segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Prova falsa

No capítulo dos nomes difíceis têm acontecido coisas das mais pitorescas. Ou é um camarada chamado Mimoso, que tem físico de mastodonte, ou é um sujeito fraquinho e insignificante chamado Hércules. Os nomes difíceis, principalmente os nomes tirados de adjetivos condizentes com seus portadores, são raríssimos, e é por isso que minha avó a paterna – dizia:

— Gente honesta, se for homem deve ser José, se for mulher, deve ser Maria!

É verdade que Vovó não tinha nada contra os joões, paulos, mários, odetes e — vá lá — fidélis. A sua implicância era, sobretudo, com nomes inventados, comemorativos de um acontecimento qualquer, como era o caso, muito citado por ela, de uma tal Dona Holofotina, batizada no dia em que inauguraram a luz elétrica na rua em que a família morava.

Acrescente-se também que Vovó não mantinha relações com pessoas de nomes tirados metade da mãe e metade do pai. Jamais perdoou a um velho amigo seu — o “Seu” Wagner — porque se casara com uma senhora chamada Emília, muito respeitável, aliás, mas que tivera o mau-gosto de convencer o marido de batizar o primeiro filho com o nome leguminoso de Wagem — “wag” de Wagner e “em” de Emília.

É verdade que a vagem comum, crua ou ensopada, será sempre com “v”, enquanto o filho de “Seu” Wagner herdara o “w” do pai. Mas isso não tinha nenhuma importância: a consoante não era um detalhe bastante forte para impedir o risinho gozador de todos aqueles que eram apresentados ao menino Wagem.

Mas deixemos de lado as birras de minha avó — velhinha que Deus tenha, em Sua santa glória — e passemos ao estranho caso da família Veiga, que morava pertinho de nossa casa, em tempos idos.

“Seu” Veiga, amante de boa leitura e cuja cachaça era colecionar livros, embora colecionasse também filhos, talvez com a mesma paixão, levou sua mania ao extremo de batizar os rebentos com nomes que tivessem relação com livros. Assim, o mais velho chamou-se Prefácio da Veiga; o segundo, Prólogo; o terceiro, Índice e, sucessivamente, foram nascendo o Tomo, o Capítulo e, por fim, Epílogo da Veiga, caçula do casal.

Lembro-me bem dos filhos de “Seu” Veiga, todos excelentes rapazes, principalmente o Capítulo, sujeito prendado na confecção de balões e papagaios. Até hoje (é verdade que não me tenho dedicado muito na busca) não encontrei ninguém que fizesse um papagaio tão bem quanto Capítulo. Nem balões.

Tomo era um bom extrema-direita e Prefácio pegou o vício do pai – vivia comprando livros. Era, aliás, o filho querido de “Seu” Veiga, pai extremoso, que não admitia piadas. Não tinha o menor senso de humor. Certa vez ficou mesmo de relações estremecidas com meu pai, por causa de uma brincadeira. “Seu” Veiga ia passando pela nossa porta, levando a família para o banho de mar. Iam todos armados de barracas de praia, toalhas etc. Papai estava na janela e, ao saudá-lo, fez a graça:

— Vai levar a biblioteca para o banho? “Seu” Veiga ficou queimado durante muito tempo.

Dona Odete — por alcunha “A Estante” — mãe dos meninos, sofria o desgosto de ter tantos filhos homens e não ter uma menina “para me fazer companhia” – como costumava dizer. Acreditava, inclusive, que aquilo era castigo de Deus, por causa da idéia do marido de botar aqueles nomes nos garotos. Por isso, fez uma promessa: se ainda tivesse uma menina, havia de chamá-la Maria.

As esperanças já estavam quase perdidas. Epílogozinho já tinha oito anos, quando a vontade de Dona Odete tornou-se uma bela realidade, pesando cinco quilos e mamando uma enormidade. Os vizinhos comentaram que “Seu” Veiga não gostou, ainda que se conformasse, com a vinda de mais um herdeiro, só porque já lhe faltavam palavras relacionadas a livros para denominar a criança.

Só meses depois, na hora do batizado, o pai foi informado da antiga promessa. Ficou furioso com a mulher, esbravejou, bufou, mas — bom católico — acabou concordando em parte. E assim, em vez de receber somente o nome suave de Maria, a garotinha foi registrada, no livro da paróquia, após a cerimônia batismal, como Errata Maria da Veiga.

Estava cumprida a promessa de Dona Odete, estava de pé a mania de “Seu” Veiga.


