quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Assombrações de Agosto

Chegamos a Arezzo pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas buscando o castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Otero Silva havia comprado naquele rincão idílico da planície toscana.

Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrotadas de turistas.

Após muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a cidade por uma trilha de ciprestes sem indicações viárias, e uma velha pastora de gansos indicou-nos com precisão onde estava o castelo. Antes de se despedir, perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respondemos, pois era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.

- Ainda bem - disse ela -, porque a casa é assombrada.

Minha esposa e eu, que não acreditamos em aparições de meio-dia, debochamos de sua credulidade. Mas nossos dois filhos, de nove e sete anos, ficaram alvoroçados com a idéia de conhecer um fantasma em pessoa.

Miguel Otero Silva, que além de bom escritor era um anfitrião esplêndido e um comilão refinado, nos esperava com um almoço de nunca esquecer. Como havia ficado tarde não tivemos tempo de conhecer o interior do castelo antes de sentarmos à mesa, mas seu aspecto visto de fora não tinha nada de pavoroso, e qualquer inquietação se dissipava com a visão completa da cidade vista do terraço florido onde almoçávamos.

Era difícil acreditar que naquela colina de casas empoleiradas, onde mal cabiam noventa mil pessoas, houvessem nascido tantos homens de gênio perdurável. Ainda assim, Miguel Otero Silva nos disse com seu humor caribenho que nenhum de tantos era o mais insigne de Arezzo.

- O maior - sentenciou - foi Ludovico.

Assim, sem sobrenome: Ludovico, o grande senhor das artes e da guerra, que havia construído aquele castelo de sua desgraça, e de quem Miguel Otero nos falou durante o almoço inteiro. Falou-nos de seu poder imenso, de seu amor contrariado e de sua morte espantosa. Contou-nos como foi que num instante de loucura do coração havia apunhalado sua dama no leito onde tinham acabado de se amar, e depois atiçou contra si mesmo seus ferozes cães de guerra que o despedaçaram a dentadas. Garantiu-nos, muito a sério, que a partir da meia-noite o espectro de Ludovico perambulava pela casa em trevas tentando conseguir sossego em seu purgatório de amor.

O castelo, na realidade, era imenso e sombrio. Mas em pleno dia, com o estômago cheio e o coração contente, o relato de Miguel só podia parecer outra de suas tantas brincadeiras para entreter seus convidados. Os 82 quartos que percorremos sem assombro depois da sesta tinham padecido de todo tipo de mudanças graças aos seus donos sucessivos.

Miguel havia restaurado por completo o primeiro andar e tinha construído para si um dormitório moderno com piso de mármore e instalações para sauna e cultura física, e o terraço de flores imensas onde havíamos almoçado. O segundo andar, que tinha sido o mais usado no curso dos séculos, era uma sucessão de quartos sem nenhuma personalidade, com móveis de diferentes épocas abandonados à própria sorte. Mas no último andar era conservado um quarto intacto por onde o tempo tinha esquecido de passar. Era o dormitório de Ludovico. Foi um instante mágico. Lá estava a cama de cortinas bordadas com fios de ouro, e o cobre-leito de prodígios de passamanarias ainda enrugado pelo sangue seco da amante sacrificada.

Estava a lareira com as cinzas geladas e o último tronco de lenha convertido em pedra, o armário com suas armas bem escovadas, e o retrato a óleo do cavalheiro pensativo numa moldura de ouro, pintado por algum dos mestres florentinos que não teve a sorte de sobreviver ao seu tempo. No entanto, o que mais me impressionou foi o perfume de morangos recentes que permanecia estancado sem explicação possível no ambiente do dormitório.

Os dias de verão são longos e parcimoniosos na Toscana, e o horizonte se mantém em seu lugar até as nove da noite. Quando terminamos de conhecer o castelo eram mais de cinco da tarde, mas Miguel insistiu em levar-nos para ver os afrescos de Piero della Francesca na Igreja de São Francisco, depois tomamos um café com muita conversa debaixo das pérgulas da praça, e quando regressamos para buscar as maletas encontramos a mesa posta. Portanto, ficamos para jantar.

Enquanto jantávamos, debaixo de um céu de malva com uma única estrela, as crianças acenderam algumas tochas na cozinha e foram explorar as trevas nos andares altos. Da mesa ouvíamos seus galopes de cavalos errantes pelas escadarias, os lamentos das portas, os gritos felizes chamando Ludovico nos quartos tenebrosos.

Foi deles a má idéia de ficarmos para dormir. Miguel Otero Silva apoiou-os encantado, e nós não tivemos a coragem civil de dizer que não. Ao contrário do que eu temia, dormimos muito bem, minha esposa e eu num dormitório do andar térreo e meus filhos no quarto contíguo. Ambos haviam sido modernizados e não tinham nada de tenebrosos.

Enquanto tentava conseguir sono contei os doze toques insones do relógio de pêndulo da sala e recordei a advertência pavorosa da pastora de gansos. Mas estávamos tão cansados que dormimos logo, num sono denso e contínuo, e despertei depois das sete com um sol esplêndido entre as trepadeiras da janela. Ao meu lado, minha esposa navegava no mar aprazível dos inocentes.

