segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A fotografia do ódio

É uma fotografia de Manchete, e com a agravante: — colorida. Lá está o sangue coagulado. O olho enorme, que ninguém fechou; e os intestinos escorrendo, no seu puro escarlate; e as mãos entrevadas pela morte.

Morreu, não há dúvida, morreu. E odeia.

Morreu com esgar de ódio, com a boca aberta em grito. Nem sei se é de um lado ou de outro; se é guerrilheiro ou não. Morreu, mas o ódio sobrevive. É um cadáver e continua odiando. Olho a fotografia e vejo tudo.

Não é americano, não pode ser americano. Tem de ser do outro lado, e explico. O mistério de Manchete está na impressão, em cores. Seus anúncios são graficamente exemplares. Lembro-me de uma salada de página inteira. A alface, as fatias de tomate, os frios, a maionese, tudo, tudo é perfeito, irretocável. Manchete imprimiu o cadáver vietnamita com o mesmo virtuosismo da
salada.

Mas eu digo que devia ser guerrilheiro pela miséria dentária. Eram cacos, não dentes. Dirá alguém que de um lado e do outro há maus dentes. Seja como for, instala-se em mim a certeza, talvez pueril, mas obsessiva: — são dentes de terrorista.

Mas não falemos mais na meia dúzia de cacos pendurados nas feias gengivas. O que realmente apavora é o ódio. Imaginem vocês que acabo de receber a carta de uma leitora. É uma brasileira que me escreve e não assina. A meu ver, não há carta anônima intranscendente. Se não tem assinatura, passa a valer como um documento trágico. Desde os velhos folhetins, a carta anônima é de uma veracidade apavorante.

A leitora fala da moça chamada Gisela, que morreu de gangrena. E morreu porque saiu, de hospital em hospital, e não encontrou um médico, uma enfermeira, um estudante, um porteiro. Teria sido salva, sem maiores problemas, se alguém a atendesse em tempo. Mas vinha um médico, olhava o braço partido e dizia: — "Não é urgente". E a mandava embora.

Qualquer barbeiro diria: — "É de urgência, sim". Mas não houve, repito, um médico que reconhecesse o óbvio. Não houve uma enfermeira, nem um funcionário.

Há uma escola que se chama, pomposamente, Ana Nery. Pois as enfermeiras, práticas ou formadas, as serventes, ninguém teve pena, simplesmente pena. Temos pena de uma cachorra manca. E ninguém teve pena da gangrena em flor.

No fim, não havia a menor dúvida. Caso tão nítido, tão límpido, tão inequívoco. Qualquer um, a olho nu, veria a cor da gangrena e da orquídea. Mas os médicos, de vários hospitais, de todos os hospitais, continuavam a negar, de pés juntos, a gravidade e a urgência. Até que a menina morreu, apenas morreu, e nada mais.

E, então, a leitora me escreve. O que me impressionou na carta foi o ódio. Um ódio só comparável ao do cadáver que continuava odiando. Sempre digo que o verdadeiro amor continua para além da vida e para além da morte. Mas vejo o cadáver da guerra. E sinto que também o verdadeiro ódio dura mais que a vida e dura mais que a morte.

Minha leitora viu a notícia no jornal. E conheceu, não a irritação efêmera, não a raiva que passa, não o protesto que se esquece. Não, não. Ela toma uma posição radical. É uma paixão que não conhecia. E, no seu ódio, pergunta se ninguém vai fazer nada. Nada, nada?

Sim, ninguém fará nada, nada. Exatamente nada. Mas a leitora tem um tesouro de ódio, íntimo tesouro, que não sabe como aplicar ou contra quem aplicar. Odeia, mas a quem? E o pior é que morreu uma só e repito: — uma só Gisela.

Se fossem duzentas, trezentas Giselas, talvez tivéssemos, por aí, um surto de piedade convencional e enfática. Mas uma só gangrena é de tal insignificação numérica que comove de uma maneira muito epidérmica e ineficaz. E me espanta o nosso vão esforço. Pagamos toda uma imensa organização, toda uma estrutura gigantesca. E sabem para quê? Para que um médico olhe uma gangrena inequívoca, óbvia, evidentíssima, e diga: — "Não é de urgência".