Fonte: Alma Carioca - Arte e Cultura
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Festa de Nossa Senhora dos Navegantes

Em Santa Catarina nas cidades de Balneário Arroio do Silva, Laguna, Balneário Barra do Sul, Ouro, Mondaí, Bombinhas e Navegantes, a devoção à Senhora dos Navegantes é tão expressiva que, por decreto, foram instituídos feriados nestes municípios catarinenses.

Destacando-se a cidade de Navegantes que, primitivamente, pertencia à Itajaí, então habitada por índios carijós. A demarcação de uma sesmaria na praia de Itajaí deu-se por ordem do Conde Resende, Vice-Rei. Foi em 1795 que José Ferreira de Mendonça efetuou a demarcação da Real Fazenda. A comunidade de Navegantes, canonicamente, pertencia à Paróquia do Santíssimo Sacramento de Itajaí.

Em 23 de janeiro de 1896 a "Camara Episcopal de Corytiba" concedia "licença para que no lado esquerdo do Rio grande de Itajahy se possa erigir uma capela sob a invocação de Nª Sª dos Navegantes, de S. Sebastião e de S. Amaro". O Padre Antônio Eising, então Vigário da Paróquia de Itajaí foi quem fez a solicitação.

Recebendo a promulgação oficial, iniciou a construção da Capela, que ficou pronta em 1907 sendo sua inauguração comemorada com três dias de festas: 7, 8 e 9 de setembro daquele ano. Navegantes só foi elevado à categoria de município em 30 de maio de 1962 e, consequentemente a Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes foi elevada a Paróquia.

Por ocasião dos festejos comemorativos aos 25 anos da Paróquia criada, a 19 de julho de 1987, o então Bispo Auxiliar (hoje Arcebispo Metropolitano) da Arquidiocese de Florianópolis, Dom Murilo Sebastião Ramos Krieger, fez a dedicação do Altar e da igreja Matriz. Em 1996, por Decreto da Cúria Metropolitana, a igreja Matriz foi elevada a Santuário Arquidiocesano, sob a invocação de Santuário de Nossa Senhora dos Navegantes.
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Chico Xavier, detetive do Além

Era uma vez um moço ingênuo e feliz, vivendo numa cidadezinha ingênua e feliz, perto de Belo Horizonte. O moço se chamava Francisco Cândido Xavier e não desmentia o nome. A cidadezinha, Pedro Leopoldo, arrastava suas horas de doce paz, entre as missas de domingo e a chegada do trem da capital. Não se sabe como, numa noite ou num dia, Chico se mostrou inquieto e desandou a escrever. Terminando, disse, apenas, à família assustada:

- "Não fui eu. Alguém me empurrava a mão".

Desde esse dia ou essa noite, Chico Xavier perdeu o sossego e também o de sua cidade. Turistas chegavam, atraídos pela fama do moço-profeta. Pedro Leopoldo ia crescendo e Chico Xavier ia ficando importante. Nunca mais teve paz. Nunca mais pode sair pela rua, sem ouvir um pedido de saúde ou uma prece de gratidão. Se ao menos fôsse só isto. Era mais, muito mais. Eram os curiosos do Rio, de São Paulo e de Belo Horizonte, pedindo consultas ou detalhes pelo telefone interurbano. Era a legião de repórteres em busca de novas mensagens. O representante da editôra insistindo por outros livros. Os centros espíritas de todo o país solicitando pormenores. Uma vida infernal, agitada, barulhenta sacudia o pobre rapaz.

As luzes dos lampiões da cidadezinha nunca mais dormiram sem a presença de um estrangeiro, rondando pelas ruas dantes tão sossegadas.

Fixaremos, precisamente, a violenta mudança de vida de Chico Xavier e da cidade de Pedro Leopoldo. Não nos interessa, embora pareça estranho, o medium Chico Xavier, mas a sua vida. Os seus trabalhos psicografados - ou não psicografados - já foram assunto de milhares de histórias, divulgadas desde 1935. Se são reais ou forjadas, decidam os cientistas. Se ele é inocente ou culpado dirão os juízes. Se êle é casto, instruído, bondoso, calmo, diremos nós. Porque não somos detetives do além.

Se os espíritos nos ouvem, eles sabem que não acreditamos em suas mensagens, nem desacreditamos de suas virtudes literárias. A verdade é que não temos a bravura indispensável para avançar sobre o terreno pantanoso do outro mundo e analisar suas reais ou irreais comunicações utilizando aparelhos de escuta com êste pálido e sensitivo Chico Cândido Xavier.