“Que bobagem”, disse a mim mesmo, “alguém continuar acreditando em fantasmas nestes tempos.” Só então estremeci com o perfume de morangos recém-cortados, e vi a lareira com as cinzas frias e a última lenha convertida em pedra, e o retrato do cavalheiro triste que nos olhava há três séculos por trás na moldura de ouro.

Pois não estávamos na alcova do térreo onde havíamos deitado na noite anterior, e sim no dormitório de Ludovico, debaixo do dossel e das cortinas empoeirentas e dos lençóis empapados de sangue ainda quente de sua cama maldita.

Outubro de 1980.


por Gabriel García Márquez
Leia mais...

Um história horripilante

O capitão Miguel tinha apenas um braço, que lhe servia para ajeitar seu cachimbo. Era um velho lobo do mar, que conheci em Toulon, junto com outros marujos inveterados, numa tarde, tomando um aperitivo no terraço de um café do Dique Velho.

Adquirimos o costume de nos reunir, próximos das taças, das águas alvoroçadas e das lanchas dançarinas, à hora em que o sol se põe na baía de Tamaris.
Os outros quatro velhos lobos do mar se chamavam Zinzin, Dorat - o capitão Dorat-, Bagatela e Chaulieu - aquele vagabundo do Chaulieu. Nem é preciso contar que tinham navegado por todos os mares e que haviam vivido mil aventuras, mas agora, aposentados, matavam o tempo contando histórias horripilantes uns aos outros.

O capitão Miguel era o único que nunca contava coisa alguma e, como o que ouvia não lhe causava nenhum assombro, acabou por exasperar os outros:

- Capitão Miguel, pelo visto nunca lhe aconteceu nenhuma aventura horripilante?

- Sim - respondeu o capitão olhando para mim, que pela primeira vez o via tirar o cachimbo da boca - sim, me aconteceu uma vez!

- Então conte!

- Não!

- Por quê?

- Porque é demasiadamente horrorosa. Vocês não poderiam me escutar; já por algumas vezes tentei contá-la, mas todos se afastavam antes que chegasse ao fim.

Os quatro velhos lobos do mar riram às gargalhadas e concordaram que sem dúvida o capitão Miguel procurava dar muita importância ao fato assustando as pessoas para que não contasse coisa nenhuma porque, talvez, nada de tão horroroso lhe tivesse acontecido.

O capitão fitou-os por alguns instantes, depois, numa atitude insólita de largar o seu cachimbo na mesa, olhou uma a um com os olhos faiscando:

- Senhores - anunciou solenemente - vou lhes contar como perdi o meu braço!

E começou a contar:

- Naquela época, isto há uns vinte e cinco anos, eu tinha em Mourillon uma casinha herdada da minha família, que vivera muito tempo naquele povoado, onde eu nasci. Gostava de descansar, entre as longas viagens, naquele recanto. Me afeiçoei ao local onde a vizinhança, formada de marinheiros e empregados das colônias, era tranqüila e os moradores só se deixavam ver nos finais da tarde. Divertiam-se aos seus modos, fumando ópio com suas amigas e outras atividades que lhe agradavam, mas que não me interessavam. Cada um tem lá seus hábitos, não é mesmo?

"Numa noite precisei alterar meus hábitos de dormir. Um tumulto estranho, cuja natureza eu não conseguia identificar, me fez despertar sobressaltado. Como sempre, minha janela ficava aberta e assombrado eu escutava aquele ruído estranho, que parecia uma mistura de tambor com o ribombar do trovão... Mas que tambor! Mais de duzentas baquetas pareciam martelar, não a pele esticada no tambor, mas a madeira diretamente...

"Este estrépito saía da vivenda em frente, que estava abandonada há cinco anos, onde tinha visto na véspera uma placa: "Vende-se".

"Da janela do meu quarto, minha vista, passando por cima da cerca do jardim que rodeava aquela casa, enxergava todas as portas e janelas, mesmo as do pavimento térreo. Ainda estavam fechadas, como as tinha visto naquele dia. Mas vi luz nos vãos das madeiras do térreo. Quem poderia ter entrado naquela casa abandonada nos arredores de Mourillon? Que bando poderia entrar ali e que malandragem estariam planejando?

"Aquele ruído infernal continuava, sem cessar. Durou até a madrugada, quando no umbral da porta surgiu, com a cabeça descoberta, a criatura mais linda que já vi na minha vida. Graciosa e vestida com trajes de baile, ela carregava uma lanterna, que me permitia ver seus ombros de deusa. Sorria docemente e pude ouvi-la claramente ao se despedir, pois então tudo silenciara:

- "Adeus, querido; até o ano que vem..."

"Mas com quem ela falava? Não me foi possível descobrir porque não vi ninguém perto dela. Esperara, com a lanterna na mão, que a porta do jardim se abrisse e então não vi mais nada. A porta da vivenda se fechou e a escuridão não permitiu que eu visse qualquer coisa.

"Estranhei e admiti que talvez tivesse sonhado, pois tinha a certeza de que era impossível uma pessoa atravessar o jardim sem que eu a visse.

"Fiquei parado junto à janela, sem entender o que tinha acontecido, quando a porta da vivenda se abriu novamente e apareceu a mesma belíssima criatura, ainda sozinha e com a lanterna na mão.

