O
capitão Miguel tinha apenas um braço, que lhe servia para ajeitar seu
cachimbo. Era um velho lobo do mar, que conheci em Toulon, junto com
outros marujos inveterados, numa tarde, tomando um aperitivo no terraço
de um café do Dique Velho.
Adquirimos o costume de nos reunir, próximos das taças, das águas
alvoroçadas e das lanchas dançarinas, à hora em que o sol se põe na
baía de Tamaris.
Os outros quatro velhos lobos do mar se chamavam
Zinzin, Dorat - o capitão Dorat-, Bagatela e Chaulieu - aquele
vagabundo do Chaulieu. Nem é preciso contar que tinham navegado por
todos os mares e que haviam vivido mil aventuras, mas agora,
aposentados, matavam o tempo contando histórias horripilantes uns aos
outros.
O capitão Miguel era o único que nunca contava coisa alguma e, como o
que ouvia não lhe causava nenhum assombro, acabou por exasperar os
outros:
- Capitão Miguel, pelo visto nunca lhe aconteceu nenhuma aventura horripilante?
- Sim - respondeu o capitão olhando para mim, que pela primeira vez o via tirar o cachimbo da boca - sim, me aconteceu uma vez!
- Então conte!
- Não!
- Por quê?
- Porque é demasiadamente horrorosa. Vocês não poderiam me escutar; já
por algumas vezes tentei contá-la, mas todos se afastavam antes que
chegasse ao fim.
Os quatro velhos lobos do mar riram às gargalhadas e concordaram que
sem dúvida o capitão Miguel procurava dar muita importância ao fato
assustando as pessoas para que não contasse coisa nenhuma porque,
talvez, nada de tão horroroso lhe tivesse acontecido.
O capitão fitou-os por alguns instantes, depois, numa atitude insólita
de largar o seu cachimbo na mesa, olhou uma a um com os olhos
faiscando:
- Senhores - anunciou solenemente - vou lhes contar como perdi o meu braço!
E começou a contar:
- Naquela época, isto há uns vinte e cinco anos, eu tinha em Mourillon
uma casinha herdada da minha família, que vivera muito tempo naquele
povoado, onde eu nasci. Gostava de descansar, entre as longas viagens,
naquele recanto. Me afeiçoei ao local onde a vizinhança, formada de
marinheiros e empregados das colônias, era tranqüila e os moradores só
se deixavam ver nos finais da tarde. Divertiam-se aos seus modos,
fumando ópio com suas amigas e outras atividades que lhe agradavam, mas
que não me interessavam. Cada um tem lá seus hábitos, não é mesmo?
"Numa noite precisei alterar meus hábitos de dormir. Um tumulto
estranho, cuja natureza eu não conseguia identificar, me fez despertar
sobressaltado. Como sempre, minha janela ficava aberta e assombrado eu
escutava aquele ruído estranho, que parecia uma mistura de tambor com o
ribombar do trovão... Mas que tambor! Mais de duzentas baquetas
pareciam martelar, não a pele esticada no tambor, mas a madeira
diretamente...
"Este estrépito saía da vivenda em frente, que estava abandonada há
cinco anos, onde tinha visto na véspera uma placa: "Vende-se".
"Da janela do meu quarto, minha vista, passando por cima da cerca do
jardim que rodeava aquela casa, enxergava todas as portas e janelas,
mesmo as do pavimento térreo. Ainda estavam fechadas, como as tinha
visto naquele dia. Mas vi luz nos vãos das madeiras do térreo. Quem
poderia ter entrado naquela casa abandonada nos arredores de Mourillon?
Que bando poderia entrar ali e que malandragem estariam planejando?
"Aquele ruído infernal continuava, sem cessar. Durou até a madrugada,
quando no umbral da porta surgiu, com a cabeça descoberta, a criatura
mais linda que já vi na minha vida. Graciosa e vestida com trajes de
baile, ela carregava uma lanterna, que me permitia ver seus ombros de
deusa. Sorria docemente e pude ouvi-la claramente ao se despedir, pois
então tudo silenciara:
- "Adeus, querido; até o ano que vem..."
"Mas com quem ela falava? Não me foi possível descobrir porque não vi
ninguém perto dela. Esperara, com a lanterna na mão, que a porta do
jardim se abrisse e então não vi mais nada. A porta da vivenda se fechou
e a escuridão não permitiu que eu visse qualquer coisa.
