quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Assassinar o gesto de amor

Sou um homem que não dorme sentado. Quando viajo de noite para São Paulo, todos os outros passageiros dormem, menos eu e o chofer. E, se a viagem para São Paulo (que é, realmente, a viagem para a solidão) durar as Mil e Uma Noites, eu não dormirei um minuto.

Dirão vocês que a Cometa tem poltronas-leito. Nem assim. O meu sono exige cama, a clássica, a convencional, a absoluta. (Não sei quem foi que disse que a cama é um móvel metafísico. Na cama, o homem nasce, ama, sonha e morre).

Mas dizia eu: — não durmo sentado e agora vem o trágico: — quase não durmo deitado.

Tenho insônias obrigatórias e fatais. Os meus amigos sugerem: — "Toma barbitúrico". Ah, jamais uma farmácia resolveu o meu sono. E, além disso, o barbitúrico exaspera todas as víboras de minha insônia. Se eu tomar um tubo, 25 pílulas, posso morrer. Dormir, não. Vejam vocês: — morto e insone.

Felizmente, criou-se uma acomodação recíproca. Depois de uma longa convivência, eu e minha insônia já nos entendemos. E, a partir da meia-noite, começo a sonhar em claro. Se fosse um assassino, um Raskolnikov, usaria a minha vigília para construir meus crimes. Mas como não sou, até segunda ordem, um criminoso, só tenho insônias literárias e dramáticas.

Ontem, às três da manhã, comecei a pensar em Lúcio Cardoso. Há anos estou para visitá-lo. Passarei na sua casa, verei seus quadros e ele há de me olhar como um visitante convencional e não um amigo para sempre.

Ainda dentro da mesma insônia, lembrei-me do pai do grande romancista. De vez em quando, o velho chegava em casa e, já da porta, avisava: — "Não falem comigo, que hoje estou brigando automaticamente". Ele podia falar assim porque era homem de outra geração, de outro Brasil, de outro mundo. Hoje, o pai de Lúcio Cardoso não teria nenhuma originalidade. Repito: — hoje, qualquer um de nós poderia entrar num boteco, num velório ou numa retreta, e anunciar, patético: "Não falem comigo, porque hoje estou brigando automaticamente".

Estamos todos brigando. Há um automatismo nas nossas fúrias, nos nossos palavrões, nas nossas patadas. É assim no Brasil e é assim em todo o mundo. Outro dia, aconteceu-me uma que me deixou "pálido de espanto", como no soneto. Imaginem que, todos os sábados, almoço na casa do Hélio Pellegrino. Criou-se entre nós esse hábito tão doce e que me faria uma falta desesperadora. O Hélio é uma presença lírica, ardente, um ser de maravilhoso ímpeto.

Lembro-me de uma noite em que, num dos seus rompantes homéricos, vira-se para mim e fala: — "Você é um dos meus amigos fundamentais". Isso dito na sua voz cálida, vibrante, de barítono de igreja, foi de arrepiar.

Ninguém terá melhor qualidade humana. Vou contar um episódio que considero uma jóia da nossa convivência. Na véspera de partir para Lisboa, o Otto Lara Resende passou na casa do Hélio. O Otto sofre de uma falsa gastrite, que o tortura mais do que uma úlcera autêntica. Chegou e foi logo pedindo ao anfitrião: — "Um copo de leite! Um copo de leite!".

Foram os dois para a cozinha. E, lá, conversam, de coração para coração. Apaziguada a gastrite imaginária, o Otto abriu o coração. Fez confidências, o diabo. E, súbito, começa a chorar. Qualquer viagem, mesmo que seja a Bangu, a Vigário Geral, é uma janela aberta para o infinito. Na tensão da partida, o Otto teve um violento espasmo. Chorava alto, chorava forte. Que fez o Hélio? Arrastou o amigo e o enfiou no banheiro. Lá se trancaram. E, ali, a salvo de curiosidades frívolas e divertidas, o Hélio chorou também. O Otto teria seus motivos concretos. Ao passo que o Hélio chorava de graça, chorava por chorar, porque seu pranto é fácil, é abundante.