- "Shiuuu!" - disse - "Fiquem calados!... Não vamos acordar o vizinho... eu os acompanho."

"Silenciosa e só, ela atravessou o jardim até a porta, onde batia em cheio a luz da lanterna, tanto que vi perfeitamente o trinco da porta girar, sem que alguém a tocasse. A porta se abriu sozinha, diante da mulher que não demonstrou surpresa. Posso garantir que eu estava colocado de maneira a ver, ao mesmo tempo, o que se passava dos dois lados da porta.

"A 'celestial aparição' acenou com um movimento da cabeça, como se agradecesse à escuridão da noite e depois disse sorrindo:

- "Vá! Adeus! Até o ano que vem!... Meu marido está muito satisfeito. Ninguém faltou à reunião... Adeus, senhores!... "

"Logo várias vozes responderam as saudações, repetindo:

- "Adeus, senhora!... Adeus, senhora!... Até o ano que vem!...

"E como se a misteriosa dama se dispusesse a fechar a porta, ouvi:

- "Por favor, não se incomode!...

"E a porta se fechou sozinha...

"O espaço encheu-se, por um instante, de pios dum bando de passarinhos... cuí... cuí... cuí... e foi como se aquela bela mulher tivesse aberto uma gaiola cheia de pardais.

"Ela então caminhou calmamente para a sua casa, olhando o jardim à sua volta. Ao chegar à vivenda, ela perguntou:

- "Já subiste, Geraldo?

"Não ouvi a resposta, mas a porta da vivenda fechou-se novamente... e poucos minutos depois as luzes se apagaram completamente.

"Às oito da manhã eu ainda permanecia na minha janela contemplando como um bobo o jardim e a vivenda nas quais tinha visto coisas tão singulares naquela noite e que, ante a luz do sol, me parecia uma velha vivenda abandonada.

"Quando falei, com a minha empregada da época, das estranhas cenas que havia presenciado, me acusou de ter fumado algumas cachimbadas a mais. Então aproveitei a oportunidade, pois nunca fumo ópio e já estava cansado daquela mulher que vinha sujar a minha casa durante duas horas por dia, e a despedi. Ainda mais porque no dia seguinte retornaria ao mar.

"Mal tive tempo de arrumar minhas malas, fazer algumas compras, despedir-me dos amigos e tomar o trem para o Havre, onde um novo contrato com a Transatlântica me manteria longe de Toulon por cerca de onze a doze meses.

"Regressei à Mourillon sem ter falado com ninguém a respeito do que havia acontecido, mas não deixei de pensar naquela mulher por um instante. Sua imagem carregando aquela lanterna me perseguia e as palavras de despedida dos amigos ressoavam nos meus ouvidos constantemente:

-"Vá! Adeus!... Até o ano que vem!"

"Pensei naquele encontro todos os dias. Resolvi por minha conta que iria descobrir a chave daquele mistério, custasse o que custasse, que podia levar à loucura um homem como eu que não acredita em aparições ou fantasmas de qualquer tipo.

"Ah! Depressa havia de me convencer de que nem no céu, nem no inferno, tinham qualquer coisa a ver com aquela espantosa aventura..."

O capitão Miguel parou para dar um gole e viu que ouvintes estavam atentos. E continuou:

- Às seis horas da tarde cheguei na minha casa de Mourillon. Era a antevéspera do aniversário da famosa noite. A primeira coisa que fiz ao entrar em casa foi correr à janela do andar superior e abri-la. Então vi uma mulher, de estonteante beleza, passeando calmamente pelo jardim, bem à minha frente, colhendo flores. Com o ruído que fiz, ergueu a cabeça. Era a dama da lanterna! Estava tão linda de dia como na noite em que a vi. Tinha a pele branca como os dentes de um negro do Congo, os olhos tão azuis como o mar de Tamaris e os cabelos loiros tão macios como nenhuma roca já afiou. Por que não confessar? Ao ver aquela mulher, na qual não havia deixado de pensar durante um ano, meu coração acelerou. Ah, não era uma ilusão de uma mente enferma! Estava de fato ali, diante de mim! Pelos seus cuidados, todas as janelas da casa estavam abertas, enfeitadas com flores.

"Então me viu e se mostrou contrariada. Continuou pela alameda principal do seu pequeno jardim e, dando de ombros, conformada, ouvi dizer:

- "Vamos para casa, Geraldo! O tempo está esfriando..."

"Olhei para todos os lados e não vi ninguém. Com que ela falava? Com ninguém... Estaria louca? Não parecia. Vi que ela se dirigiu diretamente para a casa. Fechou a porta atrás de si e, em seguida, todas as janelas.

"Naquela noite não vi nem ouvi mais nada. No dia seguinte, lá pelas dez horas, vi quando ela saiu em traje de passeio, atravessou o jardim, fechou o portão, com a chave, e seguiu o caminho para Toulon. Desci também e, ao primeiro que encontrei, apontei-lhe a elegante silhueta perguntando se sabia o nome daquela mulher.

- "Claro que sim! É a sua vizinha, que mora com o marido na vivenda Makoko. Mudaram-se para ela há um ano, quando o senhor foi embora. São muito esquisitos. Nunca dirigem a palavra a ninguém e não falam senão o necessário. Mas o senhor bem sabe que em Mourillon cada qual vive à sua maneira, sem causar espanto. De modo que o capitão..."

