Cada época se assoa de uma certa maneira. (Não falo da grã-fina atual, que não se assoa, nem usa lenço. Na belle époque, porém, a mulher não tinha esse pudor nasal. Por exemplo: — numa frisa de ópera, uma bela senhora puxava o lenço e, diante da platéia interessada, assoava-se com um som de trombeta. Era sublime).
Já as gerações seguintes tinham outros escrúpulos e recatos. E uma bonita senhora só usava o lenço em último recurso, e quando a coriza já pingava. Mas não havia o som comprometedor. Em nossos dias, chegamos à solução ideal: — uma grã-fina não usa nem lenço, nem som, nem coriza.
Até hoje, que me lembre, não vi nenhuma capa de Manchete com sinusite.
Mas, assim como uma época tem um estilo para se assoar, usa outro para se vestir ou para se despir. Eis a pergunta que me faço: — como se veste ou como se despe a presente geração? A rigor, todo mundo está mais interessado em se despir. Vivemos a mais despida das épocas.
Na minha infância profunda, o Brasil inteiro cantava uma modinha que, entre outros, tinha o seguinte verso: "Cobre, me cobre, que eu tenho frio". Ah, eu andava pelos quatro, cinco anos. Não percebia a insinuação erótica, nem desconfiava que havia, ali, uma nudez confessa. "Cobre, me cobre, que eu tenho frio." Hoje, nenhuma menina ou senhora está interessada em se cobrir. A nudez feminina perdeu todo o suspense e todo o mistério.
Nas minhas Memórias contei um dos mais violentos traumas de minha infância. Foi numa batalha de confete da praça Saenz Peña. Teria seis anos, ou cinco, talvez. Cinco. Em cima do meio-fio, atracado às saias de uma vizinha, eu espiava o corso. E, de repente, fez-se, na praça, um silêncio ensurdecedor. Sim, foi um silêncio de se ouvir em toda a cidade. Lá adiante vinha um carro aberto; e, dentro dele, uma odalisca. Mas odalisca era o de menos. Seria bonita, feia, ninguém sabe. O patético é que havia uma abertura na fantasia, um decote abdominal. E, por aí, pela modestíssima nesga de carne — irrompia o cavo umbigo. Daí o assombro total.
Eis o que eu queria dizer: — a primeira nudez que eu vi, na minha vida, foi um umbigo. Há entre mim e essa batalha de confete toda a imensa, espectral distância de meio século. Cinqüenta anos. Pois, até hoje, o umbigo pretérito ainda atropela meus sonhos.
Hoje, a nudez não custa nenhum esforço. Com dois ou três movimentos, qualquer uma se despe. É, se assim posso dizer, uma nudez fulminante. Na época do espartilho, não.
Eu fui, confesso, um menino fascinado pelo espartilho. Já com dez anos, subi, certa vez, no sótão lá de casa. Morávamos, então, em Copacabana, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Na casa do lado, havia um menino chamado Edgard, que é, hoje, se não me engano, engenheiro.
Mas deixemos o Edgard. Subi ao sótão e encontrei lá uma mala cheia de roupas antigas, exatamente roupas da belle époque. No meio de velhas plumas, de chapéus espectrais, descobri um espartilho, cor-de-rosa. Muitos anos depois, escrevi minha peça Vestido de noiva. E a heroína também sobe ao sótão, também abre uma mala da belle époque e também descobre um espartilho. (Mas estou misturando as coisas).
O espartilho explica todo um comportamento feminino. Do mesmo modo, o fraque influía nas maneiras, idéias e sentimentos masculinos. O homem de fraque estava sempre ereto, de fronte alta, como se estivesse ouvindo o Hino Nacional. Não sei se me entendem, mas acho que o espartilho criava entre a mulher e sua nudez, entre a mulher e o pecado, uma distância física e psíquica. Despir-se era um esforço, uma paciência, quase um martírio. E uma bonita senhora deixava de ser uma Ana Karenina — por preguiça.
E outra coisa: — assim como influía nas maneiras e sentimentos da mulher, o espartilho fazia o seu tipo físico.
Pode parecer exagero. Nem tanto, nem tanto. Como se sabe, cada época tem seus quadris típicos. Antes da primeira batalha do Marne e até à primeira batalha do Marne, a brasileira tinha outros flancos. Uma menina de catorze anos precisava pôr-se de perfil para atravessar as portas.
O sujeito olhava a mulher e via, nos seus quadris fortes, uma generosa promessa de fecundidade. Nada mais normal do que uma mulher ter oito filhos. Lembro-me de mães de vinte, 22 filhos. Hoje, a partir dos dez, a mãe recebe um prêmio do Chacrinha, medalha, o diabo. Mas era a brasileira. O casal que parava no primeiro filho arrancava os cabelos de vergonha e frustração.
Em nossos dias, cabe a pergunta alarmada: — onde estão os quadris? Não se pode nem falar em "cadeiras", porque não há mais cadeiras. E, súbito, esbarramos numa realidade surpreendente: — o tipo manequim. Ele se multiplica por toda a parte. Está na PUC, na praia, nos colégios, nas calçadas. A beleza sem quadris, sem peso, sem busto e, numa palavra, o manequim.
Outro dia, um amigo meu, desesperado, bramava: — "A brasileira nunca foi manequim!". Bufei: — "Nunca". Mas tanto eu como o meu amigo somos vencidos, convencidos e humilhados pela evidência. Realmente, a brasileira nunca foi manequim. De Debret para cá e antes e depois de Debret, a brasileira nunca foi manequim. Até há pouquíssimo tempo, não era manequim.
Não era. Um dia, porém, o brasileiro acorda e constata o seguinte: — está namorando um manequim; vai-se casar com um manequim; e, se trair, há de ser com outro manequim. Nas velhas gerações, a brasileira não se parecia com uma alemã, ou uma inglesa, ou uma americana. E, de repente, parece gêmea dos modelos profissionais que posam nas revistas de Londres, Nova York, Paris.
Outro amigo me pergunta se eu não noto menos feminilidade por aí. E, então, eu me lembro de um Rio em que as mulheres tinham um certo halo de histeria. Há anos e anos e eu quase dizia: — há várias gerações que não vejo ninguém desmaiar. Alguém poderá explicar a redução de feminilidade e os pobres quadris de manequim.
Não deixa de ser alarmante para o brasileiro. Tem que namorar, amar, trair ou esquecer a antibrasileira. Sob a pressão de novos usos, novas maneiras, novas idéias, novos sentimentos, a brasileira muda também fisicamente e vira a antibrasileira.
Contei o caso de um amigo, de 45 anos, que amou uma menina de vinte. Ah, nós sabemos o que é uma dessas paixões tardias que levam tudo de roldão, tudo. O meu amigo estava disposto a largar família, fugir, o diabo. Até que, um dia, vai ver a garota e ela o recebe com uma saraivada de palavrões jamais sonhados.
Mais tarde, contando-me o episódio, ele esbravejava: — "Um manequim, um manequim!".
Para ele, a explicação de tudo estava nos quadris estreitos. Não tinha quadris, donde tinha que ser uma impotente do sentimento. Uma antibrasileira.
[12/2/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.