domingo, 23 de outubro de 2011

Paschoal Carlos Magno

Paschoal Carlos Magno (Rio de Janeiro RJ 13/01/1906 - idem 24/05/1980), teatrólogo, revistógrafo, crítico e compositor, foi uma personalidade fundamental na dinamização e renovação da cena brasileira. Fundou o Teatro do Estudante do Brasil e o Teatro Duse.

Em 1926, faz uma experiência como galã em Abat-Jour, de Renato Viana. Em 1928, tem uma fugaz participação, como ator, no Teatro de Brinquedo, de Álvaro Moreyra; e escreve críticas para O Jornal. Em 1929, lidera ampla campanha de coleta de recursos para fundar a Casa do Estudante do Brasil. 

Em 1930 sua canção Pierrot recebe a melodia do compositor Joubert de Carvalho, para a abertura de sua peça Pierrot, prestes a estrear no Rio de Janeiro pela companhia de Jaime Costa, da qual Paschoal assume a direção artística. Além de romântica, a canção deveria explorar o timbre agudo de Jorge Fernandes, o cantor escolhido para interpretá-la. No mesmo ano, recebe da Academia Brasileira de Letras, ABL, um prêmio por esta peça.

Em 1937, funda o Teatro do Estudante do Brasil, TEB, inspirado nos teatros universitários europeus, com uma função pedagógica, de formação teatral, e outra artística, de introduzir no nosso teatro a função do diretor teatral, cargo para o qual convoca a atriz Itália Fausta, que assina o primeiro espetáculo do grupo, Romeu e Julieta, de William Shakespeare, em 1938.

Em 1946, Paschoal tem representada em Londres, com boas críticas, a sua peça Tomorow Will Be Different, montada em vários outros países europeus, e também no Brasil. No mesmo ano, assume a coluna de crítica do jornal Democracia e, no ano seguinte, a do Correio da Manhã, que assina até 1961, através da qual exerce forte influência sobre o panorama teatral. 

Em 1948, sob sua orientação geral, e com direção do alemão Hoffmann Harnisch, o TEB monta Hamlet, de William Shakespeare, que alcança enorme sucesso e prestígio, sobretudo por revelar, no papel-título, o singular talento do jovem Sérgio Cardoso, então com 22 anos, a quem Paschoal define, na sua coluna, como sendo desde já o maior ator do Brasil. Sob a repercussão desse êxito, e das viagens de Paschoal pelo Brasil afora, teatros de estudantes começam a ser criados em várias cidades. 

Em 1949, Paschoal preside o lançamento pelo TEB, de um Festival Shakespeare, no Rio de Janeiro, com Romeu e Julieta, Macbeth e Sonho de Uma Noite de Verão; e cria, junto com a cantora Alda Pereira Pinto, o Teatro Experimental de Ópera.

Em 1952, Paschoal leva o TEB para extensa turnê pelo norte, com peças de Sófocles, Eurípides, William Shakespeare, Gil Vicente, Henrik Ibsen, Martins Pena. No mesmo ano, dá início a uma outra iniciativa importante: o Teatro Duse, uma sala de aproximadamente 100 lugares e um palco mínimo, instalada no casarão de Paschoal, em Santa Tereza. Inaugurado em 1952, com João Sem Terra, de Hermilo Borba Filho, o Duse funciona, com ingresso gratuito, até 1956, revelando, entre outros, Aristóteles Soares, Francisco Pereira da Silva, Leo Vitor, Antônio Callado, Rachel de Queiroz, Paulo Moreira da Fonseca, Maria Inês Barros de Almeida, e conquistando um lugar de prestígio no panorama cultural do Rio de Janeiro. 

Nomeado responsável pelo setor cultural e universitário da Presidência da República por Juscelino Kubitschek, desloca-se permanentemente pelo país afora, garimpando jovens talentos e lutando pela criação ou dinamização de espaços onde eles possam dar vazão à sua ânsia de aprender e criar. Em 1958, organiza em Recife o primeiro Festival Nacional de Teatros de Estudantes, reunindo mais de 800 jovens e dando início a uma tradição que prosseguirá até o sexto festival.