- "Capitão?"

- "Sim, o capitão Geraldo, o marido... Segundo parece, o marido é um capitão aposentado da infantaria da marinha... Bem, ninguém nunca o viu... À vezes, quando tive que levar alguma compra à casa deles e não está a senhora, ouço ele gritar, lá de dentro, mandando deixar as coisas na porta. E para vir buscar as compras, espera que a gente se afaste."

"Como vocês podem compreender, minha curiosidade ia aumentando. Fui a Toulon para interrogar o engenheiro que havia alugado a vivenda ao casal. Também nunca havia visto o marido, mas sabia que se chamava Geraldo Beauvisage. Ao ouvir esse nome quase deixei escapar um grito, pois eu o conhecia muito bem! Era um velho amigo, oficial da infantaria da marinha, e não o via há vinte e cinco anos, desde que saíra de Toulon. Certamente era ele! Agora eu tinha um pretexto para me apresentar em sua casa e cumprimentá-lo, especialmente na data do seu aniversário, quando esperava os amigos.

"Ao regressar a Mourillon vi bem à minha frente o perfil da minha vizinha. Apressei-me para o passo e a cumprimentei.

- "Senhora, tenho a honra de falar com a esposa do capitão Geraldo Beauvisage?"

"Ela continuou como se não tivesse me escutado."

- "Sou seu vizinho, sou o capitão Miguel Albano,"- insisti.

-"Ah!" - exclamou ela. -"Desculpe-me cavalheiro. Capitão Miguel Albano? Meu marido falou muitas vezes do senhor."

"Ela estava perturbada, o que a fazia ainda mais encantadora. Mas eu continuei, a despeito da vontade de se afastar que ela demonstrava.

- "Senhora, como pôde o capitão Beauvisage regressar à França, sem participar ao seu velho amigo? Eu lhe agradeceria se dissesse ao capitão que irei abraçá-lo nesta noite mesmo!"
"Ela não parou nem um instante e agitou-se ainda mais após as minhas palavras. Era uma atitude bastante incomum.

- "Impossível!" - exclamou. - "Impossível Esta noite... Eu prometo que vou dizer ao Geraldo que o vi hoje, mas é a única coisa que posso fazer hoje... O Geraldo não quer ver ninguém... Ninguém mesmo. Vivemos isolados. Alugamos esta casa porque nos disseram que a de frente, a sua, só era ocupada uma ou duas vezes ao ano, durante poucos dias, e que mal se via..."

"E acrescentou, implorando:

- "É importante que perdoe o Geraldo, e por favor, não insista. Nunca vemos ninguém!"

- "Mas senhora," - insisti, contrariado. - "O capitão Geraldo costuma receber alguns amigos e nesta noite esperam os mesmos convivas do ano passado..."

"Ela não conteve um grito:

- "Ah! Isso não é o normal! São amigos excepcionais!"

"Após essas palavras ela se afastou rapidamente, mas parou logo adiante.

- "Pelo amor de Deus! - suplicou. - Pelo amor de Deus não venha nesta noite!"

"Em seguida desapareceu atrás da cerca. Eu entrei na minha casa com o cuidado de não olhar pela janela que dava para o jardim. Mas, escondido, vigiei-os o dia todo, constatando que não saíram de lá o dia todo. Bem antes do amanhecer vi que as janelas foram fechadas e pelas frestas notei aquela mesma luminosidade, tudo o que tinha vislumbrado um ano antes. Faltava apenas o barulho dos trovões e do tambor de madeira.

"Às oito horas me vesti, as últimas palavras da sra. Beauvisage vieram reforçar a minha ansiedade e a decisão de comparecer à festa, certo de que ele não se atreveria me por na rua. Vesti o meu fraque e fiquei na dúvida se levava ou não o meu revólver. Acabei achando tolice carregá-lo e acabei deixando-o em casa.

"A tolice foi não levá-lo.

"Na entrada da vivenda Makoko girei a aldrava, que no ano anterior tinha visto girar sozinha, e surpreendentemente ela se abriu. Estavam, então, esperando alguém...

"Atravessei o pequeno jardim entre os canteiros floridos. Chegando à porta, bati.

- "Entre" - gritou alguém.

"Reconheci a voz de Geraldo e entrei. Cheguei num vestíbulo e avistei o salão iluminado mas sem ninguém. Então chamei-o:

- "Geraldo! Sou eu! Miguel Albano, teu velho caramada!"

- "Ah! Ah Ah! Então se decidiste a vir, meu caro! Neste instante estava dizendo à minha mulher que teria um grande prazer em vê-lo. Mas só a ele e aos nossos amigos excepcionais... Sabe que você não mudou quase nada?"

"Difícil é descrever o meu espanto. Ouvia-o perfeitamente, mas não o via! Sua voz parecia estar ao meu lado, mas junto de mim não havia ninguém! O salão estava completamente vazio!

"A voz continuou:

- "Sente-se! Minha mulher deve vir aí, porque esqueceu de mim em cima da lareira..."