Contei o episódio e passo adiante. No último sábado, vou, como sempre, à casa do amigo, filar a bóia fraterna. Ele não estava, mas não ia demorar. Espero-o. E, com pouco mais, entra o dono da casa. Mas chega de cara amarrada. Diz-me um "olá" que é quase uma agressão. Penso no pai do Lúcio Cardoso e imagino: — "Hoje o Hélio está brigando automaticamente". Nos sábados anteriores, sempre me recebera com uma efusão larga e dionisíaca. Não estou entendendo nada.

Vamos para a mesa, enorme, patriarcal. E a cara amarrada do Hélio punha, entre nós, uma imensa distância afetiva, espiritual, sei lá. Comendo o meu bife, tive vontade de lembrar-lhe: — "Olha que sou teu amigo, teu irmão!". Não digo nada. Foi tão aguda a minha perplexidade que minha úlcera começou a doer.

Até que, subitamente, o Hélio fala e eu vi tudo: — eram os meus últimos artigos ou, melhor dizendo, as minhas últimas confissões. O nosso Hélio estava indignado porque eu falara de d. Hélder e do dr. Alceu. Segundo ele, eu não podia falar de ambos. "Nesse momento, não." Atônito, eu ouvia só. Em primeiro lugar, não me entrou na cabeça que exista um momento, próprio ou impróprio, para se dizer as verdades que cada qual traz no ventre. Nem lhe disse: — "Eu escrevo o que quiser, como quiser e quando quiser".

E não disse porque percebi a total esterilidade de qualquer debate em termos assim incendiários. De mais a mais, via diante de mim o anti-Hélio, a negação do Hélio. Poderia eu ter dito uma série de coisas, inclusive esta: — "Tudo, menos pensar como Moacyr Félix de Sousa!". Gesticular como Moacyr Félix de Sousa, ser como Moacyr Félix de Sousa. Jamais, jamais.

Em  dado momento, digo uma dessas verdades objetivas, concretas, que não admitem o menor sofisma. E o meu amigo, o meu irmão, o meu anfitrião (rimou) troveja: — "Mentira! Mentira!". Fiz então a piada amarga: — "Hélio, se meu fuzilamento depender de você, já estou no muro".

Mas o que assombrou não foi o berreiro, mas o que se escondia ou, por outra, o que não se escondia por trás do berreiro. Eu via, ali, o Brasil, um novo Brasil, um Brasil jamais concebido. Minha vida autoral tem sido difícil. Ao longo de minha vida, cinco peças minhas foram interditadas; recentemente, caçaram a pauladas um romance meu. Nunca as esquerdas exalaram um suspiro em meu favor; nunca os nossos intelectuais libertários fizeram um manifesto contra as miseráveis interdições.

Digo isso e vou completar: — e não é possível que, agora, nos meus 55 anos, venham me interditar também os artigos sobre d. Hélder e dr. Alceu.

Mas falei de um novo Brasil. É só olhar. Está aí germinando. E esse Brasil será, para o amor, a Casa de Bernarda Alba. Disse Brasil e posso ampliar. O resto do mundo já é também, para o amor, a mesmíssima Casa de Bernarda Alba.

Mataram Luther King e por que o mataram?

Porque é preciso assassinar o gesto de amor.
[10/4/1968]
______________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Leia mais...

Os dráculas

Quero crer que certas épocas são doentes mentais. Por exemplo: — a nossa. Ainda anteontem, falei da idéia inusitada de d. Hélder.

O nosso querido arcebispo propõe uma missa cômica (se duvidarem, leiam a última edição dominical de O Jornal). Por trás de suas palavras, sentimos o tédio cruel de uma missa que se repete, com uma monotonia já irrespirável, há 2 mil anos. E ele sugere que se substitua o órgão, o violino, a harpa, o címbalo, pelo reco-reco, o tamborim e a cuíca.

Por aí se vê que ele, como o dr. Alceu, é um progressista. Não sei se o leitor entendeu todo o alcance da sugestão. D. Hélder propõe, se bem o entendi, que se enfie o sobrenatural na gafieira ou por outra: — que se faça da catedral uma gafieira gótica.

Parece ao arcebispo de Olinda que se pode louvar a Deus, igualmente ou até com vantagem, com a cuíca, o pandeiro, o reco-reco e o tamborim. A missa, como a conhecemos, nos últimos vinte séculos, é triste, é depressiva, é neurótica. E quem sabe se a Virgem, se Jesus, se os santos não hão de preferir, por fundo musical, o samba? Seria uma boa maneira de espanar o pó que 2 mil anos depositaram em certas representações católicas.

