segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O menino Kennedy

Vocês devem estar lembrados. Era um dia como outro qualquer, ou por outra, não era um dia como outro qualquer. E repito: — era um dia dramatizado pela greve do rádio e da televisão.

Dirá alguém que os jornais circulavam. Mas o tempo da imprensa é um e outro o das câmeras e microfones. Em jornal, o fato leva 24 horas para ser notícia. Ao passo que tanto o rádio como as TVs são fulminantes (mais uma vez, estou aqui proclamando o óbvio).

Eis o que eu queria lembrar: — Kennedy morreu e custamos a saber. Entre nós e a tragédia houve a greve. Um tiro arrancou o queixo presidencial. E, aqui, ninguém desconfiava de nada. Quando as extras saíram, Kennedy já estava no caixão, Johnson tomara posse, Jacqueline improvisara o luto de sua viuvez atônita. (Aliás, foi furada a greve do rádio e da televisão. Se não me engano, a Roquette Pinto estava no ar.

Mas o rádio educativo faz sua audição para surdos. Ninguém o ouve, ninguém, ou por outra: — só uma meia dúzia o ouve. E foi essa meia dúzia que saiu contando para os amigos, os familiares, os conhecidos; e assim, de boca em boca, a notícia tomou conta, paulatinamente, da cidade.

Todavia o silêncio do rádio e da televisão parecia humilhar, parecia desfeitear a catástrofe). Estou falando de Kennedy e de sua morte porque meu filho Joffre chegou de Nova York. Está aqui de passagem e voltará. E, nos Estados Unidos, ele vai de um assombro a outro assombro. Lá, vive ele num mundo quase absurdo. Um dia, abre a televisão e vê um filme sobre "as atrocidades norte-americanas". O mesmo filme passara, antes, normalmente, num gigantesco circuito de cinemas.

Só um país, no mundo, ousaria tamanha antipropaganda, tamanha antipromoção. E o Joffre, em conversas intermináveis, fala de tudo que há de pueril, trágico, jamais concebido, na vida americana. Súbito, meu filho chega a Bob Kennedy. Nós o conhecemos fisicamente; nós o vimos, aqui, na praia, de calção, dourando-se ao sol como um camaleão (rimou com calção, e desculpem).

Mas o Bob que por aqui passou e viu muitos poentes de Leblon nada tem a ver com o Bob candidato. Naquele tempo, ele preservava, como um segredo, como um pudor, a sua intenção presidencial. Fazia de conta que o sonho do poder ainda não se instalara no seu coração. Mas, ao falar de Bob, não resisto à tentação de contar um episódio brasileiro. Vamos lá.

Certa noite, o nosso Bob teve um encontro com vários patrícios nossos, inclusive o dr. Alceu. Eram intelectuais, estudantes, cada qual fazendo a sua pose e cada qual dando seu recado. Por coincidência, todos vendiam a mesma imagem do Brasil. Houve um momento em que o Tristão empostou-se, ergueu o gesto e disse, textualmente, o seguinte: — "Posso assegurar-lhe que não havia o menor perigo comunista no Brasil!".

Foi imensamente divertido o tom inapelável de verdade eterna com que o mestre atirava na cara do ilustre visitante tamanha barbaridade. Os presentes, menos Bob Kennedy, balançaram a cabeça, e com o maior descaro. Mas nada descreve a amarga perplexidade do americano. Eis as perguntas que ele, espantadíssimo, teve o decoro de não fazer: — "Como não há perigo comunista? Isto aqui não é um país subdesenvolvido? Não há fome? Existe ou não existe o Nordeste? A tal mortalidade infantil é pura escroquerie?".

Com a conivência e o descaro dos brasileiros presentes, o dr. Alceu estava sendo de uma monstruosa e consciente inveracidade. Digo "consciente" porque ele não ignora, decerto, a fome, o Nordeste, a mortalidade infantil etc. etc.

Volto aos Estados Unidos. Conta Joffre que Bob mudou, até fisicamente. Há pouquíssimo tempo era, na televisão, um modesto, um humilde, um cerimonioso. Não olhava, cara a cara, os vários milhões de telespectadores. Baixava a cabeça. Tinha como que a vergonha física do poder. E, súbito, o candidato secreto, inconfesso, começou a borbulhar, irresistivelmente. Bob Kennedy se deflagra. Seu gesto, sua inflexão, sua ênfase, sua ira, tudo, tudo promove, impõe, desfralda o candidato.

E, com isso, ficamos sabendo que a modéstia, a humildade, a suavidade anteriores eram uma pose. Aliás, pode-se datar a sua candidatura: — no dia, ou, melhor dizendo, no momento em que John Kennedy morreu, ele começou a ser candidato, automaticamente candidato. Não importa o pudor que, por muito tempo, disfarçou, negou o automatismo dessa candidatura.