"Então vi, lá em cima do topo da lareira, um busto. Era aquele busto que falava, e parecia o Geraldo. Era um busto como os escultores costumam fazer, sem os braços. Ele continuou a falar:

- "Infelizmente não vou poder te abraçar, meu caro Miguel, porque, como pode ver, não tenho braços, mas você, pode me ajudar e me colocar em cima da mesa. Minha mulher me deixou aqui num momento de mau humor, porque a atrapalhava para limpar a sala. Segundo ela... Ah! Minha mulher é uma maravilha..."

"E o busto riu para valer.

"Tive a impressão de que havia ali, como nos circos, um jogo de espelho que nos fazia crer que homens perfeitos parecessem anões e lindas mulheres se transformassem em verdadeiros monstros. Mas depois de carregá-lo colocando-o sobre a mesa, me convenci que aquele tronco sem braços e pernas era realmente o que restava daquele oficial arrogante que em outros tempos conhecera.

"Dos ombros saíam uns ganchos que permitiam que ele se movimentasse, e até conseguia saltar da mesa para a cadeira e depois para o chão. Saltou durante um tempo, pulando sobre a cadeira e retornou para a mesa, com surpreendente agilidade e alegria. Depois da exibição parou na minha frente, rindo às gargalhadas.

"Consternado, eu não sabia o que fazer e ficava apenas surpreso com aquele malabarismo insólito. Parou na minha frente com um sorriso inquietante:

- "Estou mudado, não é verdade? Não me reconhece, meu caro... Mas fez bem em vir aqui esta noite, vamos nos divertir... Vamos receber nossos amigos excepcionais, porque além desses amigos não quero ver ninguém, nunca mais! Questão de amor-próprio! Pois nem temos empregados... Bom, espere-me aqui, vou vestir um smoking.

"Saiu e a esposa apareceu em seguida. Vestia o mesmo traje de gala do ano passado. Ao me ver empalideceu e me disse a meia voz:

- "Meu Deus, o senhor veio! Fez muito mal, capitão... Passei ao meu marido o recado que me pediu... Mas o senhor veio, apesar do meu pedido! Quando ele soube que o senhor morava aqui em frente me mandou convidá-lo... Mas não fiz isso e tinha bons motivos para não fazer!

"Ela estava bastante confusa e me parecia esconder alguma coisa, quando continuou:

- "Esta noite vamos receber nossos amigos excepcionais, que às vezes são muito impróprios... Fazem muito barulho, discutem... Deve ter ouvido no ano passado! Pois bem, me prometa que sairá bem cedo...

- "Prometo sim, senhora - prometi, com a sensação de que algo de terrível pairava no ar. - Mas poderia me informar por que encontro o capitão nesse estado? Que tragédia lhe ocorreu?

- "Nenhuma , cavalheiro, nenhuma...

- "Como? Nenhuma? A senhora não sabe o que aconteceu com ele para perder suas pernas e braços? Sem dúvida aconteceu depois do seu casamento.

- "Não, senhor! Casei com o capitão como está agora. Mas, por favor me desculpe, tenho que ajudar o meu marido a se vestir, os convidados não devem demorar...

"Deixou-me sozinho, aniquilado por um pensamento: o capitão havia se casado naquele estado! Logo ouvi um ruído, aquele mesmo curioso cuí... cuí... cuí... que me intrigara no ano anterior e que seguia os passos da dama da lanterna até a porta do jardim. O ruído se avolumou até entrar na sala, na forma de quatro carrinhos, cada um trazendo um aleijado, todos eles sem braços e pernas, vestidos em traje de gala, com bordados dourados. Olhavam para mim, dois deles através de seus óculos de ouro, outro, de monóculos, e, o que parecia ter melhor visão, me dirigia um olhar de surpresa e contrariedade. Mas os quatro me saudaram os seus ganchos, perguntando pelo capitão Geraldo e informei que estava se vestindo, acompanhado pela Sra. Beauvisage. Percebi que se surpreenderam ao me referir à senhora com tanta familiaridade; seus olhos se cruzaram carregados de ironia e escarninho.

- "Hum! Hum!" - fez o aleijado de monóculo. - "Pelo visto o senhor é amigo do capitão!

"Todos riram, com boa dose de deboche, e iniciaram a falar quase todos ao mesmo tempo:

- "Queira desculpar, por favor! Oh! É natural que nos surpreenda ao vê-lo na casa deste bizarro capitão que, no dia do seu casamento, jurou retirar-se para o campo e não ver mais ninguém... Ninguém, a não ser os seus "amigos excepcionais". Entende? Quando um homem está todo deformado, como o capitão, é normal que pretenda ficar a sós com a mulher, ainda mais tão linda! É muito natural... muito natural... Mas afinal, se encontrou um amigo decente, mesmo que não seja aleijado, tanto melhor...

"Oh! Meu Deus, como eram estranhos aqueles gnomos!... Eu os fitava, sem dizer uma palavra... E foram chegando outros, de dois em dois, de três em três. Apenas um chegou sozinho. Todos me encaravam com surpresa, insegurança ou ironia.

"Diante de tantos aleijados, eu pensei que fosse enlouquecer. Mas se por um lado eu entendia o fenômeno de união dos aleijados, não conseguia explicação para o relacionamento deles com aquela formosa criatura que chegou a se casar com aquele farrapo humano.

