quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Gilmar, o goleiro número um


"Gilmar dos Santos Neves é o maior goleiro do mundo". A afirmação soaria como mais uma patriotada não tivesse sido feita pelo soviético Lev Iashin, tido como o maior guarda-metas de todos os tempos. Gilmar, de fato, encabeça qualquer lista dos melhores jogadores que o futebol brasileiro já teve. Nosso goleiro "Número Um" soube como nenhum outro trabalhar as cinco qualidades que ele próprio considera fundamentais para o bom guarda-metas: calma, coragem, boa estatura, reflexos rápidos e segurança. Gilmar impressionava também por sua capacidade de manter-se igualmente tranquilo tanto numa defesa milagrosa quanto num frango pavoroso. Seu rol de títulos é dos mais extensos, porque foi campeão de quase tudo que participou.

Gilmar dos Santos Neves, mais conhecido como Gilmar, nasceu em Santos, SP, em 22 de agosto de 1930. Gilmar veio do Jabaquara (pequeno clube da cidade onde nasceu) para o Corinthians, seu primeiro grande clube, por um acaso. Na verdade, os dirigentes do clube paulista queriam outro jogador do clube santista, o meio-campista Ciciá, que o Jabaquara só aceitou vender se o clube levasse Gilmar de contra-peso.

O seu início no Corinthians, foi um tanto complicado, pois foi considerado o principal culpado pela derrota por 7 a 3 (25 de novembro de 1951) contra a Portuguesa de Desportos pelo Campeonato Paulista.

Depois de quatro meses voltaria a defender a meta alvinegra, para se consagrar campeão paulista. Durante seus dez anos de Corinthians, conquistou os títulos do Torneio Rio-São Paulo de 1953 e 1954, os Campeonatos Paulistas de 1951, 1952 e 1954, este último no qual festejava-se o IV centenário da cidade de São Paulo e foi condecorado com o título de "supremo guardião do campeão do quarto centenário".

Em 1961, após dez anos, ele se despediu do Corinthians, em meio a brigas com o presidente Wadih Helou, que o acusava de corpo mole durante os primeiros anos de fila do clube paulistano. Seguiu sua trajetória no Santos, de Pelé, onde teve o melhor momento de sua carreira, se tornando um dos maiores goleiros de todos os tempos.

Gilmar foi bicampeão mundial de Interclubes vestindo a camisa do alvinegro praiano. Na foto, de pé estão: Lima, Zito, Dalmo, Calvet, Gilmar e Mauro; Agachados Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe

Gilmar dizia ser o melhor momento de sua carreira, não só pelo fato de estar em um grande e vitorioso time, mas também por estar no seu time de coração (Gilmar era torcedor do Santos desde os tempos de Jabaquara).

Suécia: campeão mundial com Pelé
Permanecendo no clube até 1969, construiu uma carreira vitoriosa, conquistando os Campeonatos Paulistas de 1962, 1964, 1965, 1967 e 1968, as Taças Brasil de 1962, 1963, 1964 e 1965, as Taças Libertadores da América de 1962 e 1963, os Mundiais Interclubes de 1962 e 1963, os Torneios Rio-São Paulo de 1963, 1964 (dividido com o Botafogo), e 1966 (dividido com o Botafogo, o Corinthians e o Vasco da Gama), o Torneio Roberto Gomes Pedrosa de 1968 e, a Recopa dos Campeões Mundiais de 1968.

Gilmar fez sua estreia na Seleção Brasileira em primeiro de março de 1953, na vitória de 8 a 1 sobre a Bolívia, válida pelo Campeonato Sul-Americano (atual Copa América), disputado no Peru. Assim como nos clubes em que passou, Gilmar também fez história na Seleção do Brasil.

Suécia: Gilmar e Agne Simonsson
Em 1958, na Suécia, ajudou a Seleção Brasileira a conquistar a sua primeira Copa do Mundo. Em 1962, no Chile, repetiu o feito conquistando sua segunda Copa do Mundo com a Seleção Brasileira. Em 1966, Gilmar também estava lá. Porém, ele não teve a mesma glória das copas anteriores, embora tivesse jogado duas partidas, e mais tarde seria substituído por Haílton Corrêa de Arruda, o Manga.

Gilmar jogou pela Seleção Brasileira até 1969, sendo a vitória de 2 a 1 contra a Inglaterra, em 12 de junho, num amistoso disputado no Maracanã, sua última partida pela seleção.

