de virar gargalo.
Um detalhe importante que, depois de inventado esse pequeno exército da pinga, todos passaram a respeitar foi a obediência ao posto. Um tenente nunca entrava em qualquer lugar público sem bater continência para um major, pedir licença para permanecer no recinto, etc.
Foi quando Geraldina conheceu Adamastor, que era major já fazia mais de um ano. Saiu com ele uma noite, para jantar, e ficou muito impressionada. Estavam os dois esperando os pratos encomendados, quando aproximou-se um cavalheiro e, fazendo continência para Adamastor, falou:
— Dá licença, Major?
—À vontade — respondeu Adamastor, meio cabreiro, por causa da presença dela.
Aquilo deu a Geraldina um certo orgulho. Afinal, aquele cavalheiro que a acompanhava não era um qualquer. Tinha a sua importância, recebia certas deferências. É verdade que Geraldina era nova no bairro e nunca suspeitaria em que exército Adamastor servia no posto de major.
E digo mais. Pouca gente sabia daquela brincadeira. Sim, porque quem não era da turma encarava a combinação do grupo como simples brincadeira, ainda que a seriedade com que eles se davam ao ritual da continência provasse que — pelo menos os do exército da cachaça — não tinham aquilo em conta de brinquedo.
Mas voltemos a Geraldina e ao Major Adamastor. Continuaram a sair juntos, tornaram-se namorados e, mais do que isto, comprometidos. Adamastor já tinha levado Geraldina para conhecer sua família e vice-versa. À beira de um noivado, portanto.
Foi então que, um dia, conversando com uma tia fofoqueira de Adamastor, Geraldina disse: — Uma das coisas que eu mais admiro no Adamastor é a importância dele, Dona Babilônia (a tia chamava-se Babilônia, embora jamais pudesse ser incluída entre as 7 maravilhas do mundo, muito pelo contrário — velha vesga estava ali). Mal Geraldina fez aquela cândida confissão, Dona Babilônia meteu lá um muxoxo e uma cara de nojo, para lascar:
— Que importância que nada, minha querida. O Adamastor é um beberrão. Sabe que título de major é esse? Pois é por causa de cachaça. Aqueles moleques que fazem continência para ele também são bêbados. Quem bebe mais cachaça vai subindo de posto.
Geraldina ouviu aquilo tudo gelada, mas como já gostasse de Adamastor, não quis mais pensar no assunto. Sabem como é: só o amor constrói para a eternidade. Mas também não ia deixar que ele continuasse a enganá-la nas suas bochechas com aquela besteira de major. E foi batata.
À noite o casal combinou um cinema, e estavam ambos na fila, para comprar entrada, quando apareceram dois sujeitos. Pararam em frente de Adamastor, bateram a devida continência e perguntaram se podiam entrar na fila também. Adamastor respondeu que sim, que podiam. E ficou murcho dentro da roupa, sem olhar para Geraldina, numa atitude que ela antes pensava que fosse de modéstia e agora estava achando que era de cinismo.
Pobre Geraldina, não percebia que Adamastor não tinha o menor orgulho do título. Pelo contrário, sentia-se um injustiçado, tanto assim, que, ao ouvir a bronca, revoltou-se pela primeira vez.
— Não seja cretino, Adamastor — disse ela. — Não fique com esse fingimento, não. Então não sei por que é que esses vagabundos o chamam de major?
E Adamastor: — Pois fique sabendo que é uma injustiça, ouviu? Tem nego lá no armazém que bebe muito menos do que eu e já é coronel.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora