segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O major da cachaça

Havia no bairro um grupo de bebedores da melhor qualidade. A turma se reunia no fundo de um armazém de secos & molhados, onde existiam uma mesa, ampla e algumas cadeiras. No começo eram uns poucos, mas depois o grupo recebeu algumas adesões, e os aderentes sentavam em caixotes vazios, que era o que mais tinha no fundo do armazém.

Está claro, sendo um grupo de bebedores, embora fosse o local uma firma — como ficou dito — de secos & molhados, nunca ninguém da turma se interessou pelos secos. Era tudo gente dos molhados. E de tal forma eram que acabaram inventando uma espécie de hierarquia de bebedores.

Reparem que estou a chamá-los de bebedores e não de bêbados; isto é, a turma era consciente e não um vulgar amontoado de pés-de-cana.

Mas, eu dizia, resolveram inventar uma hierarquia baseada no maior ou menor rendimento de cada um, na admirável (pelo menos para eles) arte de curtir um pileque com dignidade. Assim, aqueles que fossem uns frouxos e não passassem de uns tantos cálices, seriam cabos ou sargentos; os que conseguiam agüentar dose maior seriam tenentes, e acima os capitães, majores... enfim, a graduação subia na ordem direta da cachaça de cada um ou, como disse um deles, mais cínico pouquinha coisa, na capacidade de virar gargalo.

Um detalhe importante que, depois de inventado esse pequeno exército da pinga, todos passaram a respeitar foi a obediência ao posto. Um tenente nunca entrava em qualquer lugar público sem bater continência para um major, pedir licença para permanecer no recinto, etc.

Foi quando Geraldina conheceu Adamastor, que era major já fazia mais de um ano. Saiu com ele uma noite, para jantar, e ficou muito impressionada. Estavam os dois esperando os pratos encomendados, quando aproximou-se um cavalheiro e, fazendo continência para Adamastor, falou:

— Dá licença, Major?

—À vontade — respondeu Adamastor, meio cabreiro, por causa da presença dela.

Aquilo deu a Geraldina um certo orgulho. Afinal, aquele cavalheiro que a acompanhava não era um qualquer. Tinha a sua importância, recebia certas deferências. É verdade que Geraldina era nova no bairro e nunca suspeitaria em que exército Adamastor servia no posto de major.

E digo mais. Pouca gente sabia daquela brincadeira. Sim, porque quem não era da turma encarava a combinação do grupo como simples brincadeira, ainda que a seriedade com que eles se davam ao ritual da continência provasse que — pelo menos os do exército da cachaça — não tinham aquilo em conta de brinquedo.

Mas voltemos a Geraldina e ao Major Adamastor. Continuaram a sair juntos, tornaram-se namorados e, mais do que isto, comprometidos. Adamastor já tinha levado Geraldina para conhecer sua família e vice-versa. À beira de um noivado, portanto.

Foi então que, um dia, conversando com uma tia fofoqueira de Adamastor, Geraldina disse: — Uma das coisas que eu mais admiro no Adamastor é a importância dele, Dona Babilônia (a tia chamava-se Babilônia, embora jamais pudesse ser incluída entre as 7 maravilhas do mundo, muito pelo contrário — velha vesga estava ali). Mal Geraldina fez aquela cândida confissão, Dona Babilônia meteu lá um muxoxo e uma cara de nojo, para lascar:

— Que importância que nada, minha querida. O Adamastor é um beberrão. Sabe que título de major é esse? Pois é por causa de cachaça. Aqueles moleques que fazem continência para ele também são bêbados. Quem bebe mais cachaça vai subindo de posto.

Geraldina ouviu aquilo tudo gelada, mas como já gostasse de Adamastor, não quis mais pensar no assunto. Sabem como é: só o amor constrói para a eternidade. Mas também não ia deixar que ele continuasse a enganá-la nas suas bochechas com aquela besteira de major. E foi batata.

À noite o casal combinou um cinema, e estavam ambos na fila, para comprar entrada, quando apareceram dois sujeitos. Pararam em frente de Adamastor, bateram a devida continência e perguntaram se podiam entrar na fila também. Adamastor respondeu que sim, que podiam. E ficou murcho dentro da roupa, sem olhar para Geraldina, numa atitude que ela antes pensava que fosse de modéstia e agora estava achando que era de cinismo.

Pobre Geraldina, não percebia que Adamastor não tinha o menor orgulho do título. Pelo contrário, sentia-se um injustiçado, tanto assim, que, ao ouvir a bronca, revoltou-se pela primeira vez.

— Não seja cretino, Adamastor — disse ela. — Não fique com esse fingimento, não. Então não sei por que é que esses vagabundos o chamam de major?

E Adamastor: — Pois fique sabendo que é uma injustiça, ouviu? Tem nego lá no armazém que bebe muito menos do que eu e já é coronel.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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Ivan, o Terrível

Ivan, o Terrível foi o primeiro czar da Rússia, e seu comportamento arbitrário e cruel levou muitos a compara-lo a Vlad o Empalador, o Drácula histórico. Ivan herdou o título do Grão-Duque de Moscovy quando tinha 3 anos de idade e cresceu observando as famílias líderes (os boiardos) de sua terra liderarem os países por um período de caos, à medida em que lutavam entre si por parcelas de poder.
Tinha 17 anos quando um Conselho de Escolha surgiu para efetuar reformas. Embora eles tenham tido sucesso em acabar com o caos, Ivan discutiu continuamente com seus membros sobre uma vasta quantidade de assuntos administrativos.

Em 1564, frustrado, abdicou repentinamente. Quando o povo exigiu seu retorno, pôde ditar os termos de sua reintegração e obter o poder quase absoluto. Movimentou-se rapidamente para estabelecer sua própia elite governamental, a Oprichnina, que retirou grande parte do poder remanescente das mãos do boiardos.

O reinado de duas décadas de Ivan foi marcado, em parte, pela sua conquista das terras ao longo do Rio Volga e por seu movimento para a Sibéria, assim como a desastrosa guerra em que se envolveu quando tentou sem sucesso capturar a Livônia (hoje Estônia).

Ele é mais lembrado, todavia não por suas ações políticas, mas por sua conduta pessoal. No afã de estabelecer, agia rapidamente na punição (e às vezes execução) de muitos que desafiavam seu reinado ou que de alguma forma mostrassem desrespeito pelo que ele considerava seu status engrandecido.

Entre as tendências excepcionais mais lembradas pelos seus conteporâneos, Ivan possuía um senso de humor negro, bem similar ao que fora atríbuido a Vlad. Freqüentemente, esse humor caracterizava as torturas e execuções daqueles que se tornavam o objeto de sua ira.

Conforme assinalou um historiador, S. K. Rosovetskii, muitas das histórias sobre Ivan eram variações daquelas atribuídas a Vlad um século antes. Por exemplo, havia a história folclórica romena sobre os cidadãos moradores da cidade de Tigorviste, a capital de Drácula. Os cidadãos tinham caçoado do irmão de Drácula. Em represália, ele reuniu os principais cidadãos (os boiardos) após as celebrações da Páscoa e, em suas melhores roupas, fez com que marchassem na construção do Castelo de Drácula. Ivan, reporta-se, fez algo parecido na cidade de Volgoda quando as pessoas o viram na manhã da Páscoa. Juntou-as todos ainda em suas melhores roupas de festa e construiu uma nova muralha para a cidade.

Talvez a mais famosa história de Drácula contada a partir de Ivan se referia ao enviado turco que se recusou a tirar seu chapéu na presença de Drácula. Este, em seguida, pregou o chapéu do homem a sua cabeça. Ivan, reporta-se, fez o mesmo com um diplomata italiano (ou, num relato alternativo, com um embaixador francês).

Ivan, como Vlad, muitas vezes se virava contra poderosas figuras da sociedade russa e as humilhava para evitar seu retorno à dignidade de seus cargos. Conta-se a história, por exemplo, de seu ataque sobre Pimen, o representante metropolitano russo-ortodoxo de Novgorod. Despiu-o de suas vestes litúrgicas e vestiu-o de ministrel ambulante (uma ocupação rejeitada pela igreja) e montou um casamento satírico no qual Pimen se casaria com uma égua. Apresentando o despido prelado com os sinais de seu novo status, uma gaita de foles e uma lira, Ivan despachou-o da cidade.

Ivan era diferente de Vlad com relação ao seu apetite sexual, tinha sete esposas e cerca de 50 concubinas. Também deixou os seus sucessores imediatos com uma herança mista. Embora tivesse expandido o território da Rússia, deixou o país na bancarrota e o descontentamento com seu reinado cresceu de forma contínua. Ivan, todavia, morreu de forma pacífica enquanto jogava xadrez, no dia 18 de março de 1584.

Fonte: the fallen angel web.
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O apanhador de mulher

Foi num dia aí que eu tive que ir ao Recife!

Eu sou danado para chegar atrasado no Galeão. Eu e o conforto. Eu ainda chego. Atrasado mas chego. O conforto é que está demorando um bocado. Em matéria de aeroporto internacional, deviam mudar o nome daquele cercado para Galinhão — parece um galinheiro, ficava mais condizente. Mas isto deixa pra lá.