Desde que saímos daqui, levávamos a inabalável determinação de fazer uma reportagem sem complicações, apesar do assunto em sua natureza extra-terrena mostrar-se absolutamente complicado. Assim é que o senhor, amigo, chegará ao fim destas linhas sem obter a certeza que há tanto tempo procura:

"É Chico Xavier um impostor ou não é?" E dirá: - "Não conseguiram desvendar o mistério!" Sim, o mistério continuará por muito tempo. Eternamente. E Chico Xavier morrerá, sem revelar o segredo de sua extraordinária habilidade ao escrever de olhos fechados, se é mágico, ou de seu fantástico virtuosismo, ao chamar, além das fronteiras da vida, as almas dos imortais, fazendo-os recordar os velhos tempos da Academia. Nossa intenção é mostrar o homem. Sem o espírito dentro de si, nos momentos vulgares, Chico Xavier é adorável, cândido, maneiroso, humilde, um anjo de criatura.

A frase de uma vizinha define melhor: - "Sabe, moço? O Chico é um amor". Justamente dêsse tipo desconhecido, da parte anônima de sua devassada vida, é que tratamos, na hora e meia que permanecemos em Pedro Leopoldo. Para começar, diremos que Chico nunca teve uma namorada.

O tempo de viagem de Belo Horizonte a Pedro Leopoldo não vai além de hora e meia. A meio caminho, encontramos a fazenda federal onde Chico Xavier é dactilógrafo. O motorista não quer entrar. - "Aí, não. Até os zebus são atuados". O diretor, Rômulo, está na horta, sòzinho. Ele nos dará, talvez, esclarecimentos sôbre a vida de Chico e, quem sabe, facilitará o encontro com o sensitivo. Ouve o pedido. Depois, lentamente, abana a cabeça e o seu "não" é inflexível, desde o primeiro minuto. Alega um milhão de coisas. Que Chico anda cansado e precisa repousar. Um de nós lembra a possibilidade dele, diretor, dar umas férias a Chico. - "O Chico funcionário nada tem a ver com o outro Chico". Apresentadas as despedidas, êle adverte: - "Não creio que será possível aos senhores um encontro com êle. Creio que vão esperar até sexta-feira".

Voltamos a deslizar pela estrada, neste sábado negro. A cidade aparece depois de uma curva. - "Onde fica a casa do Chico Xavier?" O menino aponta a igreja. - "Ali, na rua da matriz. Ele mora com a família". Encontraríamos, em várias oportunidades, a mesma designação do pessoal do município: êle. Todos apontavam Chico, sem recorrer ao nome. Êle só podia ser êle. - "Minha irmã foi curada por êle".

Ei-lo aqui, diante de nós. Veio a pé da fazenda e em sua companhia um senhor do Rio, que algumas vêzes vem passar semanas com o medium. - "Gosto de falar com êle. É um rapaz de cultura. Discute vários assuntos, lê um pouco de inglês e de francês. Devora os livros com fúria. Trouxe-lhe, há dias, "O homem, êsse desconhecido" e êle não gastou mais de quatro horas e meia para ler o volume gordo. É um prazer para êle. Seu único amor é o espiritismo".

Chico, perto de nós, não está ouvindo a palestra. Conversa com Jean Manzon. Devemos esclarecer que não dissemos qual a organização jornalística em que trabalhávamos. Queríamos ver se o espírito adivinhava. Não houve oportunidade.

Chico parecer ser um bom sujeito. Suas ações, mesmo fora do terreno religioso pròpriamente dito, são ações que o recomendam como alma pura e de nobres sentimentos. Vão dizer, os espíritas, que é natural: todo o espírita dever ser assim. Sei de um que não teve dúvida em abandonar a espôsa, o lar, sete filhos, um dos quais doente do pulmão.

- "Na rua, entre seus irmãos de seita, - disse-me um dos filhos - êle se mostrava esplêndido, generoso, cordial. Em casa, por pouco não botava fogo nas camas, à noite. Parecia um verdadeiro demônio. Guardava até alface no cofre-forte”.

Já o Chico não é assim. Sua nobreza de caráter principia em casa. Todos os seus irmãos e irmãs louvam a sua generosa e invariável linha de conduta, protegendo-os, hora a hora, dia a dia, através dos anos, trabalhando como um mouro. Um de seus sobrinhos sofre de paralisia infantil. Atirado a um berço, chora eternamente. Sòmente o Chico vai lá, fazer companhia ao garôto, às vêzes uma noite inteira.