Ora, eu sou um obsessivo. E uma das minhas idéias fixas é, justamente, a seguinte: — o médico ou é um santo ou um gângster. Meu Deus, não vejam nas minhas palavras nem exagero, nem caricatura. Um médico tem responsabilidades que ninguém tem. Estou dizendo o óbvio, mas paciência.

O médico só devia ser médico depois de sofrer uma série de provas, de testes vitais crucialíssimos. O sujeito teria de passar três anos nos cafundós da África, tratando de negros leprosos. Como é que se pode passar um atestado de óbito sem tremer? Diz um amigo meu que o sujeito que assina um atestado de óbito substituiu Deus e O antecipa.

Mas não se aflijam. Os médicos que não identificaram a gangrena, que não enxergaram o óbvio e despacharam alegremente a moça continuarão a fazer a barba, a escovar os dentes, a namorar, a assobiar etc. etc. Mas volto ao cadáver que mereceu de Manchete uma impressão de salada.

Eu falei de dois ódios e passo a um terceiro. Desta vez é um chofer de praça. Imaginem um chefe de família, de origem italiana. Mas a origem pouco importa. Era uma criatura doce, cálida, generosa. Um dia foi preso porque não tinha, na hora, a sua identidade. Sua mulher, seus oito filhos, estão em casa, esperando para o jantar. Mas ele não vem porque foi atirado no fundo de um xadrez. Passou lá, entre marginais, 24 horas, e gritando. Digo eu que o verdadeiro grito parece falso. E o motorista gritava como se estivesse imitando, apenas imitando a dor da carne ferida.

Eis o que aconteceu: — fora estuprado por seis ou sete marginais. Saiu do xadrez, foi para casa. Empurrou a mulher, entrou no quarto e trancou-se. Lá, meteu uma bala na cabeça. Morreu de ódio, morreu odiando, como a fotografia de Manchete. E, como a leitora, não sabia a quem odiar. Os marginais eram, decerto, os menos culpados.

Episódios assim são uma rotina que jamais variou. Isso pode acontecer com o filho, o pai, o irmão de qualquer um; pode acontecer com qualquer um. A vítima pode uivar três dias e três noites. Ninguém se mexe na delegacia.

A nova peça de Plínio Marcos, Barrela, que o Teatro Jovem ia levar, se passa num xadrez. Seis ou sete marginais estão em cena. E, de repente, entra mais um preso, um adolescente, preso porque brigara num bar do Leblon. Os outros o agarram, e qualquer um pode imaginar o resto.

Pergunto: — que faremos nós? Desta vez, foi tomada a providência justa: — interditou-se a peça. Obscena é a denúncia e não a monstruosidade. A moral está salva, porque se emudeceu uma peça. E o ser humano continuará sendo violentado em cada xadrez, eternamente. Porque o nosso sentimento é impotente, como o ódio do chofer.

[20/3/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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As bolachas

Em recente confissão, dizia eu que o milionário brasileiro é pobre de mesa. Tem dinheiro para banquetes suntuários. Se quisesse, comeria 25 leitões no café. E ainda teria quinhentos frascos de geléia para lhes passar por cima.

O diabo é que, psicologicamente, o nosso milionário continua pobre. E, nessa alma de pobre, está todo o patético, todo o sublime do rico brasileiro. Seu automóvel tem cascata artificial com filhote de jacaré. Sua esposa gasta mais do que 25 amantes. Sua amante gasta mais do que 25 esposas.

Conheço um milionário que amou uma jovem senhora. Disseram: — "Gosta do marido!". Teve um riso torpe: — "Eu compro". Achava que tudo se compra e tudo se vende.

Começou a conquista. Ligava e a outra batia-lhe com o telefone. Mandou-lhe rosas. Na frente do mensageiro, a moça sapateou em cima das flores como uma espanhola. Na sua obstinação fanática, dizia o milionário: — "Há de ter seu preço! Todas têm um preço!". E, um dia, mandou-lhe um colar de pérolas, legítimas, dessas que, segundo ele, subornam uma rainha. Esperou 24 horas, 48. E, como não houve devolução, pôs a boca no mundo: — "Comprei, comprei!". Os amigos, os conhecidos e parentes já admitiam: — "Vendeuse!".