Nomeado, em 1962, secretário geral do Conselho Nacional de Cultura, realiza a Caravana da Cultura, reunindo 256 jovens artistas que percorrem os Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas, apresentando espetáculos de teatro, dança e música e realizando exposições de artes plásticas e distribuição de livros e discos. Uma iniciativa semelhante, a Barca de Cultura, que desce pelo Rio São Francisco de Pirapora a Juazeiro, é promovida por Paschoal já na década de 70. 

O golpe de 1964 o afasta dos centros do poder e prejudica a sua carreira diplomática. Sua última grande realização inicia-se em 1965, quando ele inaugura, no interior do Estado do Rio de Janeiro, a Aldeia de Arcozelo, da qual pretende fazer um local de repouso para artistas e intelectuais e um centro de treinamento para as diferentes áreas das artes. 

Mas a volumosa obra consome o resto da sua fortuna e o obriga a vender o seu casarão de Santa Tereza para pagar as dívidas. Ainda assim, o dinheiro revela-se insuficiente, e Paschoal ameaça publicamente tocar fogo na fazenda. Alguns auxílios, oficiais ou privados, chegam a ser liberados; mas até hoje a Aldeia de Arcozelo encontra-se fechada sob o domínio da Fundação Nacional de Artes Cênicas.

Fontes: Enciclopédia Itaú Cultural; A Canção no Tempo – Vol. 1 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34.

Em 1937, funda o Teatro do Estudante do Brasil, TEB, inspirado nos teatros universitários europeus, com uma função pedagógica, de formação teatral, e outra artística, de introduzir no nosso teatro a função do diretor teatral, cargo para o qual convoca a atriz Itália Fausta, que assina o primeiro espetáculo do grupo, Romeu e Julieta, de William Shakespeare, em 1938.

Em 1946, Paschoal tem representada em Londres, com boas críticas, a sua peça Tomorow Will Be Different, montada em vários outros países europeus, e também no Brasil. No mesmo ano, assume a coluna de crítica do jornal Democracia e, no ano seguinte, a do Correio da Manhã, que assina até 1961, através da qual exerce forte influência sobre o panorama teatral. 

Em 1948, sob sua orientação geral, e com direção do alemão Hoffmann Harnisch, o TEB monta Hamlet, de William Shakespeare, que alcança enorme sucesso e prestígio, sobretudo por revelar, no papel-título, o singular talento do jovem Sérgio Cardoso, então com 22 anos, a quem Paschoal define, na sua coluna, como sendo desde já o maior ator do Brasil. Sob a repercussão desse êxito, e das viagens de Paschoal pelo Brasil afora, teatros de estudantes começam a ser criados em várias cidades. 

Em 1949, Paschoal preside o lançamento pelo TEB, de um Festival Shakespeare, no Rio de Janeiro, com Romeu e Julieta, Macbeth e Sonho de Uma Noite de Verão; e cria, junto com a cantora Alda Pereira Pinto, o Teatro Experimental de Ópera.

Em 1952, Paschoal leva o TEB para extensa turnê pelo norte, com peças de Sófocles, Eurípides, William Shakespeare, Gil Vicente, Henrik Ibsen, Martins Pena. No mesmo ano, dá início a uma outra iniciativa importante: o Teatro Duse, uma sala de aproximadamente 100 lugares e um palco mínimo, instalada no casarão de Paschoal, em Santa Tereza. Inaugurado em 1952, com João Sem Terra, de Hermilo Borba Filho, o Duse funciona, com ingresso gratuito, até 1956, revelando, entre outros, Aristóteles Soares, Francisco Pereira da Silva, Leo Vitor, Antônio Callado, Rachel de Queiroz, Paulo Moreira da Fonseca, Maria Inês Barros de Almeida, e conquistando um lugar de prestígio no panorama cultural do Rio de Janeiro. 

Nomeado responsável pelo setor cultural e universitário da Presidência da República por Juscelino Kubitschek, desloca-se permanentemente pelo país afora, garimpando jovens talentos e lutando pela criação ou dinamização de espaços onde eles possam dar vazão à sua ânsia de aprender e criar. Em 1958, organiza em Recife o primeiro Festival Nacional de Teatros de Estudantes, reunindo mais de 800 jovens e dando início a uma tradição que prosseguirá até o sexto festival.