- Chico!
- Que é, meu senhor?
- Você lê muito?
- Não. Só revistas e jornais.
- O outro disse...
-Disse o quê.
- Nada.

Ele nos olha, surpreso, quando a pergunta, como um busca-pé, sai correndo pela sala:

- Você, não pensa em se casar, Chico?
- Eu, casar? (Dá uma gargalhada) - Claro que não.
- Não namora?
- Nunca.
- Por que?
- Não há razões. Não gosto. Tenho outras preocupações. Ora, eu namorando... Tinha graça...
- Chico...
- Que é?
- É verdade que o padre desafiou você para um duelo verbal?
- Ele disse pra eu ir à igreja discutir. Não é lugar próprio.
- Você gosta do padre, Chico?

E ele, o ingênuo e feliz Chico, respondeu:

- Ué, eu gosto do padre, mas ele não gosta de mim.
- Chico...
- Que é?
- Onde estão suas mensagens?
- Um irmão levou tudo, em vista de tantas complicações.
- Você vai ao Rio?
- Até agora, nada resolvemos. Possìvelmente, mandarei uma procuração.

Numa estante, os livros de Chico. Versos de Guerra Junqueiro, Tolstoi e uma porção de autores mortos. Na sala do lado está a mesa onde êle recebe as mensagens. Uma papelada branca, pronta para ser coberta pelas mensagens do outro mundo. Sexta-feira houve mais uma sessão, desta vez presidida pelo chefe do executivo municipal. Humberto de Campos não compareceu mas o Emanuel, guia de Chico, lá estava. Quem é Emanuel? Um romano que existiu na mesma época de Jesus e conta um mundo de coisas interessantes sôbre a terra, naqueles tampos de há dois mil anos.

- Ele dita?
- Vou psicografando as mensagens. Há outros mediuns, como um norte-americano, que ouve as vozes dos espíritos tão alto que os presentes também escutam. Eu ouço. Os outros, que estão perto, não.
- Chico...
- Que é?
- Já teve oportunidade de falar com espírito de homens célebres?
- Homens célebres?
- Napoleão, para um exemplo, já falou consigo?
- Que eu saiba, não. Os assuntos bélicos não são freqüentes, nas mensagens que recebo do além. Há seis anos, entretanto, meu guia Emanuel previu os principais acontecimentos que hoje revolucionam a terra. Ele disse: - "A vitória da fôrça é fictícia".

O cavalheiro do Rio acode:

- E o próprio Chico, meses antes, previu a queda da Itália. Ele disse, categòricamente, que a Itália seria a primeira a cair. E a Itália foi a primeira a cair.

Pedro Leopoldo é a cidadezinha de uma rua grande e uma porção de ruas pequenas, convergindo para ela como servos humildes do rio principal. A casa de Chico é uma das melhores do lugar. Três quartos, sala e cozinha. O banheiro é lá fora, no fundo do quintal, ao lado do galinheiro.

Chico se levanta de madrugada e vai dar milho às galinhas. Depois, sua irmã solteira faz o café, que êle toma com pão dormido, porque o padeiro ainda não chegou. Apanha a pasta de documentos da fazenda federal, e vai andando pela estrada, ainda coberta pela neblina. Volta para almoçar às onze horas. O expediente se encerra às dezoito horas, mas Chico, nestes dias de maior trabalho, faz serão.

Sua vida é frugal. - "Quero que compreendam o seguinte: não vivo das mensagens de além-túmulo. Tenho necessidade de trabalhar para sustentar minha família. Se quase me dedico inteiramente a receber as comunicações, ainda se entende. O pior, entretanto, é a onda de gente que vem do Rio, de São Paulo e de todos os Estados".

- Peregrinos?
- Mais ou menos. Não posso deixar de recebê-los, pois fico pensando que vieram de longe e necessitam de consôlo. Isto leva tempo, toma tempo. Como se não bastassem essas preocupações, o telefone interurbano não pára dia e noite. - "Chico, Rio está chamando... Chico, Belo Horizonte está chamando... Chico, São Paulo está chamando... Chico, Cachoeira está chamando..." Evito atender, mesmo constrangido. Meu Deus! Eu não quero nada, senão a paz dos tempos antigos, o silêncio de outrora. Quero ser de novo aquêle Chico sossegado e tranqüilo que apenas se preocupava com as coisas simples...
- Impossível a viagem de volta...
- Impossível? Não, não é impossível. Eu voltarei a ser aquêle sossegado Chico. Não tenha dúvida.
O repórter imagina, a essa altura, que ele acredita na possibilidade de suas comunicações, com o além serem repentinamente suspensas. Vai perguntar ao Chico, mas uma senhora de cor negra entra na sala, carregando um benjamim de olhos assustados.