Fontes: Revista Placar; Wikipedia.
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O estranho caso do isqueiro de ouro

De princípio me declarou que na hora em que tudo aconteceu não estava bêbedo. E insistiu: "Eu estava absolutamente lúcido, embora tivesse bebido o bastante para ficar de quatro na grama".

Evidentemente, se não tivesse bebido nada, não teria nem descido do carro, quanto mais ficado de quatro na grama! Mas o fato é que ficou, e agora — diante do acontecido — está a se perguntar se estava realmente lúcido, o que de resto não importa, uma vez que a conseqüência intriga-o mais do que a ocorrência.

Estava muito alegre e ria muito, e isto não era nem sequer por conta da bebida. Era um pouco por causa do uísque que tomara e mais o momento, a mulher, enfim um estado de espírito que tomou conta dele e que já fazia por merecer.

Depois de muitos dias seguidos de pequenos aborrecimentos, muito trabalho, um resfriado. "Estas coisas — dizia-me — vão deixando a gente sem reservas de humor. Mas, quando terminou a festa e ela pediu-me que a levasse em casa, veio-me de súbito aquele estado de espírito. A prova de que eu estava raciocinando perfeitamente é me lembrar deste detalhe: tenho certeza de que já vinha alegre lá de dentro e, quando fui tomar o carro, senti o perfume de jasmim dos jardins do vizinho. Eu nasci e morei durante anos numa casa cheia de jasmineiros, você entende?"

Eu entendia. Já vinha alegre da festa, na hora de entrar no carro, com uma bela mulher que o tinha escolhido para levá-la em casa, tudo isso e mais um cheiro da infância deram-lhe aquela alegria interior que conservou até o momento em que viu, sobre a grama, as pernas do guarda, firmes, como que plantadas no gramado — aquelas duas colunas negras, porque era um guarda de perneiras, desses que passam solenes, de motocicleta, altivos e barulhentos.

"Mas eu não ouvi barulho nenhum —explicava ele —, eu estava de quatro, rindo, na grama, quando vi as pernas e, em seguida, o guarda. Aquele bruto guarda, de mãos na cintura, me olhando."

É estranho que uma pessoa, justamente na hora em que se sente eufórica, vivendo um momento raro, meio sonho meio realidade, possa explicar cada minuto desse momento que já está passado e, no entanto, no presente, absolutamente sóbrio e sério, não consiga encontrar uma explicação que satisfaça a si mesmo, que possa acalmar uma dúvida sem apelar para o sobrenatural.

Recorda-se que entrou no carro e perguntou à mulher onde morava e ela deu-lhe o endereço. A noite era fresca e o ar livre, o carro deslizava pelas ruas tranqüilas e desertas. Então pôs-se a cantar a canção que ela também cantarolou junto com ele, e iam tão felizes que começou a guinar o carro de um lado para outro, ao ritmo da música.

A mulher morava num recanto do maior bucolismo, em frente a uma praça toda gramada. Ele parou o carro e propôs à mulher que fumassem mais um cigarro, e ficaram ali fumando, num silêncio convidativo; tão convidativo que ele começou a fazer-lhe cócegas na nuca, os dois rindo, ele se chegando e — de repente — deu-lhe uma mordidinha no lóbulo da orelha. A mulher sentiu um arrepio, riu mais: "Ai, Carlos, você é um cachorrinho e está me mordendo" — ela disse.

Isto foi o que bastou para que descesse do carro e fosse lá para o meio do gramado, onde ficou de quatro, a latir para ela.

A mulher ria e, como estivesse escuro, começou a gritar: "Onde você está, Carlos?" — e como ele calasse os latidos para fazer-lhe uma surpresa, ela manobrou o carro e acendeu os faróis na direção do gramado, mas numa direção em que as luzes não o atingiam. Pôs-se a caminhar de quatro para se esconder atrás de um arbusto, quando viu que ela saíra do carro e já caminhava também sobre a grama — embora sem latir e sem usar os braços à guisa de patas dianteiras.

Foi aí que viu o guarda. Ou antes: as pernas do guarda. Levantou a cabeça e notou o quanto ele estava sério, e assim ficaram um tempo indefinido, que deve ter durado alguns segundos, mas que lhe pareceu uma eternidade. Notou também que a mulher voltara para o carro e ria muito da situação.