Nomeado, em 1962, secretário geral do Conselho Nacional de Cultura, realiza a Caravana da Cultura, reunindo 256 jovens artistas que percorrem os Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Sergipe e Alagoas, apresentando espetáculos de teatro, dança e música e realizando exposições de artes plásticas e distribuição de livros e discos. Uma iniciativa semelhante, a Barca de Cultura, que desce pelo Rio São Francisco de Pirapora a Juazeiro, é promovida por Paschoal já na década de 70. 

O golpe de 1964 o afasta dos centros do poder e prejudica a sua carreira diplomática. Sua última grande realização inicia-se em 1965, quando ele inaugura, no interior do Estado do Rio de Janeiro, a Aldeia de Arcozelo, da qual pretende fazer um local de repouso para artistas e intelectuais e um centro de treinamento para as diferentes áreas das artes. 

Mas a volumosa obra consome o resto da sua fortuna e o obriga a vender o seu casarão de Santa Tereza para pagar as dívidas. Ainda assim, o dinheiro revela-se insuficiente, e Paschoal ameaça publicamente tocar fogo na fazenda. Alguns auxílios, oficiais ou privados, chegam a ser liberados; mas até hoje a Aldeia de Arcozelo encontra-se fechada sob o domínio da Fundação Nacional de Artes Cênicas.

Fontes: Enciclopédia Itaú Cultural; A Canção no Tempo – Vol. 1 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34.
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O irmão adquirido

Tempos atrás, o Walter Clark telefonou-me. Foi sumário: — "Preciso de ti". Ainda perguntei: — "Qual é o drama?". Fez suspense, fez mistério: — "Só pessoalmente". E já se despedia: — "Te espero. Vem já".

Meia hora depois, entro no seu gabinete, ali, na TV Globo. Tenho que esperar, porque ele despachava alguém. E, então, para fazer hora, vou espiar os quadros do meu amigo.

Walter Clark gosta de pintura e, pior, entende de pintura. Ao passo que eu, como o Otto Lara Resende, sou um idiota plástico. Certa vez, aconteceu uma, que considero antológica. Estávamos, eu e o Otto, na casa do Hélio Pellegrino. E paramos, um momento, diante de um Volpi. Veio o Hélio e jurou que o Volpi era "melhor que Portinari". Uma abjeta pusilanimidade crítica tapou-nos a boca. Mas, assim que o anfitrião virou as costas; ciciei para o Otto e o Otto ciciou para mim: — "Abominável Volpi! Horrendo Volpi!". Essa sinceridade cochichada lavou-nos a alma.

E, justamente, o escritório do Walter Clark está cheio de belas cópias de Cézanne, Gauguin, Degas, Monet etc. etc.

Aqui há um jóquei, ali uma bailarina, acolá uma mulata e, mais adiante, um clown. Falta-me entusiasmo visual. Para mim e o Otto, a boa pintura é como um texto chinês de cabeça para baixo. Súbito, ouço o Walter balbuciar, de puro assombro: — "Você veio da Hungria só para me tomar dinheiro?". Era verdade. O sujeito que lá estava viera, sim, de Budapeste, pedir-lhe setenta contos emprestados.

Walter quis um abatimento para cinqüenta. O patriota húngaro não transigiu: — "Setenta". E daí não saía. Walter subiu para sessenta. E ninguém percebeu que os papéis já se invertiam. O pedinte agora era o meu amigo. Sim, era ele que crispava as mãos numa súplica abjeta. O outro estava quase ofendido e quase enojado.

Houve um momento em que, nauseado, ergueu-se: — "Ou setenta ou nada". Então, batido, o Walter encheu o cheque dos setenta. O sujeito olha o papel, verifica a quantia, a data e a assinatura. E vai-se embora sem agradecer e sem se despedir.