Até que, quatro ou cinco dias depois, os dois se cruzam numa recepção grã-finíssima. O milionário tem um choque delicioso: — ela estava com o colar, usava o colar, com um divino impudor. "Cínica", eis o que pensava o milionário. E, súbito, ela o vê. Pede licença a uma outra senhora, com quem conversava, e vem ao encontro do conquistador. Tudo aconteceu numa progressão fulminante. Parou diante do milionário; com um gesto leve e ágil, tirou o colar (ele não estava entendendo nada). Em seguida, segurando o colar como a um relho, deu-lhe em pleno rosto a primeira lambada.

O salão parou; os convidados tinham uma cara idiota. Sim, uma cara idiota como se todos ali fossem figuras de museu de cera. As pérolas explodiam em cada face do milionário. Não houve uma palavra entre os dois. Só houve a surra de pérolas. E o pior foi depois. Aquelas casacas e aqueles decotes agachados e apanhando, vorazmente, as pérolas espalhadas.

Bem. Contei o episódio e não sei por que o fiz (realmente). Ou por outra: — já sei por que contei uma surra tão cara. É que esse brasileiro rico possuía uma alma de pobre, e repito: — tinha velhas fomes enterradas na alma. Por vingança de pobre, de pau-de-arara, queria tudo comprar e tudo corromper.

Falei do milionário brasileiro. Mas há um outro patrício ainda mais fascinante. Refiro-me àquele que não é, mas será rico algum dia. Por exemplo: — o meu amigo Asdrúbal. Espírito admirável, ensaísta de uma lucidez apavorante. Eis o que eu queria dizer: — Asdrúbal conheceu a fome, a boa, a santa fome. E, no entanto, trazia um milionário em seu ventre.

Hoje é homem de televisão, empresário, tem automóvel etc. etc. Percebi que o Asdrúbal ia ser milionário quando, certa vez, sem um tostão, comprou uma ilha. Sim, uma ilha do Pará, meio paradisíaca, com jacarés por toda a parte. Não há mais carambolas. Pois a ilha do Asdrúbal tem carambolas. E ele a comprou sem um níquel. Só um milionário nato podia ter um gesto assim, dionisíaco.

Mas não me importa muito o atual Asdrúbal, bem-sucedido, de larga e cálida euforia. Não. O melhor Asdrúbal é o da fome. Ele poderia dizer: — "Eu já fui o Raskolnikov!". Não matou as velhas. Tem uma estrutura doce demais para isso. Mas roubava livros. Morava então com o Carlinhos de Oliveira e o Ferreira Gullar, numa água-furtada, e havia, lá, uma clarabóia, como nos romances de Paulo de Kock.

Eis o que fazia o nosso Raskolnikov: — roubava livros. Entrava numa livraria e, como um "virtuose", um estilista, apanhava três, quatro volumes. Era quase um número circense. Ninguém percebia nada. E lá ia o nosso Asdrúbal vender os livros ao Mário Pedrosa. Este era o grande freguês. Não só o Mário Pedrosa, evidentemente. A freguesia do Asdrúbal era imensa, inclusive senhoras e até padres.

Eugene O'Neill, quando se tornou milionário, costumava dizer: — "Ah, só tenho saudades da fome!". Sim, saudades das noites do cais. Suas entranhas se contraíam na náusea da fome e não havia o que vomitar. A nostalgia do Asdrúbal, ou a sua vaidade, é o adolescente e nobilíssimo ladrão literário. Só roubava do bom, do melhor! Era, repito, um ladrão crítico, que excluía qualquer subliteratura.

Eis o que eu queria dizer: — quando Asdrúbal for milionário, a fome estará enterrada, no seu sangue e na sua alma. O ladrão de livros, de um gosto tão lúcido, e tão fino, e de uma sensibilidade tão erudita, não há de morrer jamais. E é justamente esse passado que faz do Asdrúbal uma natureza tão complexa, irisada, dramática.