"Parte das minhas dúvidas primárias estavam resolvidas, como por exemplo, que seria impossível alguém passar na estreita alameda do jardim, abrir e fechar o portão sem que pudesse vê-lo da minha janela. E mesmo o trinco da porta não teria mistério se eu soubesse que era acionado por aqueles ganchos invisíveis, como também aquele cuí... cuí... que tanto me intrigara. E, finalmente, aquele ribombo de trovão e o rufar de tambores de madeira que nada mais eram do que o barulho dos carrinhos e daqueles ganchos ao bater no chão, quando se punham a dançar depois do lauto jantar.

"Pois bem, tudo se explicava. Mas este pobre coitado aqui ia se surpreender ainda mais...

"Quando apareceram a sra. Beauvisage e seu marido, a recepção foi uma gritaria ensurdecedora acompanhada de um rufar dos ganchos sobre os carrinhos e o piso. Havia aleijados por todos os cantos, nas cadeiras, nas mesas... Um deles permanecia como um Buda, encarapitado numa prateleira; outro dava saltos incríveis. A maior parte me tratava cortesmente e pareciam pessoas distintas, portando títulos e medalhas. Soube depois que muitos dos nomes eram falsos, o que, para mim, era perfeitamente aceitável. Lord Wilmore era o que melhor se exibia, com sua barba dourada e o belo bigode que alisava com o seu gancho; tinha uma postura nobre e não ficava pulando de um móvel para outro, como os demais, nem dava rasantes como um morcego gigante.

- "Só esperamos o doutor - anunciou a dona da casa, que, de vez em quando me olhava com indisfarçável preocupação, voltando logo a sorrir para os seus convidados.

"Aí chegou o doutor.

"Também era aleijado, mas ainda tinha os dois braços, e ofereceu um deles para acompanhá-la à sala de jantar. Devo explicar que a dona da casa alcançou apenas a ponta dos seus dedos.

"A comida já estava servida, mas as janelas hermeticamente fechadas. Grandes candelabros iluminavam a mesa, cheia de flores e de enfeites. Ruidosamente, os aleijados saltaram para suas cadeiras e começaram a fincar seus ganchos nas travessas. Não era um espetáculo agradável e me deu enjôo ver a voracidade com que aqueles homens-troncos comiam.

"De repente se acalmaram, e com seus ganchos suspensos, se voltaram para a Sra. Beauvisage, que estava ao lado do marido. Ela se inclinava sobre o prato e percebi seu olhar assustado, enquanto ele voltava a bater seus ganchos, agitado, como a pedir silêncio:

- "Bem, meus amigos, tenham paciência... Nem sempre se tem a sorte que tivemos no ano passado! Mas não se preocupem, porque, com um pouco de imaginação, vamos nos divertir ainda mais...

"E olhando nos meus olhos, ergueu seu copo:

- "Saúde! A você, Miguel, e a todos os presentes...

"Todos repetiram seu gesto, agarrando seus copos com seus ganchos, formando uma estranha coreografia. Geraldo ergueu-se o quanto pôde e novamente se dirigiu à mim:

- "Você não está muito a vontade, meu caro! Nos conhecemos quando você era mais alegre e falante. Será que é porque nos vê neste estado? Mas o que esperava? Cada um tem que seguir a vida como pode. Nos reunimos aqui com os amigos para que possamos rir, se lembrando dos tempos felizes, mesmo que tendo nos deixado assim... Não é verdade tripulantes do Dafne? - acrescentou ele voltando-se para o grupo.

O capitão Miguel soltou um suspiro profundo:

- Então o meu antigo companheiro explicou que, viajando no Dafne, um navio a vapor, naufragou nos mares do Extremo Oriente, e, como todos os presentes, se tornou um náufrago. Como toda a tripulação se salvou tomando os botes salva-vidas, todos eles ficaram abandonados numa balsa improvisada.
Dessa vez o capitão arregalou os olhos para expressar a situação em que se encontravam aqueles desgraçados, que se viam repentinamente à própria sorte, sem água e alimento. E continuou:

- Recolheram ainda uma bela jovem, a srta. Madje, depois sra. completando treze pessoas perdidas no mar, sem água doce e alimento. Em oito dias estavam para morrer. Foi então, como na lenda da Nau Catarineta, que resolveram jogar na sorte para ver quem seria sacrificado.

Austero, acrescentou:

- Senhores! Coisas como essas certamente acontecem mais vezes do que se pensa, e o mar deve ter assistido muitas vezes essas antropofagias...

"Então, assim se preparavam para jogar na sorte quando o doutor se manifestou e anunciou que havia conservado o seu estojo de cirurgia e propôs: "Será inútil que um de nós se exponha a ser comido por inteiro. Vamos sortear inicialmente os braços ou as pernas, à escolha, e depois veremos como se apresenta o dia. Talvez surja uma vela no horizonte...

Quando chegou nesse ponto os quatro velhos lobos do mar, que até então não o haviam interrompido, começaram a se manifestar:

- Bravo! Muito bom... Bravo! - falou alto Chaulieu.

- Como? Bravo? - estranhou o capitão.

- Sim! Bravo! É muito boa a sua história. Agora vão ser cortados aos poucos, as pernas, os braços... É realmente uma história boa, mas é que nada tem de horripilante...