Só então o Walter me chama. E confesso: — pasmei para o esplendor dos seus suspensórios. Não sei se me entendem. O meu amigo usa, hoje, os suspensórios dos gângsteres de Chicago, na Grande Depressão. São, por assim dizer, suspensórios paisagísticos, com figurinhas de flores, bezerros, vaquinhas, bodes, arvoredos, corações flechados.

Essas tatuagens encantadas fascinam, não só os visitantes da TV Globo, como os funcionários da casa. Eu diria que a única vaidade física do Walter Clark está nos suspensórios.

Começamos a conversar e ele foi direto ao assunto: — "Bola um programa de televisão. Coisa interessante. Pra você fazer com o Otto e o Hélio".

Seria um programa sem limite de tempo. E, todas as noites, ou mais precisamente, no fim da noite, eu, o Otto Lara Resende e o Hélio Pellegrino passaríamos em revista, e com a maior imodéstia, os grandes problemas do Brasil e do mundo.

Prometi ao Walter: — "Vou pensar".

Fui para casa e não me saíam da cabeça as vaquinhas desenhadas nos suspensórios. Quebrava a cabeça e não me ocorria uma idéia, um título, nada. Até que, de repente, fez-se luz. Imaginei um programa que se chamasse assim: — Os falsos canalhas. Repeti para mim mesmo: — Os falsos canalhas. Uma das vantagens do título era fazer mistério, fazer suspense. De resto, "canalha" era uma das palavras mais fortes, mais densas, mais patéticas da língua.

Quando liguei para o Walter, propondo o título, ele fez espanto: "Por que falsos canalhas?". Tratei de explicar. Todos os países e todos os idiomas têm uma seletíssima elite de "canalhas aparentes". Darei um exemplo. Imaginem um político, ou um poeta, ou um artista, ou um ministro, ou um funcionário. Parecem esculpidos em ignomínia.

Lembro-me de um rapaz que conheci, uma flor de rapaz. E todos o apontavam e cochichavam: — "Pulha da pior espécie!". Mas ninguém sabia de um gesto seu menos correto, de uma ação menos digna, de um sentimento menos nobre. Até que, uma tarde, eu próprio o vi passar, de braço, com a esposa linda.

Estava aí o mistério de sua reputação: — a mulher bonita.

E, de fato, não custa chamar de "escroque", de "gatuno", de "crápula", aquele que tem, em casa, uma Ava Gardner. O fato é que os "falsos canalhas" existem, por toda a parte. E o triste é quando o sujeito morre sem reabilitação.

Todos pensam, inclusive a própria família, que o morto foi realmente um pulha. Há sempre alguém, no dia de Finados, com vontade de lhe cuspir na cova.

Mas o que eu queria, na presente confissão, é contar uma experiência muito pessoal. Imaginem que, certa noite, meu irmão Mário Filho apresentou-me a Carlos Heitor Cony. É exatamente a pessoa: — Carlos Heitor Cony. Jornalista, polemista, romancista etc. etc.

Eu já o conhecia de nome e de vista. Vira-o, uma madrugada, nos Três Patetas, tomando café. Não sei se café ou sei lá. Não, não: Estava em pé, nos Três Patetas, junto ao balcão, e de cachimbo. Até o momento em que fomos apresentados, Cony era um cachimbo. Não uma pessoa, e não um artista. Um cachimbo.

Bem me lembro da nossa primeira conversa. Eis o que eu pensava: — que sujeito indesejável, irrespirável e cínico.

Eis a palavra: — cínico. Achei Carlos Heitor Cony de um cinismo abjeto e total. E não entendia por que Mário se afeiçoara a ele e tão profundamente. Dizia-me: — "O Cony! O Cony!". Em suma: — com meia hora de conversa, já não tive a menor dúvida: — era um canalha. Seu riso me ofendia e me humilhava. Na primeira pausa, aproveitei para me despedir.

Saí, desesperado e nem sei por que desesperado. Afinal, não tínhamos nenhuma relação especial, nenhuma intimidade.

Mas sentia uma angústia intolerável, como se a simples presença de Carlos Heitor Cony exalasse o tifo, a malária, a febre amarela.