"Estranhei e admiti que talvez tivesse sonhado, pois tinha a certeza de
que era impossível uma pessoa atravessar o jardim sem que eu a visse.
"Fiquei parado junto à janela, sem entender o que tinha acontecido,
quando a porta da vivenda se abriu novamente e apareceu a mesma
belíssima criatura, ainda sozinha e com a lanterna na mão.
- "Shiuuu!" - disse - "Fiquem calados!... Não vamos acordar o vizinho... eu os acompanho."
"Silenciosa e só, ela atravessou o jardim até a porta, onde batia em
cheio a luz da lanterna, tanto que vi perfeitamente o trinco da porta
girar, sem que alguém a tocasse. A porta se abriu sozinha, diante da
mulher que não demonstrou surpresa. Posso garantir que eu estava
colocado de maneira a ver, ao mesmo tempo, o que se passava dos dois
lados da porta.
"A 'celestial aparição' acenou com um movimento da cabeça, como se agradecesse à escuridão da noite e depois disse sorrindo:
- "Vá! Adeus! Até o ano que vem!... Meu marido está muito satisfeito. Ninguém faltou à reunião... Adeus, senhores!... "
"Logo várias vozes responderam as saudações, repetindo:
- "Adeus, senhora!... Adeus, senhora!... Até o ano que vem!...
"E como se a misteriosa dama se dispusesse a fechar a porta, ouvi:
- "Por favor, não se incomode!...
"E a porta se fechou sozinha...
"O espaço encheu-se, por um instante, de pios dum bando de
passarinhos... cuí... cuí... cuí... e foi como se aquela bela mulher
tivesse aberto uma gaiola cheia de pardais.
"Ela então caminhou calmamente para a sua casa, olhando o jardim à sua volta. Ao chegar à vivenda, ela perguntou:
- "Já subiste, Geraldo?
"Não ouvi a resposta, mas a porta da vivenda fechou-se novamente... e poucos minutos depois as luzes se apagaram completamente.
"Às oito da manhã eu ainda permanecia na minha janela contemplando como
um bobo o jardim e a vivenda nas quais tinha visto coisas tão
singulares naquela noite e que, ante a luz do sol, me parecia uma velha
vivenda abandonada.
"Quando falei, com a minha empregada da época, das estranhas cenas que
havia presenciado, me acusou de ter fumado algumas cachimbadas a mais.
Então aproveitei a oportunidade, pois nunca fumo ópio e já estava
cansado daquela mulher que vinha sujar a minha casa durante duas horas
por dia, e a despedi. Ainda mais porque no dia seguinte retornaria ao
mar.
"Mal tive tempo de arrumar minhas malas, fazer algumas compras,
despedir-me dos amigos e tomar o trem para o Havre, onde um novo
contrato com a Transatlântica me manteria longe de Toulon por cerca de
onze a doze meses.
"Regressei à Mourillon sem ter falado com ninguém a respeito do que
havia acontecido, mas não deixei de pensar naquela mulher por um
instante. Sua imagem carregando aquela lanterna me perseguia e as
palavras de despedida dos amigos ressoavam nos meus ouvidos
constantemente:
-"Vá! Adeus!... Até o ano que vem!"
"Pensei naquele encontro todos os dias. Resolvi por minha conta que
iria descobrir a chave daquele mistério, custasse o que custasse, que
podia levar à loucura um homem como eu que não acredita em aparições ou
fantasmas de qualquer tipo.
"Ah! Depressa havia de me convencer de que nem no céu, nem no inferno,
tinham qualquer coisa a ver com aquela espantosa aventura..."
O capitão Miguel parou para dar um gole e viu que ouvintes estavam atentos. E continuou:
- Às seis horas da tarde cheguei na minha casa de Mourillon. Era a
antevéspera do aniversário da famosa noite. A primeira coisa que fiz ao
entrar em casa foi correr à janela do andar superior e abri-la. Então
vi uma mulher, de estonteante beleza, passeando calmamente pelo jardim,
bem à minha frente, colhendo flores. Com o ruído que fiz, ergueu a
cabeça. Era a dama da lanterna! Estava tão linda de dia como na noite em
que a vi. Tinha a pele branca como os dentes de um negro do Congo, os
olhos tão azuis como o mar de Tamaris e os cabelos loiros tão macios
como nenhuma roca já afiou. Por que não confessar? Ao ver aquela mulher,
na qual não havia deixado de pensar durante um ano, meu coração
acelerou. Ah, não era uma ilusão de uma mente enferma! Estava de fato
ali, diante de mim! Pelos seus cuidados, todas as janelas da casa
estavam abertas, enfeitadas com flores.
