terça-feira, 12 de julho de 2011

Arinete, a mulata

Começou num ônibus de São Gonçalo (RJ). Lá vinha ele sacudindo a carcaça pelos buracos niteroienses, naquele calor da tarde. Os passageiros suados e sonolentos, jogados uns contra os outros, no desagradável conta­to da promiscuidade dos coletivos.

O soldado da Polícia Militar, Aroldo, era o único passageiro cujo coração pul­sava além do indispensável para continuar vivendo até as palpitações de novas esperanças. É que no coração do guarda Aroldo já vivia essa esperança, na figura de Arine­te, mulata boa que Deus a conserve no esplendor de tanta saúde. Nome todo: Arinete da Conceição, como convém as mulatas. E lá ia o velho ônibus de São Gonçalo (RJ), castigado pelos buracos niteroienses.

De vez em quando o braço nu de Arinete encostan­do na farda do Aroldo. Foi quando ela abriu a bolsa para retocar a maquiagem. Ao abri-la o espelhinho preso por dentro revelou lá no fundo a maior 45. Aroldo viu a pisto­la. Meteu o olho no espelhinho de novo e lá estava o refle­xo: a maior 45.

Tinha que cumprir o seu dever e deter a mulata. Ia ser triste, prender aquilo para fins outros que não os que trazia em mente. Mas vem cá: e se prendesse a mulata e depois ficasse amiguinho dela e coisa e tal? Hem? Estava precisando de um pretexto, não estava? Não pensou duas vezes. Deu a voz de prisão e aí foi aquele delírio no Mara­canã. Arinete era boa de tudo, inclusive de bronca. Falou que a arma era dela e daí? Que não era bandida não, mas tinha pistola para se defender dos vagabundos.

A plebe ignara em volta, cansada de tanto assalto, que assalto naquela zona é que nem quadro ruim no Mu­seu de Belas-Artes — tem às pampas — a plebe ignara, eu repito, ficou logo a favor do guarda. Arinete da Concei­ção berrou mais alto: que em carro de radiopatrulha ela fazia um escândalo mas não entrava; que estava quieta no seu canto e ninguém, ouviu?, ninguém podia acusá-la de nada.

Aroldo Soares (o guarda) então propôs: "E se formos de braço dado até a delegacia, como um casal qualquer?" (Palavra de honra, tá aqui no jornal e não me deixa men­tir). Arinete topou e assim foi: braço dado e a maior 45 na bolsa. Ao subdelegado Joel Machado, do 12 Distrito de Niterói, explicou que achara a pistola na rua: "E fiquei com ela pra mim pra proteger minha beleza. Graças a Deus nunca precisei usá-la, mas se for preciso eu uso".

O subdelegado explicou que não podia; a arma tinha que ser confiscada e — depois de sindicar — soube que Arinete tem mesmo ficha limpa. É doméstica correta e seus patrões não têm queixa dela. Foi liberada e saiu bamboleando aquilo tudo de mulata, para o seu domicílio.

Ao guarda Aroldo resta a esperança de muito breve­mente andar de novo de braço dado com Arinete. Já en­tão ela irá desarmada e o casal não estará caminhando rumo ao distrito. De jeito nenhum. Seu destino é outro, seu destino é outro.
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Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Morro da Cruz

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No topo do Morro da Cruz, com as torres das TVs, o restaurante Castelo Montemar


Subimos, nesta ensolarada tarde de sábado, o Morro da Cruz, conhecido acidente geográfico situado praticamente no centro da cidade dos papa-siris. Tem 180 metros de altitude e do seu topo vislumbramos uma belíssima visão da cidade portuária, do encontro das águas do rio Itajaí-Açú com o mar, da cidade de Navegantes e da entrada da Barra (fotos mostrando estes locais no final dessa edição).

Anteriormente chamado de "Morro do Rodi", nome da família que morava no seu topo, desde 1920 passou a se denominar "Morro da Cruz" pois se fincou neste ano a Cruz comemorativa do Primeiro Centenário de Itajaí.

O acesso ao morro é feito a partir de uma estrada próxima à Univali - Universidade do Vale do Itajaí. Este acesso é todo calçado em paralelepípedo, o que facilita e tranquiliza a subida dos visitantes. Há no local um restaurante de pedras, o Castelo Montemar, que funciona esporadicamente sob reserva. Existe também um projeto para construção de um monumento com mirante.