Eu diria que, no seu caminho presidencial, só resta uma dúvida. E, de fato, custa crer que existam, numa mesma família, dois Kennedys. Seria o mesmo que pretender dois Napoleões. E, quando dois nomes coincidem, passamos de um Napoleão, o Grande, para o Napoleão III, o idiota. Há, todavia, uma hipótese para o nosso Bob: — de que o verdadeiro Kennedy não seja o morto, mas o sobrevivente.

Sempre me pareceu que John Kennedy era, como líder, um equívoco. Escrevi, aqui mesmo, que o verdadeiro líder é um canalha. E Kennedy era um pobre ser crispado de humanidade, igual a um de nós, perplexo, frágil, dilacerado, menino, como um de nós. Menino sim, infinitamente menino.

Kennedy tinha uma mulher bonita; amava e era amado. Não há Jacqueline na História e na Lenda de Lenin, Stalin, Hitler. E a mulher bonita só tem sentido para o líder quando o trai. E mais: — o líder morre na hora certa, e não antes.

John Kennedy morreu antes, e repito: — morreu antes da obra. Um Napoleão que morresse na tomada da Bastilha não seria Napoleão. Um Cristo morto aos três anos de idade, de coqueluche, já não seria Cristo. De mais a mais, o verdadeiro líder há de morrer com o rosto.

Sim, a morte tem que preservar seu perfil para a moeda, a cédula, a medalha. O último rosto, o rosto do caixão, precisa estar intacto. E tiveram que fechar o caixão de Kennedy para esconder o queixo arrancado.

[25/3/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A fotografia do ódio

É uma fotografia de Manchete, e com a agravante: — colorida. Lá está o sangue coagulado. O olho enorme, que ninguém fechou; e os intestinos escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãos entrevadas pela morte.

Morreu, não há dúvida, morreu. E odeia.

Morreu com esgar de ódio, com a boca aberta em grito. Nem sei se é de um lado ou de outro; se é guerrilheiro ou não. Morreu, mas o ódio sobrevive. É um cadáver e continua odiando. Olho a fotografia e vejo tudo.

Não é americano, não pode ser americano. Tem de ser do outro lado, e explico. O mistério de Manchete está na impressão, em cores. Seus anúncios são graficamente exemplares. Lembro-me de uma salada de página inteira. A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese, tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete imprimiu o cadáver vietnamita com o mesmo virtuosismo da
salada.

Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela miséria dentária. Eram cacos, não dentes. Dirá alguém que de um lado e do outro há maus dentes. Seja como for, instala-se em mim a certeza, talvez pueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.

Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos pendurados nas feias gengivas. O que realmente apavora é o ódio. Imaginem vocês que acabo de receber a carta de uma leitora. É uma brasileira que me escreve e não assina. A meu ver, não há carta anônima intranscendente. Se não tem assinatura, passa a valer como um documento trágico. Desde os velhos folhetins, a carta anônima é de uma veracidade apavorante.

A leitora fala da moça chamada Gisela, que morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de hospital em hospital, e não encontrou um médico, uma enfermeira, um estudante, um porteiro. Teria sido salva, sem maiores problemas, se alguém a atendesse em tempo. Mas vinha um médico, olhava o braço partido e dizia: — "Não é urgente". E a mandava embora.

Qualquer barbeiro diria: — "É de urgência, sim". Mas não houve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio. Não houve uma enfermeira, nem um funcionário.

Há uma escola que se chama, pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras, práticas ou formadas, as serventes, ninguém teve pena, simplesmente pena. Temos pena de uma cachorra manca. E ninguém teve pena da gangrena em flor.

No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão nítido, tão límpido, tão inequívoco. Qualquer um, a olho nu, veria a cor da gangrena e da orquídea. Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os hospitais, continuavam a negar, de pés juntos, a gravidade e a urgência. Até que a menina morreu, apenas morreu, e nada mais.

E, então, a leitora me escreve. O que me impressionou na carta foi o ódio. Um ódio só comparável ao do cadáver que continuava odiando. Sempre digo que o verdadeiro amor continua para além da vida e para além da morte. Mas vejo o cadáver da guerra. E sinto que também o verdadeiro ódio dura mais que a vida e dura mais que a morte.

Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu, não a irritação efêmera, não a raiva que passa, não o protesto que se esquece. Não, não. Ela toma uma posição radical. É uma paixão que não conhecia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer nada. Nada, nada?

Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente nada. Mas a leitora tem um tesouro de ódio, íntimo tesouro, que não sabe como aplicar ou contra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é que morreu uma só e repito: — uma só Gisela.

Se fossem duzentas, trezentas Giselas, talvez tivéssemos, por aí, um surto de piedade convencional e enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignificação numérica que comove de uma maneira muito epidérmica e ineficaz. E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos toda uma imensa organização, toda uma estrutura gigantesca. E sabem para quê? Para que um médico olhe uma gangrena inequívoca, óbvia, evidentíssima, e diga: — "Não é de urgência".

Ora, eu sou um obsessivo. E uma das minhas idéias fixas é, justamente, a seguinte: — o médico ou é um santo ou um gângster. Meu Deus, não vejam nas minhas palavras nem exagero, nem caricatura. Um médico tem responsabilidades que ninguém tem. Estou dizendo o óbvio, mas paciência.

O médico só devia ser médico depois de sofrer uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos. O sujeito teria de passar três anos nos cafundós da África, tratando de negros leprosos. Como é que se pode passar um atestado de óbito sem tremer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina um atestado de óbito substituiu Deus e O antecipa.

Mas não se aflijam. Os médicos que não identificaram a gangrena, que não enxergaram o óbvio e despacharam alegremente a moça continuarão a fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, a assobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mereceu de Manchete uma impressão de salada.

Eu falei de dois ódios e passo a um terceiro. Desta vez é um chofer de praça. Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.

Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados.

Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.

A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o Teatro Jovem ia levar, se passa num xadrez. Seis ou sete marginais estão em cena. E, de repente, entra mais um preso, um adolescente, preso porque brigara num bar do Leblon. Os outros o agarram, e qualquer um pode imaginar o resto.

Pergunto: — que faremos nós? Desta vez, foi tomada a providência justa: — interditou-se a peça. Obscena é a denúncia e não a monstruosidade. A moral está salva, porque se emudeceu uma peça. E o ser humano continuará sendo violentado em cada xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento é impotente, como o ódio do chofer.

[20/3/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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As bolachas

Em recente confissão, dizia eu que o milionário brasileiro é pobre de mesa. Tem dinheiro para banquetes suntuários. Se quisesse, comeria 25 leitões no café. E ainda teria quinhentos frascos de geléia para lhes passar por cima.

O diabo é que, psicologicamente, o nosso milionário continua pobre. E, nessa alma de pobre, está todo o patético, todo o sublime do rico brasileiro. Seu automóvel tem cascata artificial com filhote de jacaré. Sua esposa gasta mais do que 25 amantes. Sua amante gasta mais do que 25 esposas.

Conheço um milionário que amou uma jovem senhora. Disseram: — "Gosta do marido!". Teve um riso torpe: — "Eu compro". Achava que tudo se compra e tudo se vende.

Começou a conquista. Ligava e a outra batia-lhe com o telefone. Mandou-lhe rosas. Na frente do mensageiro, a moça sapateou em cima das flores como uma espanhola. Na sua obstinação fanática, dizia o milionário: — "Há de ter seu preço! Todas têm um preço!". E, um dia, mandou-lhe um colar de pérolas, legítimas, dessas que, segundo ele, subornam uma rainha. Esperou 24 horas, 48. E, como não houve devolução, pôs a boca no mundo: — "Comprei, comprei!". Os amigos, os conhecidos e parentes já admitiam: — "Vendeuse!".

Até que, quatro ou cinco dias depois, os dois se cruzam numa recepção grã-finíssima. O milionário tem um choque delicioso: — ela estava com o colar, usava o colar, com um divino impudor. "Cínica", eis o que pensava o milionário. E, súbito, ela o vê. Pede licença a uma outra senhora, com quem conversava, e vem ao encontro do conquistador. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Parou diante do milionário; com um gesto leve e ágil, tirou o colar (ele não estava entendendo nada). Em seguida, segurando o colar como a um relho, deu-lhe em pleno rosto a primeira lambada.

O salão parou; os convidados tinham uma cara idiota. Sim, uma cara idiota como se todos ali fossem figuras de museu de cera. As pérolas explodiam em cada face do milionário. Não houve uma palavra entre os dois. Só houve a surra de pérolas. E o pior foi depois. Aquelas casacas e aqueles decotes agachados e apanhando, vorazmente, as pérolas espalhadas.

Bem. Contei o episódio e não sei por que o fiz (realmente). Ou por outra: — já sei por que contei uma surra tão cara. É que esse brasileiro rico possuía uma alma de pobre, e repito: — tinha velhas fomes enterradas na alma. Por vingança de pobre, de pau-de-arara, queria tudo comprar e tudo corromper.