"Então me viu e se mostrou contrariada. Continuou pela alameda
principal do seu pequeno jardim e, dando de ombros, conformada, ouvi
dizer:
- "Vamos para casa, Geraldo! O tempo está esfriando..."
"Olhei para todos os lados e não vi ninguém. Com que ela falava? Com
ninguém... Estaria louca? Não parecia. Vi que ela se dirigiu diretamente
para a casa. Fechou a porta atrás de si e, em seguida, todas as
janelas.
"Naquela noite não vi nem ouvi mais nada. No dia seguinte, lá pelas dez
horas, vi quando ela saiu em traje de passeio, atravessou o jardim,
fechou o portão, com a chave, e seguiu o caminho para Toulon. Desci
também e, ao primeiro que encontrei, apontei-lhe a elegante silhueta
perguntando se sabia o nome daquela mulher.
- "Claro que sim! É a sua vizinha, que mora com o marido na vivenda
Makoko. Mudaram-se para ela há um ano, quando o senhor foi embora. São
muito esquisitos. Nunca dirigem a palavra a ninguém e não falam senão o
necessário. Mas o senhor bem sabe que em Mourillon cada qual vive à
sua maneira, sem causar espanto. De modo que o capitão..."
- "Capitão?"
- "Sim, o capitão Geraldo, o marido... Segundo parece, o marido é um
capitão aposentado da infantaria da marinha... Bem, ninguém nunca o
viu... À vezes, quando tive que levar alguma compra à casa deles e não
está a senhora, ouço ele gritar, lá de dentro, mandando deixar as coisas
na porta. E para vir buscar as compras, espera que a gente se afaste."
"Como vocês podem compreender, minha curiosidade ia aumentando. Fui a
Toulon para interrogar o engenheiro que havia alugado a vivenda ao
casal. Também nunca havia visto o marido, mas sabia que se chamava
Geraldo Beauvisage. Ao ouvir esse nome quase deixei escapar um grito,
pois eu o conhecia muito bem! Era um velho amigo, oficial da infantaria
da marinha, e não o via há vinte e cinco anos, desde que saíra de
Toulon. Certamente era ele! Agora eu tinha um pretexto para me
apresentar em sua casa e cumprimentá-lo, especialmente na data do seu
aniversário, quando esperava os amigos.
"Ao regressar a Mourillon vi bem à minha frente o perfil da minha vizinha. Apressei-me para o passo e a cumprimentei.
- "Senhora, tenho a honra de falar com a esposa do capitão Geraldo Beauvisage?"
"Ela continuou como se não tivesse me escutado."
- "Sou seu vizinho, sou o capitão Miguel Albano,"- insisti.
-"Ah!" - exclamou ela. -"Desculpe-me cavalheiro. Capitão Miguel Albano? Meu marido falou muitas vezes do senhor."
"Ela estava perturbada, o que a fazia ainda mais encantadora. Mas eu
continuei, a despeito da vontade de se afastar que ela demonstrava.
- "Senhora, como pôde o capitão Beauvisage regressar à França, sem
participar ao seu velho amigo? Eu lhe agradeceria se dissesse ao capitão
que irei abraçá-lo nesta noite mesmo!"
"Ela não parou nem um instante e agitou-se ainda mais após as minhas palavras. Era uma atitude bastante incomum.
- "Impossível!" - exclamou. - "Impossível Esta noite... Eu prometo que
vou dizer ao Geraldo que o vi hoje, mas é a única coisa que posso fazer
hoje... O Geraldo não quer ver ninguém... Ninguém mesmo. Vivemos
isolados. Alugamos esta casa porque nos disseram que a de frente, a sua,
só era ocupada uma ou duas vezes ao ano, durante poucos dias, e que
mal se via..."
"E acrescentou, implorando:
- "É importante que perdoe o Geraldo, e por favor, não insista. Nunca vemos ninguém!"
- "Mas senhora," - insisti, contrariado. - "O capitão Geraldo costuma
receber alguns amigos e nesta noite esperam os mesmos convivas do ano
passado..."
"Ela não conteve um grito:
- "Ah! Isso não é o normal! São amigos excepcionais!"
"Após essas palavras ela se afastou rapidamente, mas parou logo adiante.
- "Pelo amor de Deus! - suplicou. - Pelo amor de Deus não venha nesta noite!"
"Em seguida desapareceu atrás da cerca. Eu entrei na minha casa com o
cuidado de não olhar pela janela que dava para o jardim. Mas, escondido,
vigiei-os o dia todo, constatando que não saíram de lá o dia todo. Bem
antes do amanhecer vi que as janelas foram fechadas e pelas frestas
notei aquela mesma luminosidade, tudo o que tinha vislumbrado um ano
antes. Faltava apenas o barulho dos trovões e do tambor de madeira.
"Às oito horas me vesti, as últimas palavras da sra. Beauvisage vieram
reforçar a minha ansiedade e a decisão de comparecer à festa, certo de
que ele não se atreveria me por na rua. Vesti o meu fraque e fiquei na
dúvida se levava ou não o meu revólver. Acabei achando tolice
carregá-lo e acabei deixando-o em casa.
"A tolice foi não levá-lo.
"Na entrada da vivenda Makoko girei a aldrava, que no ano anterior
tinha visto girar sozinha, e surpreendentemente ela se abriu. Estavam,
então, esperando alguém...
"Atravessei o pequeno jardim entre os canteiros floridos. Chegando à porta, bati.
- "Entre" - gritou alguém.
"Reconheci a voz de Geraldo e entrei. Cheguei num vestíbulo e avistei o salão iluminado mas sem ninguém. Então chamei-o:
- "Geraldo! Sou eu! Miguel Albano, teu velho caramada!"
- "Ah! Ah Ah! Então se decidiste a vir, meu caro! Neste instante estava
dizendo à minha mulher que teria um grande prazer em vê-lo. Mas só a
ele e aos nossos amigos excepcionais... Sabe que você não mudou quase
nada?"
"Difícil é descrever o meu espanto. Ouvia-o perfeitamente, mas não o
via! Sua voz parecia estar ao meu lado, mas junto de mim não havia
ninguém! O salão estava completamente vazio!
"A voz continuou:
- "Sente-se! Minha mulher deve vir aí, porque esqueceu de mim em cima da lareira..."
"Então vi, lá em cima do topo da lareira, um busto. Era aquele busto
que falava, e parecia o Geraldo. Era um busto como os escultores
costumam fazer, sem os braços. Ele continuou a falar:
- "Infelizmente não vou poder te abraçar, meu caro Miguel, porque, como
pode ver, não tenho braços, mas você, pode me ajudar e me colocar em
cima da mesa. Minha mulher me deixou aqui num momento de mau humor,
porque a atrapalhava para limpar a sala. Segundo ela... Ah! Minha mulher
é uma maravilha..."
"E o busto riu para valer.
"Tive a impressão de que havia ali, como nos circos, um jogo de espelho
que nos fazia crer que homens perfeitos parecessem anões e lindas
mulheres se transformassem em verdadeiros monstros. Mas depois de
carregá-lo colocando-o sobre a mesa, me convenci que aquele tronco sem
braços e pernas era realmente o que restava daquele oficial arrogante
que em outros tempos conhecera.
"Dos ombros saíam uns ganchos que permitiam que ele se movimentasse, e
até conseguia saltar da mesa para a cadeira e depois para o chão.
Saltou durante um tempo, pulando sobre a cadeira e retornou para a
mesa, com surpreendente agilidade e alegria. Depois da exibição parou
na minha frente, rindo às gargalhadas.
"Consternado, eu não sabia o que fazer e ficava apenas surpreso com
aquele malabarismo insólito. Parou na minha frente com um sorriso
inquietante:
- "Estou mudado, não é verdade? Não me reconhece, meu caro... Mas fez
bem em vir aqui esta noite, vamos nos divertir... Vamos receber nossos
amigos excepcionais, porque além desses amigos não quero ver ninguém,
nunca mais! Questão de amor-próprio! Pois nem temos empregados... Bom,
espere-me aqui, vou vestir um smoking.