Mas falei acima nas épocas que parecem doentes mentais. Só em nossos dias um arcebispo poderia irromper num jornal, na televisão ou rádio e lançar a idéia da missa cômica. Estamos pertinho da Semana Santa. É o caso de, na Sexta-Feira da Paixão, cada um levar seu reco-reco, sua cuíca, seu tamborim e seu pandeiro.

Nada de lúgubres e mórbidas procissões. E chorar por que, se tristezas não pagam dívidas? Mas, como eu ia dizendo: — se em qualquer outra época, de razoável sanidade, alguém sugerisse tal coisa, seria um escândalo inominável. Em sua indignação, os fiéis dariam arrancos triunfais de cachorro atropelado. Hoje, não.

Hoje, achamos perfeitamente normal que se instale a vida eterna numa gafieira. Daqui a pouco, um outro há de propor que, dentro das igrejas, garçons passem bandejas de salgadinhos, mães-bentas, caldo de cana, grapete e chicabon.

Mas volto à minha observação anterior: — d. Hélder não espantou ninguém. Não houve escândalo, ninguém arrancou os cabelos etc. etc. Essa impotência para o espanto dá que pensar.

Eis o que me pergunto: — e por que, meu Deus, por quê? Vejo católicos justificando a guerrilha, achando a guerrilha uma atividade nobilíssima. E o dr. Alceu só não a recomenda para o Brasil, porque, diz ele, os nossos camponeses não são politizados. Eu me lembro de que, antes da esquerda católica, não tínhamos dráculas neste país.

E já os temos. Amaldiçoados? Não. Abençoados. Sim, abençoados, absolvidos por respeitáveis homens de fé. Quando vi o dr. Alceu falando, com indisfarçável simpatia, das guerrilhas, pensei numa outra e singular figura: — o Lawrence das Arábias. Vocês o conhecem da História e da Lenda. O próprio Lawrence conta uma de suas passagens mais patéticas. Vale a pena lembrar o episódio.

Em dado momento, Lawrence teve que matar. Jamais tirara a vida de ninguém. Em criança, era contra a matança até de passarinho. E, além disso, havia um mandamento, o único do qual se lembrava e, também, o único que cumpria: — o "Não matarás". Lawrence estaria disposto a roubar e, aqui entre nós, já roubara. Matar, jamais. Mas precisava tirar a vida de um semelhante. Era um homem como ele e igual a ele.

E, então, Lawrence preparou-se para matar. Nobilíssimos motivos o impeliam para o assassinato. Na véspera do crime, não dormiu; passou a noite em claro. Houve um momento em que o fascinou a idéia de morrer para não matar. Se estourasse os miolos, estaria dispensado do crime hediondo. Outro que matasse. O diabo é que o sentimento do dever o empurrava. E o dever passa por cima dos mandamentos, por cima dos escrúpulos, por cima da misericórdia. Por dever, Lawrence saiu de casa para matar.

Viu a vítima. Ia morrer e não sabia. Ele, Lawrence, seria, por um momento, Deus; tiraria uma vida, como se Deus fosse. E Lawrence matou. O primeiro tiro já seria mortal. Mas a vítima poderia não morrer imediatamente e também atirar. Então, Lawrence deu o segundo tiro, igualmente mortal. Não precisava mais; ele poderia correr, pular o muro e sumir. Mas Lawrence ficou. O sujeito já estava morto, tecnicamente morto. Mas saiu o terceiro tiro.

Eis a pergunta que o assassino fazia a si mesmo: — por que o terceiro tiro se, desde o primeiro, a vítima já era um inequívoco, indubitável cadáver? Com grande assombro para si mesmo, continuou atirando. Quarto, quinto, sexto tiro. E só parou quando esgotou a carga. Era a hora de fugir. Mas ficou ainda. Virou a arma e meteu a coronha na cara do cadáver. E o fato de não ter mais balas, para continuar atirando, deu-lhe um sentimento atroz de frustração. Só então fugiu.