Falei do milionário brasileiro. Mas há um outro patrício ainda mais fascinante. Refiro-me àquele que não é, mas será rico algum dia. Por exemplo: — o meu amigo Asdrúbal. Espírito admirável, ensaísta de uma lucidez apavorante. Eis o que eu queria dizer: — Asdrúbal conheceu a fome, a boa, a santa fome. E, no entanto, trazia um milionário em seu ventre.

Hoje é homem de televisão, empresário, tem automóvel etc. etc. Percebi que o Asdrúbal ia ser milionário quando, certa vez, sem um tostão, comprou uma ilha. Sim, uma ilha do Pará, meio paradisíaca, com jacarés por toda a parte. Não há mais carambolas. Pois a ilha do Asdrúbal tem carambolas. E ele a comprou sem um níquel. Só um milionário nato podia ter um gesto assim, dionisíaco.

Mas não me importa muito o atual Asdrúbal, bem-sucedido, de larga e cálida euforia. Não. O melhor Asdrúbal é o da fome. Ele poderia dizer: — "Eu já fui o Raskolnikov!". Não matou as velhas. Tem uma estrutura doce demais para isso. Mas roubava livros. Morava então com o Carlinhos de Oliveira e o Ferreira Gullar, numa água-furtada, e havia, lá, uma clarabóia, como nos romances de Paulo de Kock.

Eis o que fazia o nosso Raskolnikov: — roubava livros. Entrava numa livraria e, como um "virtuose", um estilista, apanhava três, quatro volumes. Era quase um número circense. Ninguém percebia nada. E lá ia o nosso Asdrúbal vender os livros ao Mário Pedrosa. Este era o grande freguês. Não só o Mário Pedrosa, evidentemente. A freguesia do Asdrúbal era imensa, inclusive senhoras e até padres.

Eugene O'Neill, quando se tornou milionário, costumava dizer: — "Ah, só tenho saudades da fome!". Sim, saudades das noites do cais. Suas entranhas se contraíam na náusea da fome e não havia o que vomitar. A nostalgia do Asdrúbal, ou a sua vaidade, é o adolescente e nobilíssimo ladrão literário. Só roubava do bom, do melhor! Era, repito, um ladrão crítico, que excluía qualquer subliteratura.

Eis o que eu queria dizer: — quando Asdrúbal for milionário, a fome estará enterrada, no seu sangue e na sua alma. O ladrão de livros, de um gosto tão lúcido, e tão fino, e de uma sensibilidade tão erudita, não há de morrer jamais. E é justamente esse passado que faz do Asdrúbal uma natureza tão complexa, irisada, dramática.

Outro que não seria nada se não tivesse para pisar o grande chão do passado é Plínio Marcos. Hoje, é uma das figuras mais obsessivas dos nossos palcos. Por toda a parte, lê-se e ouve-se o seu nome.

É representado, simultaneamente, em três, quatro teatros. Já foi tudo, como Knut Hamsun. Raros brasileiros podem entrar numa sala e anunciar, de fronte alta: — "Já fui palhaço". E, no caso de Plínio Marcos, com uma agravante dramática: — era o palhaço sem graça, o palhaço que não fazia rir.

Uma vez representou para quinhentas crianças. Fez o diabo. As suas cambalhotas elásticas, acrobáticas, não arrancavam um sorriso. Quinhentas caras amarradas. Até que o Plínio Marcos explodiu: — parou no picadeiro e, na sua fúria, dava arrancos triunfais de cachorro atropelado. Nunca mais foi palhaço, nunca mais. Mas sua experiência culminante não foi de palhaço: — foi de ladrão.

Um dia, ficou de sentinela de um avião, se não me engano, da Cruzeiro. Estava lá, na sua função, armadíssimo, disposto a fuzilar o primeiro suspeito. E, súbito, chegam os assaltantes. Era um bando de rotos, de esfarrapados, crioulos, brancos, e, no meio dos miseráveis, um leproso. Um súbito e móvel pátio dos milagres. Queriam pilhar o avião. Eis o dilema do futuro dramaturgo: — ou fuzilava, ou confraternizava. O avião estava cheio de bolachas. Plínio Marcos vacilou um minuto, dois. E, por fim, tomou a liderança dos canalhas. Invadiram o avião e saquearam as bolachas.

Pouco depois era preso, arrastado à prisão.

Degradaram-no como a um Dreyfus sem Zola. Uma mão feroz arrancou-lhe os botões, um a um. Foi toda essa experiência de Dreyfus, todo esse peso vital que ele pôs na sua nova peça.

Ah, é um texto que dará ao espectador, no fim do espetáculo, a vontade de chorar, eternamente, sentado no meio-fio.

[15/3/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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