"Saiu e a esposa apareceu em seguida. Vestia o mesmo traje de gala do ano passado. Ao me ver empalideceu e me disse a meia voz:
- "Meu Deus, o senhor veio! Fez muito mal, capitão... Passei ao meu
marido o recado que me pediu... Mas o senhor veio, apesar do meu pedido!
Quando ele soube que o senhor morava aqui em frente me mandou
convidá-lo... Mas não fiz isso e tinha bons motivos para não fazer!
"Ela estava bastante confusa e me parecia esconder alguma coisa, quando continuou:
- "Esta noite vamos receber nossos amigos excepcionais, que às vezes
são muito impróprios... Fazem muito barulho, discutem... Deve ter
ouvido no ano passado! Pois bem, me prometa que sairá bem cedo...
- "Prometo sim, senhora - prometi, com a sensação de que algo de
terrível pairava no ar. - Mas poderia me informar por que encontro o
capitão nesse estado? Que tragédia lhe ocorreu?
- "Nenhuma , cavalheiro, nenhuma...
- "Como? Nenhuma? A senhora não sabe o que aconteceu com ele para
perder suas pernas e braços? Sem dúvida aconteceu depois do seu
casamento.
- "Não, senhor! Casei com o capitão como está agora. Mas, por favor me
desculpe, tenho que ajudar o meu marido a se vestir, os convidados não
devem demorar...
"Deixou-me sozinho, aniquilado por um pensamento: o capitão havia se
casado naquele estado! Logo ouvi um ruído, aquele mesmo curioso cuí...
cuí... cuí... que me intrigara no ano anterior e que seguia os passos
da dama da lanterna até a porta do jardim. O ruído se avolumou até
entrar na sala, na forma de quatro carrinhos, cada um trazendo um
aleijado, todos eles sem braços e pernas, vestidos em traje de gala,
com bordados dourados. Olhavam para mim, dois deles através de seus
óculos de ouro, outro, de monóculos, e, o que parecia ter melhor visão,
me dirigia um olhar de surpresa e contrariedade. Mas os quatro me
saudaram os seus ganchos, perguntando pelo capitão Geraldo e informei
que estava se vestindo, acompanhado pela Sra. Beauvisage. Percebi que
se surpreenderam ao me referir à senhora com tanta familiaridade; seus
olhos se cruzaram carregados de ironia e escarninho.
- "Hum! Hum!" - fez o aleijado de monóculo. - "Pelo visto o senhor é amigo do capitão!
"Todos riram, com boa dose de deboche, e iniciaram a falar quase todos ao mesmo tempo:
- "Queira desculpar, por favor! Oh! É natural que nos surpreenda ao
vê-lo na casa deste bizarro capitão que, no dia do seu casamento, jurou
retirar-se para o campo e não ver mais ninguém... Ninguém, a não ser
os seus "amigos excepcionais". Entende? Quando um homem está todo
deformado, como o capitão, é normal que pretenda ficar a sós com a
mulher, ainda mais tão linda! É muito natural... muito natural... Mas
afinal, se encontrou um amigo decente, mesmo que não seja aleijado,
tanto melhor...
"Oh! Meu Deus, como eram estranhos aqueles gnomos!... Eu os fitava, sem
dizer uma palavra... E foram chegando outros, de dois em dois, de três
em três. Apenas um chegou sozinho. Todos me encaravam com surpresa,
insegurança ou ironia.
"Diante de tantos aleijados, eu pensei que fosse enlouquecer. Mas se
por um lado eu entendia o fenômeno de união dos aleijados, não
conseguia explicação para o relacionamento deles com aquela formosa
criatura que chegou a se casar com aquele farrapo humano.
"Parte das minhas dúvidas primárias estavam resolvidas, como por
exemplo, que seria impossível alguém passar na estreita alameda do
jardim, abrir e fechar o portão sem que pudesse vê-lo da minha janela. E
mesmo o trinco da porta não teria mistério se eu soubesse que era
acionado por aqueles ganchos invisíveis, como também aquele cuí...
cuí... que tanto me intrigara. E, finalmente, aquele ribombo de trovão e
o rufar de tambores de madeira que nada mais eram do que o barulho dos
carrinhos e daqueles ganchos ao bater no chão, quando se punham a
dançar depois do lauto jantar.