Mais adiante, Lawrence pára, assustadíssimo. O que o apavorava, em si, era a ausência de qualquer horror. Matara, pela primeira vez matara, e não estava horrorizado. Matara gostando de matar. Ao varar de balas a vítima, sentira um prazer jamais suspeitado. Era uma volúpia que não conhecia.

Olhou em torno. Passava, lá adiante, uma senhora, uma velha; e, mais além, uma criança. Teve a súbita e inefável tentação de matá-las também. Matar, sempre matar, matar na véspera, no dia seguinte, eternamente matar.

Não quero ser enfático. Mas me parece estar havendo, no Brasil, uma degringolada de valores. Vimos d. Hélder propor a missa cômica; e ninguém se espantou. Vimos o dr. Alceu declarar que, por causa de um passarinho,  se matar um homem. Uma coisa está ligada à outra e ambas se explicam. Se d. Hélder pode propor a gafieira gótica, e se o dr. Alceu absolve um monstruosíssimo assassinato (se bem que hipotético), tudo é permitido e vale tudo. O brasileiro é uma espécie de Lawrence na véspera do crime.

Vozes piedosas, batinas consagradas e a ferocíssima esquerda católica doutrinam as massas sobre a "violência justificada". Aí esta uma janela aberta para o infinito. E se o brasileiro matar, um dia? E se, como Lawrence, gostar de matar? E se começar a beber o sangue como groselha?

[5/4/1968] 
______________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Leia mais...

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Flor de obsessão

De vez em quando, alguém me chama de "flor de obsessão". Não protesto, e explico: — não faço nenhum mistério dos meus defeitos. Eu os tenho e os prezo (estou usando os pronomes como o Otto Lara Resende na sua fase lisboeta). Sou um obsessivo. E, aliás, que seria de mim, que seria de nós, se não fossem três ou quatro idéias fixas?

Repito: — não há santo, herói, gênio ou pulha sem idéias fixas. Só os imbecis não as têm. Não sei por que estou dizendo isto.

Ah, já sei. É o seguinte: — recebo a carta de uma leitora. Leio e releio e sinto a irritação feminina. E, justamente, a leitora me atribui a idéia fixa do "umbigo". Em seguida, acrescenta: — "Isso é mórbido ou o senhor não desconfia que isso é mórbido?". Corretíssima a observação.

Realmente, jamais neguei a cota de morbidez que Deus me deu. A minha morbidez. Ela me persegue e, repito, ela me atropela desde os três anos de idade. Eu ainda usava camisinha de pagão acima do umbigo. E, um dia, na rua Alegre, apareceram quatro cegos e um guia. Juntaram-se na esquina, na calçada da farmácia, e tocaram violino. Três anos. Quando os cegos partiram, caí de cama. Debaixo dos lençóis, tiritava de tristeza, como de malária.

A partir de então, sou um fascinado pelos cegos. Ainda na infância, eu fechava os olhos e, dentro de minhas próprias trevas, me imaginava cego. Claro que tudo isso é morbidez.

Eis o que eu queria dizer à minha leitora: — infelizmente, não tenho nem a saúde física, nem a saúde mental de uma vaca premiada. Na sua irritação, ela continua: — "Bem se vê que o senhor é um velho". E, de fato, sou tão velho quanto o Antônio Houaiss.

Por coincidência, almocei, ontem, com o já referido Antônio Houaiss, o Francisco Pedro do Coutto e o José Lino Grünewald. (Vejam como Grünewald é um nome naval, sim, o nome de um primeiro-tenente morto no afundamento do Bismarck). Durante o almoço, o Antônio Houaiss batia na tecla fatal: — "A minha geração é a do Nelson". E dizia ao José Lino e ao Coutto: — "Vocês que são brotos". E, pouco a pouco, eu e o próprio Houaiss íamos ficando lívidos de idade, amarelos de velhice, espectrais como a primeira batalha do Marne ou como o fuzilamento de Mata-Hari.

Depois do almoço, volto para a redação e vejo a carta da leitora. Lá está a mesma e crudelíssima acusação de velhice. Cabe então a pergunta: — e por que me chama de velho? Resposta: — porque ainda me impressionam os umbigos do biquíni, do sarongue, dos bailes. E, sem querer, a leitora toca num dos mistérios mais patéticos da nossa época.