Dizia eu que tive de ir ao Recife e fui mesmo. Fui o último a entrar no avião e sentei ao lado de um cara que tinha uma cor puxada para o esverdeado:

— Esse sujeito deve ter um fígado desses que se deixam subornar pelas hostes inimigas. Ou então é desses que têm mais medo de avião do que "beatnik" de sabonete.

Mas não. Mal o avião levantou vôo, o cara pediu um uísque duplo à aeromoça e puxou conversa. Explicou que estava saindo do Rio por causa de uma mulher. E que mulher, seu moço! Dessas que nem presidente de associação de família bota defeito. Ela soube que ele estava andando com a Julinha.

— Manja a Julinha? — ele me perguntou.

Não. Eu não manjava, e era um trouxa por causa deste detalhe. A Julinha era uma das melhores coisas que podem acontecer a qualquer sujeito apreciador do gênero.

E assim foi o cara, até Vitória. Na hora em que o avião ia descer, ele estava explicando que ali, na capital capixaba, tinha tido grandes momentos. Mas grandes momentos mesmo. Se meteu com uma pequena ótima, sem saber que ela tinha duas irmãs melhores ainda. E ele foi pulando de uma para outra.

— Apanhei as três, tá bem? — batia na minha perna e dizia, balançando a cabeça, com um sorriso vitorioso (talvez em homenagem à já citada capital capixaba). E repetia para mim: — Apanhei as três!

Depois da escala em Vitória, tentei sentar longe do folgazão, mas me dei mal. Ele me viu sozinho na poltrona, isto é, com a poltrona do lado dando sopa, e não conversou. Pediu mais um uísque duplo à aeromoça e retomou o assunto mulher. Descreveu como é que foi com a mulher do quinto andar lá do prédio onde ele mora. No começo não queria. Sabe como é — a gente não deve se meter com essas desajustadas que moram perto, porque fica fácil de controlar. E parecia que ele estava adivinhando. Todo dia de manhã era uma bronca, porque todo dia de manhã — é lógico — saía uma mulher do seu apartamento, e a dona do quinto andar ficava na paquera.

— Mandei andar, viu?

— Qual?

— A do quinto.

— Ah, sim...

Entre Vitória e Salvador o sujeito já tinha apanhado mais mulher do que o falecido Juan Tenório. Mas nem por isso deixou de contar mais umas duas ou três aventuras amorosas, enquanto aqui o filho de Dona Dulce aproveitou a boca para comer uns dois ou três acarajés. Era eu com acarajé e ele com mulher. Desisti até de me livrar do distinto. No Recife cada um de nós iria para o seu lado e eu não veria mais o garanhão.

Retornamos ao avião. Ele, firme, do meu lado. Pediu outro uísque duplo à aeromoça — a qual, inclusive, elogiou, afirmando que tinha umas ancas notáveis.

— Hem, hem? Notáveis! — e me catucava com o cotovelo.

Foi quando sobrevoávamos Penedo que ele confessou que já tinha casado três vezes. Felizmente não tivera filhos, mas mulher não faltou. Depois do terceiro casamento, com várias senhoras de diversos tamanhos e feitios intercalados entre cada casamento, resolveu que não era trouxa.

— Comigo não, velhinho. Chega de casar! — nova catucada: — Comigo agora é só no passatempo. Por falar nisso, você tem algum compromisso no Recife?

Fingi que tinha. Uma senhora que não poderia ser suspeitada, caso contrário poderia sair até tiro. Ele compreendeu. Embora tremendo boquirroto, concordou que, às vezes, é preciso manter o sigilo. Mas era uma pena eu não estar disponível no Recife. Ele conhecia umas garotas bem interessantes. Era bem possível que, já no aeroporto de Guararapes, algumas estivessem à sua espera.

— Você dá uma espiada — aconselhou-me. Se alguma delas me conviesse e — naturalmente — se a tal senhora inconfessável falhasse, eu poderia ficar com duas ou três de suas amiguinhas, para umas farras em Boa Viagem:

— A gente vai para a praia. De noite... aqueles mosquitinhos mordendo a gente.

Disse isso com tal entusiasmo na voz que, por um instante, eu cheguei a pensar que ele gostasse mais do mosquitinho do que de mulher. Mas foi só por um instante. Enquanto o avião manobrava e descia no Recife, o cara ainda falou numa prima lá dele, pela qual tivera uma bruta paixão.

Aí o avião parou, todo mundo desamarrou o cinto e — coisa estranha — o meu companheiro de viagem voltou a ficar esverdeado.

Saímos, apanhamos as malas e, quando eu ia pegar um táxi, lá estava o cara sozinho, também atrás de condução. Ele me viu, sorriu e explicou:

— Olha, meu velho, aquilo tudo era bafo. Eu não apanho ninguém. Eu tenho é pavor de avião e só falando de mulher é que eu perco o medo.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora
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