"Pois bem, tudo se explicava. Mas este pobre coitado aqui ia se surpreender ainda mais...
"Quando apareceram a sra. Beauvisage e seu marido, a recepção foi uma
gritaria ensurdecedora acompanhada de um rufar dos ganchos sobre os
carrinhos e o piso. Havia aleijados por todos os cantos, nas cadeiras,
nas mesas... Um deles permanecia como um Buda, encarapitado numa
prateleira; outro dava saltos incríveis. A maior parte me tratava
cortesmente e pareciam pessoas distintas, portando títulos e medalhas.
Soube depois que muitos dos nomes eram falsos, o que, para mim, era
perfeitamente aceitável. Lord Wilmore era o que melhor se exibia, com
sua barba dourada e o belo bigode que alisava com o seu gancho; tinha
uma postura nobre e não ficava pulando de um móvel para outro, como os
demais, nem dava rasantes como um morcego gigante.
- "Só esperamos o doutor - anunciou a dona da casa, que, de vez em
quando me olhava com indisfarçável preocupação, voltando logo a sorrir
para os seus convidados.
"Aí chegou o doutor.
"Também era aleijado, mas ainda tinha os dois braços, e ofereceu um
deles para acompanhá-la à sala de jantar. Devo explicar que a dona da
casa alcançou apenas a ponta dos seus dedos.
"A comida já estava servida, mas as janelas hermeticamente fechadas.
Grandes candelabros iluminavam a mesa, cheia de flores e de enfeites.
Ruidosamente, os aleijados saltaram para suas cadeiras e começaram a
fincar seus ganchos nas travessas. Não era um espetáculo agradável e me
deu enjôo ver a voracidade com que aqueles homens-troncos comiam.
"De repente se acalmaram, e com seus ganchos suspensos, se voltaram
para a Sra. Beauvisage, que estava ao lado do marido. Ela se inclinava
sobre o prato e percebi seu olhar assustado, enquanto ele voltava a
bater seus ganchos, agitado, como a pedir silêncio:
- "Bem, meus amigos, tenham paciência... Nem sempre se tem a sorte que
tivemos no ano passado! Mas não se preocupem, porque, com um pouco de
imaginação, vamos nos divertir ainda mais...
"E olhando nos meus olhos, ergueu seu copo:
- "Saúde! A você, Miguel, e a todos os presentes...
"Todos repetiram seu gesto, agarrando seus copos com seus ganchos,
formando uma estranha coreografia. Geraldo ergueu-se o quanto pôde e
novamente se dirigiu à mim:
- "Você não está muito a vontade, meu caro! Nos conhecemos quando você
era mais alegre e falante. Será que é porque nos vê neste estado? Mas o
que esperava? Cada um tem que seguir a vida como pode. Nos reunimos
aqui com os amigos para que possamos rir, se lembrando dos tempos
felizes, mesmo que tendo nos deixado assim... Não é verdade tripulantes
do Dafne? - acrescentou ele voltando-se para o grupo.
O capitão Miguel soltou um suspiro profundo:
- Então o meu antigo companheiro explicou que, viajando no Dafne, um
navio a vapor, naufragou nos mares do Extremo Oriente, e, como todos os
presentes, se tornou um náufrago. Como toda a tripulação se salvou
tomando os botes salva-vidas, todos eles ficaram abandonados numa balsa
improvisada.
Dessa vez o capitão arregalou
os olhos para expressar a situação em que se encontravam aqueles
desgraçados, que se viam repentinamente à própria sorte, sem água e
alimento. E continuou:
- Recolheram ainda uma bela jovem, a srta. Madje, depois sra.
completando treze pessoas perdidas no mar, sem água doce e alimento. Em
oito dias estavam para morrer. Foi então, como na lenda da Nau
Catarineta, que resolveram jogar na sorte para ver quem seria
sacrificado.
Austero, acrescentou:
- Senhores! Coisas como essas certamente acontecem mais vezes do que se
pensa, e o mar deve ter assistido muitas vezes essas antropofagias...