Os jovens não estão interessados na nudez feminina. Essa rapaziada dourada de sol, esses latagões plásticos, elásticos, solidamente belos como havaianos não desejam como as gerações anteriores. Só os velhos é que ainda se voltam, na rua, ou na praia, para ver as belas formas. Quem o diz é a leitora.

Mas o melhor está do meio para o fim. De repente, percebo a origem da carta e da irritação. A leitora defendia alguém. Eis o caso: — no baile do Municipal, irrompeu um umbigo especialíssimo. Uma lindíssima senhora, e, se não me engano, embaixatriz, foi fotografada, televisada de sarongue.

Mais tarde, os jornais e as revistas falavam do umbigo diplomático. A imprensa rendia suas homenagens à beleza. Mas a leitora via, nas fotografias e legendas, uma inconfidência visual, quase um ultraje. Parece-lhe que não estamos longe do jornalismo de escândalo ou, para usar a cor exata, marrom.

Vejam vocês como os papéis se invertem. Já a televisão foi chamada de obscena, porque pôs no vídeo a nudez coletiva, geral, ululante. Eis o que me pergunto: — queriam o quê? Que as câmeras e os microfones vestissem os nus, calafetassem os umbigos, enfiassem espartilhos nos quadris?

Ao mesmo tempo, o Jornal do Brasil deitou um judicioso editorial afirmando que, depois da praia, a nudez perdera todo o mistério e todo o suspense. Era assim no Brasil e em todo o mundo. Portanto, segundo o velho órgão não há nada que objetar ao impudor eugênico, salubérrimo e "pra frente" da praia. E, todavia, o mesmo Jornal do Brasil e no mesmo editorial condena a televisão que devia ter tapado os quadris, umbigos etc. etc.

Do mesmo modo, o caso da leitora e da embaixatriz. Que uma bela senhora ponha um sarongue assim e vá ao baile é um fato intranscendente, normalíssimo. Mas, se um cronista deixa escapar uma referência ao umbigo do Itamaraty, vem o mundo abaixo. E por que, meu Deus do céu? Imoral é a televisão e não os nus frenéticos que vinham posar para as câmeras.

Antigamente, havia, em torno de um beijo, todo um sigilo, toda uma solidão. Lembro-me de uns namorados, na minha infância, que iam para debaixo da escada. E, nos bailes recentes, os casais caçavam as câmeras e iam beijar para milhões de telespectadores.

Seja como for, algo restou do último Carnaval. Refiro-me aos nus arrependidos. Na própria quarta-feira de Cinzas, cruzei, ao chegar em casa, com uma menina da vizinhança. Fora, nos quatro dias, um dos umbigos mais insistentes da televisão. Em qualquer canal, lá estava ele. E, no entanto, enterrado o Carnaval, eu via a menina passar, rente à parede, de cabeça baixa, na sua vergonha tardia e crispada.

A minha leitora, que assume a irada defesa da embaixatriz, também é outro nu arrependido. Diz, a folhas tantas: — "Eu também brinquei no Carnaval". E levando mais longe a sinceridade, confessa: — "Vesti o meu sarongue e não me arrependo". Mentira. Está arrependida, e insisto: — é um dos nus arrependidos da cidade. É linda, embora inútil, essa vergonha póstuma.

Também as famílias estão horrorizadas com o nudismo carnavalesco. Fui a um jantar e lá as senhoras diziam: — "Não eram meninas de família. Eram aventureiras". Perdão: vamos dizer a casta e singela verdade: — os nus saíam dos lares. Já escrevi isto e repito, porque é meio vil trapacear com o nosso próprio impudor. Se a cidade se despiu, deve ter o nobilíssimo cinismo de o proclamar. Mas vamos crer que não houve nus em lugar nenhum.

Não adianta. Para nós não há saída. Por que ter pudor no Carnaval e não na praia? Aí está o biquíni, que é a forma mais desesperada da nudez. Como é triste o nu que ninguém pediu, que ninguém quer ver, que não espanta ninguém. O biquíni vai comprar grapete e o crioulo da carrocinha tem o maior tédio visual pela plástica nada misteriosa.

E aí começa a expiação da nudez sem amor: — a inconsolável solidão da mulher.

[28/3/1968] 
______________________________________________________________________
A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Leia mais...