E quantas vezes, depois disso, Mário me falou de Cony. Sim, o meu irmão continuava achando o amigo um maravilhoso ser. Eu não entendia nada. Mas senti, sempre, sempre, que Mário ia ser, e para sempre, amigo do canalha.

Até que, uma madrugada, às quatro e pouco, bate o telefone. Lúcia atende: — Mário acabara de morrer. Corri para vê-lo.

Na véspera, tomamos café juntos, no bar da esquina. E ele combinara, para o dia seguinte, uma chopada com o Hélio  Pellegrino. Debrucei-me sobre o irmão. As mãos entrelaçadas e com que estremecido amor. Tive pudor de beijá-lo.

Bem. Quero falar, não de mim, mas de Carlos Heitor Cony. Chegou, na casa de Mário, às seis da manhã. Pára diante de mim, abre os braços, grita: — "Como foi isso? Como foi isso?". O espanto veio antes da dor. Eu via, ali, um outro Cony, absurdo, irreal, jamais concebido. E, depois, ficou ainda, algum tempo, vagando por entre mesas e cadeiras — tão órfão de Mário.

Foi aí e só então que entendi a amizade que os unia.

O irreal, o absurdo, era o Cony cínico, o Cony pulha, o Cony obsceno; o verdadeiro Cony é o da orfandade brutal. Vi-o desabar. Afundou o rosto nas duas mãos, chorou alto, chorou forte.

E, naquele momento, eu me tornei seu irmão, para sempre.

Era, sim, o falso canalha.

[25/6/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Contra a violência

Apanho o jornal e vejo o telegrama: — Hollywood declara guerra à violência. São atores, atrizes, diretores, roteiristas.

É uma unanimidade, mais uma unanimidade. Assim somos nós, todos nós.

O nosso gesto, o nosso ódio e o nosso grito — já não precisam nascer na solidão. O homem quer ser irresponsável.

Na hora do protesto, da ira, todos providenciam uma urgente unanimidade. Ninguém está só. Matamos e morremos em grupos, em hordas, em maiorias, em assembléias, em comícios.

No manifesto de Hollywood, o que existe, precisamente, é o pânico da responsabilidade nítida, indivisível, total. Não há um nome, uma cara. Cada qual se esconde debaixo da unanimidade como de uma cama. Todos são contra a violência, a crueldade, o sadismo, o terror. Vejam e pasmem: — daqui, para o futuro, Hollywood só fará filmes com bons sentimentos.

Não tenho nada a objetar. É uma reação linda, embora tardia. Mata-se demais no cinema, morre-se demais, trai-se demais, odeia-se demais. E há, na tela, um erotismo difuso, volatilizado, atmosférico. A platéia respira voluptuosidade. E tudo nos é transmitido em forma de perversão.

Portanto, parece muito cabível e sábia a correção ética que se propõe.

Até aqui, Hollywood viveu, inversamente, dos maus sentimentos. Com que técnica e com que arte, com que fotografia e com que direção, soube ela tecer as mais lindas fantasias sobre as nossas abjeções!

Para não ir mais longe, aí está Belle de jour (1), Quem o veja percebe esta verdade absoluta: — o "grande diretor" não pode ter essa mediocridade de virtudes e defeitos que se exige de um marido burguês. Para pôr de pé um personagem sádico, cruel, voluptuoso, ele terá de ser de um sadismo, ou de uma voluptuosidade, ou de uma crueldade profunda. E assim o intérprete, e assim o fotógrafo, e assim o autor dos diálogos. Um filme como Belle de jour exige toda uma equipe de possessos. Aquela esposa alucinatória é o próprio Buñuel. Sim, ela é ele.

Diria eu que a humana sordidez tem sido o ganha-pão dos que, hoje, tentam uma árdua, frenética e antieconômica purificação. Se não existisse no homem o lado podre, se não existisse no fundo de cada qual a lama inconfessa e encantada, também não existiria a indústria cinematográfica.

Ah, o cinema nos compromete desde meninos! Bem me lembro dos mitos que Hollywood teceu para as crianças. Um deles foi Tom Mix. Outro, Rolleaux; outro ainda, William S. Hart. Pois Tom Mix subia no cavalo e dava tiros em todas as direções. Matava, e como matava! Era assassino por todas as crianças da platéia.