"Então, assim se preparavam para jogar na sorte quando o doutor se
manifestou e anunciou que havia conservado o seu estojo de cirurgia e
propôs: "Será inútil que um de nós se exponha a ser comido por inteiro.
Vamos sortear inicialmente os braços ou as pernas, à escolha, e depois
veremos como se apresenta o dia. Talvez surja uma vela no horizonte...
Quando chegou nesse ponto os quatro velhos lobos do mar, que até então não o haviam interrompido, começaram a se manifestar:
- Bravo! Muito bom... Bravo! - falou alto Chaulieu.
- Como? Bravo? - estranhou o capitão.
- Sim! Bravo! É muito boa a sua história. Agora vão ser cortados aos
poucos, as pernas, os braços... É realmente uma história boa, mas é que
nada tem de horripilante...
- Falando sério? Parece engraçada? - perguntou o capitão, enraivecido. -
Pois bem... mas estou certo de que se algum de vocês tivesse ouvido o
relato do que aconteceu por aqueles aleijados, cujos olhos brilhavam
como vulcões, certamente teriam achado menos engraçado! E se tivessem
visto como se agitavam nas suas cadeiras... entrechocando seus ganchos
como se estivessem numa festa, alegres e brincalhões! Não vejo coisa
mais espantosa e horripilante!
- Espera, - interrompeu Chaulieu. - Não! O teu relato nada tem de
horripilante! É simplesmente engraçado porque é lógico. Deixe-me contar
o final... Me diga se não é assim... Os da balsa tiraram sorte, que
caiu para a mais linda, ou seja, a perna da srta. Madje. Teu amigo, o
capitão, que é um homem corajoso e galante, ofereceu a dele e fez
cortar os quatro membros para que a jovem permanecesse inteira! Certo?
- Sim, meu amigo, foi isso mesmo... Assim mesmo! - exclamou o capitão
Miguel com ganas de arrebentar a cara daqueles que achavam graça naquela
história. - Sim... e falta acrescentar que, quando a sorte designou o
capitão Geraldo, e se pensou em cortar os da Srta. Madje, porque já não
se tinha na balsa outros membros senão os seus, ele deixou-se cortar,
rente ao tronco, os cotos que lhe tinham ficado na primeira operação.
- E a srta. Madje nada podia fazer senão lhe oferecer aquela mão que
ele tão heroicamente lhe havia conservado - declarou Zinzin.
- Realmente! - rugiu o capitão. - E isso lhes parece engraçado...
- E comeram tudo cru? - perguntou o imbecil do Bagatela.
O capitão deu um soco tão forte na mesa que jogou os copos pela chão.
- Basta! - gritou. - Calem-se! O que contei é só o começo! Agora é que vem o terrível!
Os quatro, que se entreolharam sorrindo, mas ao perceberem, no entanto,
que outros se interessavam pelo fim da história, silenciaram.
- Sim, o terrível meus senhores - continuou o capitão Miguel,
pausadamente, com um ar sombrio. - O horripilante é que aqueles homens,
que foram salvos um mês depois por uma traineira chinesa, conservaram a
afeição à carne humana...
Ninguém sorriu dessa vez, ante o olhar tétrico do capitão, que continuou:
- Ao voltarem à Europa, decidiram reunir-se uma vez por ano para
renovar o abominável festim! Ah! Meus senhores, logo pude
compreender... Percebi a acolhida pouco entusiasta dos pratos que a
sra. Beauvisage servia... Apenas as fatias grelhadas de atum foram
aceitas com algum prazer, pois como disse o médico, estavam bem
cortadas e pelo menos o visual enganava.
"Quando o um dos aleijados comentou que aquela comida não podia se
comparar com o 'pedreiro', senti me congelar, porque me lembrei que no
ano anterior, naquela época, um pedreiro que caíra dum telhado, fora
encontrado sem um dos braços.
"Assim, pude imaginar qual era o papel da minha bela vizinha naqueles
banquetes... Me inclinei para observá-la e vi que vestia luvas, que lhe
cobriam os braços completamente, e uma capa, que escondia seus ombros. O
médico, meu vizinho, que era o único entre todos que possuía braços,
também vestiu luvas.