Por certo o guarda tinha todo o direito de pensar outra coisa, e quando lhe perguntou "o que é que o senhor está fazendo aí?" — já tinha opinião formada. Contar a verdade lhe pareceu pior, o que prova a sua lucidez na ocasião. E então, porque precisava dar uma resposta qualquer ao guarda, disse que estava procurando o isqueiro. Daí passou a mentir, uma mentira em cima da outra, sobre o isqueiro, que era de ouro e tinha seu nome gravado de um lado.

"Como é seu nome?" — quis saber o guarda.

E foi a única verdade que disse: "Carlos Silva. E está escrito do lado do isqueiro. É um isqueiro francês Dupont".

Falava e olhava para os lados, fingindo que procurava. O guarda continuava a não aceitar nada do que dizia, mas mantinha-se sério, perturbando-o ainda mais.

Quando perguntou como conseguira perder o isqueiro ali na grama se estava com a mulher no carro, fingiu que não ouviu e acrescentou: "É um isqueiro de estimação. Foi minha mãe que me deu. Ela já morreu".

Falava e caminhava devagar, tentando se aproximar do carro. O guarda caminhava também, mantendo a distância entre os dois, até o instante em que se abaixou para apanhar algo que brilhou em sua mão, apesar da escuridão.

"Aqui está o seu isqueiro, cavalheiro" — disse o guarda, enquanto ele engolia o próprio espanto, diante do espanto do guarda, que conservava o isqueiro de ouro na palma da mão aberta.

Agora repetia — de certa maneira — a atitude do guarda da véspera. Estava com o isqueiro na palma da mão aberta e me dizia: "E te juro! Eu nunca tive nenhum isqueiro!"
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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O negro azul

Ontem, em pleno expediente, comecei a sentir uma misteriosa angústia.

Quero que me entendam. Disse "angústia", mas explico: — era um sofrimento menor e indefinível. Paro de bater à máquina e puxo um cigarro.

Sofria sem nenhum motivo preciso, concreto. Fui ao boteco da esquina tomar um cafezinho. A angústia continuava lá.

Mexendo o cafezinho, descobri subitamente tudo. Eu me afligia porque estava sentindo falta de alguma coisa e não sabia o quê.

Voltei para a redação e aquilo não me saía da cabeça. "Falta alguma coisa", repetia para mim mesmo. Mas não sabia o que era. Paciência. Quero trabalhar e não posso.

De repente, há um clarão interior: — as polainas! Eu sentia, exatamente, a falta das polainas. Não em mim, que nunca as usei, mas nos outros. Olhem em torno, baixem a vista. As polainas desapareceram da cidade, do país. São antigas, espectrais, como o guarda-chuva de Paulo de Frontin. Será que alguém as usa?

Esqueço o trabalho e me concentro. Eis a pergunta que me faço: — "Qual foi o último sujeito que eu vi de polainas?".

Um deles foi o dr. Jacarandá. Outro: o cidadão Pingô. Mas o último, exatamente o último que vi de polainas foi um preto, oficial de Justiça. Sempre digo que nunca se viu, neste país, um negro de casaca. É verdade. Os nossos patrícios de cor já usaram tudo e, se quiserem, até folha de parreira, menos casaca.

Estou para fazer uma tragédia racial, cujo título é o seguinte: — O negro azul. Morava o "negro azul" num pardieiro, em Del Castilho. De manhã, entrava ele na fila do banheiro coletivo. Até que, um dia, às dez horas da manhã, todos o viram sair de casaca. Casaca e cartola. Não tomou um táxi, um ônibus, um bonde ou taioba. Levou a casaca a passear pelas ruas e a pé. O desfile começou às dez da manhã e só parou à meia-noite. Exatamente à meia-noite, atirou-se debaixo de um ônibus. Ninguém soube jamais que a casaca era o seu protesto contra o Brasil.

Volto ao oficial de Justiça. Fisicamente enorme, era um negro plástico, lustroso, ornamental. E tinha uma voz de Paul Robeson, as ventas de Paul Robeson, os beiços de Paul Robeson. Vou eu passando pela rua Senador Furtado (ou seria Senador Pompeu).

E, súbito, vejo adiante um ajuntamento. O brasileiro se incorpora a qualquer grupo de mais de cinco pessoas. De mais a mais, temos a fascinação do escândalo. E eu, da esquina, já ouvia o berreiro tremendo, gritos de mulher etc. etc.