E, de repente, a unanimidade resolve acabar com o terror. Uma das primeiras vítimas de tal providência é um velho conhecido nosso: — o vampiro. Aí está uma figura fundamental do cinema. Tenho um tio que passa anos sem ver um filme. Diz ele que o cinema, como o jornal, mente muito. Mas não perde um filme de vampiro.

Certa vez, soube que estava levando um em Vigário Geral. Atravessou a cidade e foi lá. Por que será que esse tio, e outros tios, e outras tias — têm um tal delírio pelos vampiros? Deve ser uma fascinação mundial. A indústria cinematográfica não seria o que é, o império que é, se não tivesse, no seu passado, presente e futuro, as bilheterias do vampiro.

Abro um breve parêntese. Ainda ontem estive com o Palhares, o canalha. Sim, "o que não respeita nem as cunhadas". E o Palhares me dizia, com um agudo sentimento de frustração: — "Nunca houve um vampiro no Brasil". O canalha chama isso de "lapso", que se deve atribuir ao subdesenvolvimento. E, de fato, o sujeito aqui nasce com os pendores mais imprevisíveis.

Conheci um que era um "barbeiro de necrotério" nato. Teve as melhores ofertas. Certa vez, um vizinho ofereceu-lhe sociedade numa barbearia. Ponto ótimo, aluguel muito em conta. Repeliu a hipótese com a mais intransigente repugnância. Só queria escanhoar cadáver. Nada o impediria de exercer esta função e de cumprir este destino. Pois bem.

O Brasil teve bastante imaginação para dar um barbeiro de necrotério. E nunca pôs no mundo um drácula. Fecho o parêntese.

Voltemos a Hollywood. O que se propõe, no manifesto citado, é da mais pura e deslavada alienação. Nada mais idiota do que fazer filmes sem violência para uma platéia de violentos.

Todas as violências nos fascinam. Sempre foi assim, e agora mais do que violência. O cinema trabalha para o mundo que matou Bob Kennedy, chorou Bob Kennedy e, 48 horas depois, esqueceu Bob Kennedy. O esquecimento veio antes de que murchassem as flores do seu caixão.

O sujeito entra num cinema e leva a sua tensão exterminadora. Ele odeia e quer ver seu ódio na tela. De vez em quando, a Manchete publica um cadáver do Vietnã. Não se sabe se o morto é de lá ou de cá. Pode ser um herói e pode ser um bandido. O cadáver morreu odiando e continua odiando. Lá está seu gesto retorcido de ódio.

E assim a fúria do homem continua para além da vida e para além da morte.

E que pobre utopia um cinema sem violência, sadismo, terror e medo! Seria a morte da própria indústria cinematográfica. Hollywood desabaria como uma cúpula de palitos.

Uma destas noites, passei num sarau de grã-finos. E uma bela senhora dizia, com um maravilhoso impudor: — "Eu era a própria belle de jour. Fiz psicanálise e não adiantou. Continuei belle de jour do mesmo jeito. Até que fui ver o filme e houve o milagre. A heroína fez por mim, sonhou comigo. Saí do cinema purificada. Era uma menina tão pura, tão sem sexo. Nem alma tinha".

Assim, o ser humano vai para o cinema lavar as suas abjeções.

Já estou acabando e queria apenas acrescentar: — Hollywood devia fazer precisamente o contrário do que exige a sua tola unanimidade. Mais do que nunca, deve fabricar os filmes hediondos. O homem precisa ser colocado diante da própria violência. Temos que ver a face da nossa crueldade. Ou o cinema nos ofende e nos humilha ou, então, deve morrer.

E, sempre que o cinema apresenta a sordidez em dimensão gigantesca, cada qual sente o eterno, o sagrado, que existem no mais vil dos seres.

[24/6/1968]

(1) Belle de Jour - lançado no Brasil como A bela da tarde - é uma co-produção franco-italiana, não sendo portanto um filme hollywoodiano. [Nota Guinefort]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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