"Reconheço que, ao invés de procurar as razões daquela extravagância,
deveria ter seguido os conselhos da sra. Beauvisage. Mas não consegui
interpretar seus olhares que pareciam às vezes de carinho, às vezes de
compaixão.
"Aqueles homenzinhos agitados faziam uma barulheira com seus ganchos
batendo nos copos, vaidosos pelo prazer que usufruíam, ao mesmo tempo
em que se recriminavam mutuamente pelos fatos acontecidos. Lord Wilmore
chegou a se atracar com o aleijado de monóculo. A dona da casa tentou
acalmá-los na medida do possível, esclarecendo que nem sempre se
poderia conseguir um banquete como desejavam.
- Oba! - interrompeu Dorat, o velho lobo do mar. - Oba! Isso também é engraçado...
Temi que o capitão se atirasse sobre ele, ainda mais porque os outros
três se puseram a cacarejar, numa demonstração de que não estavam
acreditando naquela história.
Bufando, o capitão se controlou e dirigiu-se a Dorat:
- Meu caro, ainda tens seus dois braços e não quero que perca um deles,
como perdi o meu, só para mostrar que essa história não tem graça
nenhuma...
Os amigos se calaram e o capitão continuou:
- Os aleijados tinham bebido muito e alguns deles subiram na mesa e me
rodeavam olhando meus braços, o que imediatamente me levou a
escondê-los. Na mesma medida, a ferocidade do comportamento deles se
acirrou e procurei me afastar da mesa, onde poderia ser alcançado por
eles. Bastou esse movimento de recuar a cadeira, se descobrindo sob os
punhos da minha camisa a brancura da minha pele, para que dois ganchos
afiados se cravassem no meu punho, rasgando a minha carne! Eu apenas
lancei um grito lancinante...
- Nossa! Chega capitão! - exclamei, interrompendo-o. - É uma história
horripilante mesmo, mas já vou indo porque isso vai me virar o
estômago...
- Não senhor! - bradou o capitão. - Agora fique, porque vou terminar a história horripilante que fez rir quatro imbecis...
Olhou para cada um dos quatro velhos lobos do mar, que se asfixiavam com os esforços que faziam para não rir, e continuou:
- Quando se tem sangue de grego nas veias, é para toda a vida... e o
que nasceu em Marselha nunca irá acreditar em coisa nenhuma! Assim,
estou falando só com você, meu jovem! Não tenha medo que serei brando
nos assuntos mais chocantes... afinal, tenho-o como um cavalheiro!
O capitão voltou-se para mim, quase dando as costas para os outros quatro:
- O meu martírio foi tão rápido que só me recordo que todos me
cercavam, gritando como selvagens, alguns estimulando e outros
reclamando. Tentei escapar, mas fui derrubado... Então senti que
aqueles ganchos horríveis rasgavam a minha pele e extraíam a minha
carne... como num açougue!
Devo ter feito um gesto de repulsa porque ele imediatamente se desculpou:
- Sim... Sim... vou suprimir detalhes... Como prometi...
Esboçou um sorriso e continuou:
- Aliás, mais detalhes não lhe poderia mesmo dar porque não assisti a
operação, pois o médico me aplicou uma mordaça com algodão
cloroformizado. Quando voltei à mim, estava na cozinha com um braço a
menos... Os aleijados estavam lá, à minha volta e entre eles reinava
plena harmonia, sonolentos. Foi horrível constatar que eles estavam me
digerindo... Amarrado, largado no piso da cozinha, não podia me mover;
ouvia-os apenas. Geraldo, antigo camarada, satisfizera-se e
agradeceu-me, sem saber se eu podia ouvi-lo: "Ah! Meu caro Miguel,
jamais imaginei que nos daria esse prazer..."
"Não vi a sra. Beauvisage, mas participara do festim, porque a ouvi perguntar a Geraldo:
- "Que tal a sua parte?"
- "Muito boa... Boa mesmo. Já acabei...
"Satisfeitas as suas paixões, aqueles monstros caíram na realidade e
compreenderam a gravidade do crime que cometeram e logo partiram
estabanadamente. Largaram abertas as portas e desapareceram. Jamais os
vi ou ouvi falar deles. Ninguém veio me acudir senão passados quatro
dias, quando eu já me aproximava da morte...
"Aqueles miseráveis não me tinham deixado senão os ossos!
por Gaston Leroux