- Falando sério? Parece engraçada? - perguntou o capitão, enraivecido. - Pois bem... mas estou certo de que se algum de vocês tivesse ouvido o relato do que aconteceu por aqueles aleijados, cujos olhos brilhavam como vulcões, certamente teriam achado menos engraçado! E se tivessem visto como se agitavam nas suas cadeiras... entrechocando seus ganchos como se estivessem numa festa, alegres e brincalhões! Não vejo coisa mais espantosa e horripilante!

- Espera, - interrompeu Chaulieu. - Não! O teu relato nada tem de horripilante! É simplesmente engraçado porque é lógico. Deixe-me contar o final... Me diga se não é assim... Os da balsa tiraram sorte, que caiu para a mais linda, ou seja, a perna da srta. Madje. Teu amigo, o capitão, que é um homem corajoso e galante, ofereceu a dele e fez cortar os quatro membros para que a jovem permanecesse inteira! Certo?

- Sim, meu amigo, foi isso mesmo... Assim mesmo! - exclamou o capitão Miguel com ganas de arrebentar a cara daqueles que achavam graça naquela história. - Sim... e falta acrescentar que, quando a sorte designou o capitão Geraldo, e se pensou em cortar os da Srta. Madje, porque já não se tinha na balsa outros membros senão os seus, ele deixou-se cortar, rente ao tronco, os cotos que lhe tinham ficado na primeira operação.

- E a srta. Madje nada podia fazer senão lhe oferecer aquela mão que ele tão heroicamente lhe havia conservado - declarou Zinzin.

- Realmente! - rugiu o capitão. - E isso lhes parece engraçado...

- E comeram tudo cru? - perguntou o imbecil do Bagatela.

O capitão deu um soco tão forte na mesa que jogou os copos pela chão.

- Basta! - gritou. - Calem-se! O que contei é só o começo! Agora é que vem o terrível!

Os quatro, que se entreolharam sorrindo, mas ao perceberem, no entanto, que outros se interessavam pelo fim da história, silenciaram.

- Sim, o terrível meus senhores - continuou o capitão Miguel, pausadamente, com um ar sombrio. - O horripilante é que aqueles homens, que foram salvos um mês depois por uma traineira chinesa, conservaram a afeição à carne humana...

Ninguém sorriu dessa vez, ante o olhar tétrico do capitão, que continuou:

- Ao voltarem à Europa, decidiram reunir-se uma vez por ano para renovar o abominável festim! Ah! Meus senhores, logo pude compreender... Percebi a acolhida pouco entusiasta dos pratos que a sra. Beauvisage servia... Apenas as fatias grelhadas de atum foram aceitas com algum prazer, pois como disse o médico, estavam bem cortadas e pelo menos o visual enganava.

"Quando o um dos aleijados comentou que aquela comida não podia se comparar com o 'pedreiro', senti me congelar, porque me lembrei que no ano anterior, naquela época, um pedreiro que caíra dum telhado, fora encontrado sem um dos braços.

"Assim, pude imaginar qual era o papel da minha bela vizinha naqueles banquetes... Me inclinei para observá-la e vi que vestia luvas, que lhe cobriam os braços completamente, e uma capa, que escondia seus ombros. O médico, meu vizinho, que era o único entre todos que possuía braços, também vestiu luvas.

"Reconheço que, ao invés de procurar as razões daquela extravagância, deveria ter seguido os conselhos da sra. Beauvisage. Mas não consegui interpretar seus olhares que pareciam às vezes de carinho, às vezes de compaixão.

"Aqueles homenzinhos agitados faziam uma barulheira com seus ganchos batendo nos copos, vaidosos pelo prazer que usufruíam, ao mesmo tempo em que se recriminavam mutuamente pelos fatos acontecidos. Lord Wilmore chegou a se atracar com o aleijado de monóculo. A dona da casa tentou acalmá-los na medida do possível, esclarecendo que nem sempre se poderia conseguir um banquete como desejavam.

- Oba! - interrompeu Dorat, o velho lobo do mar. - Oba! Isso também é engraçado...

Temi que o capitão se atirasse sobre ele, ainda mais porque os outros três se puseram a cacarejar, numa demonstração de que não estavam acreditando naquela história.

Bufando, o capitão se controlou e dirigiu-se a Dorat:

- Meu caro, ainda tens seus dois braços e não quero que perca um deles, como perdi o meu, só para mostrar que essa história não tem graça nenhuma...

Os amigos se calaram e o capitão continuou:

- Os aleijados tinham bebido muito e alguns deles subiram na mesa e me rodeavam olhando meus braços, o que imediatamente me levou a escondê-los. Na mesma medida, a ferocidade do comportamento deles se acirrou e procurei me afastar da mesa, onde poderia ser alcançado por eles. Bastou esse movimento de recuar a cadeira, se descobrindo sob os punhos da minha camisa a brancura da minha pele, para que dois ganchos afiados se cravassem no meu punho, rasgando a minha carne! Eu apenas lancei um grito lancinante...

- Nossa! Chega capitão! - exclamei, interrompendo-o. - É uma história horripilante mesmo, mas já vou indo porque isso vai me virar o estômago...