- "Trago para o senhor, Seu Chico..."

Ele segura com trinta mãos, cheio de cuidados, o bebê e o bebê faz um berreiro dos diabos, agita as pernas, sacode as pernas dentro da prisão dos braços de Chico. Ele sorri e devolve o menino à mãe.

- Meu sobrinho - explica o profeta Chico - é nervoso e fica dêste jeito. Sabe por que? Ele sofre de paralisia infantil.
- Não tratam dele?
- Não temos recursos. Já deixei claro que não recebo um centavo pelas edições dos livros que me chegam do além. Assino um documento autorizando a livraria da Federação Espírita Brasileira a editá-los e, sòmente após ficarem impressos, recebo uns cinco ou dez exemplares, para dar aos amigos.

Vamos atravessando a sala e entramos num dos quartos. Na parede, prateleiras repletas de livros. Remédios à base de homeopatia, que Chico recomenda. Não sei porque os espíritos manifestam estranha aversão pela alopatia e suas drogas, receitando sempre combinações homeopáticas. Perto dos vidros, um armário cheio de livros. As obras de guerra conta a Santa Sé, assinadas por Guerra Junqueiro, ainda em vida. Os livros de Flammarion e de Alan Kardec, mas não os psicografados, misturados com volumes de propaganda anticlerical. Na parede, dependurado, um velho pandeiro.

- Quem toca pandeiro nesta casa?

Chico sorri o sorriso beatífico e diz que não é ele.

- Alguns espíritos?

O sorriso beatífico desaparece.

- Os espíritos não tocam pandeiro.

Saímos para a rua, hoje, sábado movimentado. O povo de Pedro Leopoldo passeia diante da Igreja que domina de forma esquisita a casa do humilde psicógrafo que Clementino de Alencar, certo dia, foi roubar de sua vida serena há dez anos. Hoje, Pedro Leopoldo é a Jerusalém do credo de Kardec. Já tem hotel e telefone. O povo de lá, por estranho que possa parecer a quem não conhece pessoalmente o nosso amigo Chico, revela invariável amizade. Será orgulho pela celebridade que ele deu ao município? Sim, porque antes de Chico, Pedro Leopoldo nem existia nos mapas de Minas Gerais. Gostam dele, de seus modos, de sua cara asiática, onde um dos olhos empalideceu sùbitamente, como um farol apagado em pleno caminho da luz.

A cidade tem uns treze mil habitantes, contadas as aldeias próximas, mas, espíritas, uns quatro ou cinco. Todos apreciam Chico, gregos e troianos. Gostam, mas preferem não rezar o seu catecismo. Ele não se importa. Não procura convencer ninguém à força de seu estranho e discutido poder. Quando a carta precatória, intimando-o a depor, chegou a Pedro Leopoldo, Chico leu devagarinho e abanou a cabeça. - "Eu não posso mandar uma intimação judicial às almas!" E não deu mais importância ao caso.

Até à volta, sereno Chico. De todas as pavorosas complicações, você é o menos culpado. Parece uma caixa de fósforo num mar bravio. Uma velha beata de Pedro Leopoldo me disse que isto é castigo: - "Castigo, sim, nhô moço... Antão, êle telefona pro inferno e manda chamar os espíritos e depois num quer se aborrecer?"

Já o trombonista de Pedro Leopoldo deve pensar diferente: - "Por que será que o Chico só sabe receber mensagens escritas? Por que não recebe músicas de Beethoven, de Chopin, de Carlos Gomes?"

Ele, o moço amável de Pedro Leopoldo, não dá maior atenção aos comentários e vai levando como pode a sua vida. É pena, entretanto, que êle não tenha as qualidades artísticas que vão além do terreno literário. Se fôsse assim, Pedro Leopoldo teria, senhores, não apenas o psicógrafo Chico, mas também o músico Chico, o pintor Chico, o profeta Chico. Isto mesmo: o profeta Chico.

O Cruzeiro - 12 de agosto de 1975 - Texto de David Nasser e fotos de Jean Manzon.

Fonte: Memória Viva apresenta: O Cruzeiro.
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