Tantos anos depois, ainda vejo o Paul Robeson em todo o esplendor de sua figura e de suas polainas. Vocalmente, tinha a potência de um barítono, ou baixo cantante, desses que exigem a acústica de uma catedral, a cúpula de uma catedral. Enchia a rua, o bairro, com o seu clamor: — "Eu tenho razão! Eu tenho razão!". Lá estavam elas, as polainas.

O homem andava de um lado para outro. Bem vi que as polainas o desagravavam da frustração da casaca.

Soltava a voz: — "Eu tenho razão! Eu tenho razão!".

Em três ou quatro minutos, vim a conhecer a história toda. Aquilo era um despejo. O crioulão de polainas estava ali como oficial de Justiça. Outros crioulões, e um branco sarará, iam e vinham, trazendo os móveis e empilhando tudo na calçada.

Quanto à mulher dos gritos (e continuava gritando), era viúva e mãe de cinco ou seis filhos. Há uns três meses o marido morrera tuberculoso e deixara, para a mulher, além das dívidas, a própria doença.

Cabe então a pergunta: — e de onde vinha a magnífica, a estupenda, a ululante razão do oficial? Ei-la: — a viúva não pagava o aluguel há um ano. E, portanto, ele podia abrir sua razão de par em par, como uma manchete. Outrora, o brasileiro reagia muito contra a violência, mesmo justa, mesmo legal. Sempre um ou outro gritava: — "Não pode, não pode!". Mas ninguém insinuou um vago pio em favor da viúva e dos filhos. De vez em quando vinha a tosse afogar a sua fúria. Ela se torcia e destorcia em náuseas medonhas. Houve um momento em que, depois do acesso, cuspiu na palma da própria mão e espiou o sangue. A vista do vermelho distraiu-a do despejo.

Arquejou, sem desespero, apenas informativa: — "O falecido me chama". Não chorou mais, ou por outra: — continuou chorando, mas sem gritar. E as polainas eram mais insolentes do que esporas.

Eis o que eu queria dizer: — vem daí, desse pequeno e ilustrativo episódio, o meu horror às pessoas que têm razão e a proclamam com o impudor da manchete. Dirá o leitor que qualquer um pode ter razão. Nem todos, nem todos. Eu diria mesmo que só algumas almas seletíssimas, alguns espíritos de rara delicadeza podem tê-la. Lembro-me de outro episódio também perfeitamente cabível. Foi uma briga de mulheres.

Uma senhora insultou outra. Por que, não me lembro. E o marido da ofendida foi tomar satisfações. A culpada estava esperando criança. Mas o Fulano tinha razão; e porque a tinha derrubou-a a bofetões e mais: — pisou-lhe a barriga, chutou-lhe a gravidez. Correto. Tinha razão.

Nas almas menos nobres, a razão pode subir à cabeça em forma de vil embriaguês. E os piores sentimentos, e as crueldades mais secretas e inconfessas, e todos os demônios do orgulho são liberados. Tudo que sei da vida ensina que a razão pode perder a nossa alma e repito: — pode destruí-la.

Fiz a volta imensa para chegar à juventude. Vocês me entendem. Falo dessa figura impessoal, sem cara, sem nome, que é "o jovem". Eis o seu drama: — mesmo sem razão, ele a tem. É uma razão que não lhe custa um esforço, um mérito, um sacrifício, uma conquista. Tem razão porque é jovem. Não sei se vocês leram um recente artigo do dr. Alceu. Vale a pena. (Claro que não estou falando de razão em cada caso concreto e específico. Refiro o problema vital que se está criando com uma desfaçatez inédita). Todo o artigo do dr. Alceu é muito curioso. Mas em dado momento descobre o notável pensador a "razão da idade". É fantástico.

A razão da idade muda todas as relações e todos os valores. Nem importa o que faça "o jovem". Incendeia a França. Tem dezessete, dezoito, 22 anos. E basta. Arranca os paralelepípedos e vira os carros. Pode fazê-lo porque tem no bolso a triunfal certidão de idade. Se nasceu no ano X, tudo lhe é permitido. Estão aí o jornal, o rádio, a TV para justificá-lo, para absolvê-lo. Há uma "Moral da Idade", assim como há uma "Igreja da Idade".

Conheço sacerdotes que só confessam "o jovem". Todos põem na mão do jovem, como uma bomba, a razão absoluta. O mundo deixou de ser dos "mais velhos".

Mas pergunto: — que fará "o jovem" com sua onipotência? A razão da idade pode destruir o mundo.

[1/7/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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