Outro que não seria nada se não tivesse para pisar o grande chão do passado é Plínio Marcos. Hoje, é uma das figuras mais obsessivas dos nossos palcos. Por toda a parte, lê-se e ouve-se o seu nome.

É representado, simultaneamente, em três, quatro teatros. Já foi tudo, como Knut Hamsun. Raros brasileiros podem entrar numa sala e anunciar, de fronte alta: — "Já fui palhaço". E, no caso de Plínio Marcos, com uma agravante dramática: — era o palhaço sem graça, o palhaço que não fazia rir.

Uma vez representou para quinhentas crianças. Fez o diabo. As suas cambalhotas elásticas, acrobáticas, não arrancavam um sorriso. Quinhentas caras amarradas. Até que o Plínio Marcos explodiu: — parou no picadeiro e, na sua fúria, dava arrancos triunfais de cachorro atropelado. Nunca mais foi palhaço, nunca mais. Mas sua experiência culminante não foi de palhaço: — foi de ladrão.

Um dia, ficou de sentinela de um avião, se não me engano, da Cruzeiro. Estava lá, na sua função, armadíssimo, disposto a fuzilar o primeiro suspeito. E, súbito, chegam os assaltantes. Era um bando de rotos, de esfarrapados, crioulos, brancos, e, no meio dos miseráveis, um leproso. Um súbito e móvel pátio dos milagres. Queriam pilhar o avião. Eis o dilema do futuro dramaturgo: — ou fuzilava, ou confraternizava. O avião estava cheio de bolachas. Plínio Marcos vacilou um minuto, dois. E, por fim, tomou a liderança dos canalhas. Invadiram o avião e saquearam as bolachas.

Pouco depois era preso, arrastado à prisão.

Degradaram-no como a um Dreyfus sem Zola. Uma mão feroz arrancou-lhe os botões, um a um. Foi toda essa experiência de Dreyfus, todo esse peso vital que ele pôs na sua nova peça.

Ah, é um texto que dará ao espectador, no fim do espetáculo, a vontade de chorar, eternamente, sentado no meio-fio.

[15/3/1968] 

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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Terreno baldio

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare.

Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — "Eu vi tudo e sei tudo". Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana.

O mérito não é nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente. E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão.

O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das "entrevistas imaginárias". Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto.

Fascinou-me a "entrevista imaginária". Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia.  Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências.

Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.

Fiz "entrevistas imaginárias" com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antônio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal.

"Mas quem?" — eis o que me perguntava. — "Quem?" E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — "D. Hélder!". De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística.

Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a "entrevista imaginária". À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar.

Primeira pergunta: — "O senhor fuma, d. Hélder?". Resposta: — "A entrevista é imaginária?". Acho graça: — "Ou o senhor duvida?". E d. Hélder: — "Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?". Digo: — "Caporal Amarelinho". Cuspiu por cima do ombro: — "Deus me livre! Mata rato!".

Faço a pergunta: — "Que notícias o senhor me dá da vida eterna?". Riu: — "Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?". No meu espanto, indago: — "E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?". O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — "Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta".

Ele continuava: — "O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém". D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — "Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?". Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: — "A fome do Nordeste é a fome do Nordeste".

D. Hélder estende a mão: — "Dá um dos teus mata-ratos". Acendi-lhe o cigarro. D. Hélder não pára mais: — "Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D'Arc. Já viu a nossa querida Joana D'Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de são Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!".

Lanço outra isca: — "É verdade que o senhor vai para o Amazonas?". Riu: — "Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?".

Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — "E o comunismo?". D. Hélder conta: — "Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!". Insinuei a dúvida: — "Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso". Nova risada: — "Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos".

Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — "Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda".

Desfechei-lhe a pergunta final: — "E a Presidência da República?". D. Hélder respira fundo: — "Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá". Era o fim da "entrevista imaginária".

Despedi-me assim: — "Até logo, presidente". Respondeu: — "Obrigado, irmão". E antes de partir fez a última declaração: — "Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro".

Disse isso e sumiu na treva.

[14/3/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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