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Parte da cidade portuária de Itajaí e da cidade de Navegantes. Na foto abaixo vemos o encontro das águas do rio Itajaí-Açú com o mar e da entrada da Barra


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Recalcitrante

O trocador olhou, viu, não aprovou. Daquele passageiro, escanchado placidamente no banco lateral, escorria um fio de água que ia compondo, no piso do ônibus, a microfigura de uma piscina.

- Ei, moço, quer fazer o favor de levantar?

O moço (pois ostentava barba e cabeleira amazônica, sinais indiscutíveis de mocidade), nem-te-ligo. O trocador esfregou as mãos no rosto, em gesto de enfado e desânimo, diante de situação tantas vezes enfrentada, e murmurou: - Estes caras são de morte.

Devia estar pensando: todo ano a mesma coisa. Chegando o verão, chegam os problemas. Bem disse o Dario, quando fazia gol no Atlético: problemática demais. Estava cansado de advertir passageiros que não aprendem viajar no coletivo. Não aprendem e não querem aprender. Tendocomprado passagem por 65 centavos, acham que compraram o ônibus e podem fazer dele casa-da-peste. Mas insistiu:

- Moço! O moço!

Nada. Dormia? Olhos abertos, pernas cabeludas, ocupando cada vez mais espaço, ouvia e não respondia. Era preciso tomar providência.

- O senhor aí, cavalheiro, quer cutucar o braço do distinto, pra ele me prestar atenção?

O cavalheiro, vê lá se ia se meter numa dessas. Ignorou, olímpico, a marcha do caso terrestre. Embora sem surpresa, o cobrador coçou a cabeça. Sabia de experiência própria que passageiro nenhum quer entrar numa fria. Ficam de camarote, espiando o circo pegar fogo. Teve pois que sair de seu trono, pobre trono de trocador, fazendo a difícil ginástica de sempre. Bateu no ombro do rapaz:

- Vamos levantar?

O outro mal olhou para ele, do longe de sua distância espiritual. Insistiu:

- Como é, não levanta?

- Estou bem aqui.

- Eu sei, mas é preciso levantar.

- Levantar pra quê?

- Pra que, não. Por quê. Seu calção está molhado de água do mar.

- Tem certeza que é água do mar?

- Tá na cara.

- Como tá na cara? Analisou?

Ferrou-se de paciência para responder:

- Olha, o senhor está de calção de banho, o senhor veio da praia, que água pode essa que está pingando se não for água do mar? Só se...

- Se o quê?

- Nada.

- Vamos, diz o que pensou.

- Não pensei nada. Digo que o senhor tem que levantar porque seu calção está ensopado e vai fazendo uma lagoa aí embaixo.

- E daí?

- Daí, que é proibido.

- Proibido suar?

- Claro que não.

- Pois eu estou suando, sabe? Não posso suar sentado, com esse calorão de janeiro? Tenho que suar de pé?

- Nunca vi suar tanto na minha vida. Desculpe, mas a portaria não permite.

- Que portaria?

- Aquela pregada ali, não está vendo? "O passageiro, ainda que com roupa sobre as vestes de banho molhadas, somente poderá viajar de pé."

- Portaria nenhuma diz que passageiro suado tem que viajar de pé. Papo findo, tá bom?

- O senhor está desrespeitando a portaria e eu tenho que convidar o senhor a descer do ônibus.

- Eu, descer porque estou suado? Sem essa.

- O ônibus vai parar e eu chamo a polícia.

- A polícia vai me prender porque estou suando?

- Vai botar o senhor pra fora porque é um... recalcitrante.

O passageiro pulou, transfigurado: - O quê? Repita, se for capaz.

- Re... calcitrante.

- Te quebro a cara, ouviu? Não admito que ninguém me insulte!

- Eu? Não insultei.

- Insultou, sim. Me chamou de réu. Réu não sei o quê, calcitrante, sei lá o que é isso. Retira a expressão, ou lá vai bolacha.

- Mas é a portaria! A portaria é que diz que o recalcitrante...

- Não tenho nada com a portaria. Tenho é com você, seu cretino. Retira já a expressão, ou...

Retira, não retira, o ônibus chegou ao meu destino e eu paro infalivelmente no meu destino. Fiquei sem saber que conseqüências físicas e outras teve o emprego da palavra "recalcitrante".
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Fonte: CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - De Notícias & Não-Notícias Faz-se a Crônica - 2a. edição - Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1975.
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