- Não senhor! - bradou o capitão. - Agora fique, porque vou terminar a história horripilante que fez rir quatro imbecis...

Olhou para cada um dos quatro velhos lobos do mar, que se asfixiavam com os esforços que faziam para não rir, e continuou:

- Quando se tem sangue de grego nas veias, é para toda a vida... e o que nasceu em Marselha nunca irá acreditar em coisa nenhuma! Assim, estou falando só com você, meu jovem! Não tenha medo que serei brando nos assuntos mais chocantes... afinal, tenho-o como um cavalheiro!

O capitão voltou-se para mim, quase dando as costas para os outros quatro:

- O meu martírio foi tão rápido que só me recordo que todos me cercavam, gritando como selvagens, alguns estimulando e outros reclamando. Tentei escapar, mas fui derrubado... Então senti que aqueles ganchos horríveis rasgavam a minha pele e extraíam a minha carne... como num açougue!

Devo ter feito um gesto de repulsa porque ele imediatamente se desculpou:

- Sim... Sim... vou suprimir detalhes... Como prometi...

Esboçou um sorriso e continuou:

- Aliás, mais detalhes não lhe poderia mesmo dar porque não assisti a operação, pois o médico me aplicou uma mordaça com algodão cloroformizado. Quando voltei à mim, estava na cozinha com um braço a menos... Os aleijados estavam lá, à minha volta e entre eles reinava plena harmonia, sonolentos. Foi horrível constatar que eles estavam me digerindo... Amarrado, largado no piso da cozinha, não podia me mover; ouvia-os apenas. Geraldo, antigo camarada, satisfizera-se e agradeceu-me, sem saber se eu podia ouvi-lo: "Ah! Meu caro Miguel, jamais imaginei que nos daria esse prazer..."

"Não vi a sra. Beauvisage, mas participara do festim, porque a ouvi perguntar a Geraldo:

- "Que tal a sua parte?"

- "Muito boa... Boa mesmo. Já acabei...

"Satisfeitas as suas paixões, aqueles monstros caíram na realidade e compreenderam a gravidade do crime que cometeram e logo partiram estabanadamente. Largaram abertas as portas e desapareceram. Jamais os vi ou ouvi falar deles. Ninguém veio me acudir senão passados quatro dias, quando eu já me aproximava da morte...

"Aqueles miseráveis não me tinham deixado senão os ossos!

por Gaston Leroux
Leia mais...

O silêncio das Sereias

Prova de que até os meios insuficientes - infantis mesmo - podem servir à salvação:

Para se defender das sereias, Ulisses tapou os ouvidos com cera e se fez amarrar ao mastro. Naturalmente - e desde sempre - todos os viajantes poderiam ter feito coisa semelhante, exceto aqueles a quem as sereias já atraíam à distância; mas era sabido no mundo inteiro que isso não podia ajudar em nada.

O canto das sereias penetrava tudo e a paixão dos seduzidos teria rebentado mais que cadeias e mastro. Ulisses porém não pensou nisso, embora talvez tivesse ouvido coisas a esse respeito. Confiou plenamente no punhado de cera e no molho de correntes e, com alegria inocente, foi ao encontro das sereias levando seus pequenos recursos.

As sereias entretanto têm uma arma ainda mais terrível que o canto: o seu silêncio. Apesar de não ter acontecido isso, é imaginável que alguém tenha escapado ao seu canto; mas do silêncio certamente não. Contra o sentimento de ter vencido com as próprias forças e contra a altivez daí resultante - que tudo arrasta consigo - não há na terra o que resista.

E de fato, quando Ulisses chegou, as poderosas cantoras não cantaram, seja porque julgavam que só o silêncio poderia conseguir alguma coisa desse adversário, seja porque o ar de felicidade no rosto de Ulisses - que não pensava em outra coisa a não ser em cera e correntes - as fez esquecer de todo e qualquer canto.

Ulisses no entanto - se é que se pode exprimir assim - não ouviu o seu silêncio, acreditou que elas cantavam e que só ele estava protegido contra o perigo de escutá-las. Por um instante, viu os movimentos dos pescoços, a respiração funda, os olhos cheios de lágrimas, as bocas semiabertas, mas achou que tudo isso estava relacionado com as árias que soavam inaudíveis em torno dele.

Logo, porém, tudo deslizou do seu olhar dirigido para a distância, as sereias literalmente desapareceram diante da sua determinação, e quando ele estava no ponto mais próximo delas, já não as levava em conta.

Mas elas - mais belas do que nunca - esticaram o corpo e se contorceram, deixaram o cabelo horripilante voar livre no vento e distenderam as garras sobre os rochedos. Já não queriam seduzir, desejavam apenas capturar, o mais longamente possível, o brilho do grande par de olhos de Ulisses. Se as sereias tivessem consciência, teriam sido então aniquiladas. Mas permaneceram assim e só Ulisses escapou delas.

De resto, chegou até nós mais um apêndice. Diz-se que Ulisses era tão astucioso, uma raposa tão ladina, que mesmo a deusa do destino não conseguia devassar seu íntimo. Talvez ele tivesse realmente percebido - embora isso não possa ser captado pela razão humana - que as sereias haviam silenciado e se opôs a elas e aos deuses usando como escudo o jogo de aparências acima descrito.

Leia mais...