domingo, 2 de outubro de 2011

Velhos espartilhos


Cada época se assoa de uma certa maneira. (Não falo da grã-fina atual, que não se assoa, nem usa lenço. Na belle époque, porém, a mulher não tinha esse pudor nasal. Por exemplo: — numa frisa de ópera, uma bela senhora puxava o lenço e, diante da platéia interessada, assoava-se com um som de trombeta. Era sublime).

Já as gerações seguintes tinham outros escrúpulos e recatos. E uma bonita senhora só usava o lenço em último recurso, e quando a coriza já pingava. Mas não havia o som comprometedor. Em nossos dias, chegamos à solução ideal: — uma grã-fina não usa nem lenço, nem som, nem coriza.

Até hoje, que me lembre, não vi nenhuma capa de Manchete com sinusite.

Mas, assim como uma época tem um estilo para se assoar, usa outro para se vestir ou para se despir. Eis a pergunta que me faço: — como se veste ou como se despe a presente geração? A rigor, todo mundo está mais interessado em se despir. Vivemos a mais despida das épocas.

Na minha infância profunda, o Brasil inteiro cantava uma modinha que, entre outros, tinha o seguinte verso: "Cobre, me cobre, que eu tenho frio". Ah, eu andava pelos quatro, cinco anos. Não percebia a insinuação erótica, nem desconfiava que havia, ali, uma nudez confessa. "Cobre, me cobre, que eu tenho frio." Hoje, nenhuma menina ou senhora está interessada em se cobrir. A nudez feminina perdeu todo o suspense e todo o mistério.

Nas minhas Memórias contei um dos mais violentos traumas de minha infância. Foi numa batalha de confete da praça Saenz Peña. Teria seis anos, ou cinco, talvez. Cinco. Em cima do meio-fio, atracado às saias de uma vizinha, eu espiava o corso. E, de repente, fez-se, na praça, um silêncio ensurdecedor. Sim, foi um silêncio de se ouvir em toda a cidade. Lá adiante vinha um carro aberto; e, dentro dele, uma odalisca. Mas odalisca era o de menos. Seria bonita, feia, ninguém sabe. O patético é que havia uma abertura na fantasia, um decote abdominal. E, por aí, pela modestíssima nesga de carne — irrompia o cavo umbigo. Daí o assombro total.

Eis o que eu queria dizer: — a primeira nudez que eu vi, na minha vida, foi um umbigo. Há entre mim e essa batalha de confete toda a imensa, espectral distância de meio século. Cinqüenta anos. Pois, até hoje, o umbigo pretérito ainda atropela meus sonhos.

Hoje, a nudez não custa nenhum esforço. Com dois ou três movimentos, qualquer uma se despe. É, se assim posso dizer, uma nudez fulminante. Na época do espartilho, não.

Eu fui, confesso, um menino fascinado pelo espartilho. Já com dez anos, subi, certa vez, no sótão lá de casa. Morávamos, então, em Copacabana, na rua Inhangá, nos fundos do Copacabana Palace. Na casa do lado, havia um menino chamado Edgard, que é, hoje, se não me engano, engenheiro.

Mas deixemos o Edgard. Subi ao sótão e encontrei lá uma mala cheia de roupas antigas, exatamente roupas da belle époque. No meio de velhas plumas, de chapéus espectrais, descobri um espartilho, cor-de-rosa. Muitos anos depois, escrevi minha peça Vestido de noiva. E a heroína também sobe ao sótão, também abre uma mala da belle époque e também descobre um espartilho. (Mas estou misturando as coisas).

O espartilho explica todo um comportamento feminino. Do mesmo modo, o fraque influía nas maneiras, idéias e sentimentos masculinos. O homem de fraque estava sempre ereto, de fronte alta, como se estivesse ouvindo o Hino Nacional. Não sei se me entendem, mas acho que o espartilho criava entre a mulher e sua nudez, entre a mulher e o pecado, uma distância física e psíquica. Despir-se era um esforço, uma paciência, quase um martírio. E uma bonita senhora deixava de ser uma Ana Karenina — por preguiça.

E outra coisa: — assim como influía nas maneiras e sentimentos da mulher, o espartilho fazia o seu tipo físico.

Pode parecer exagero. Nem tanto, nem tanto. Como se sabe, cada época tem seus quadris típicos. Antes da primeira batalha do Marne e até à primeira batalha do Marne, a brasileira tinha outros flancos. Uma menina de catorze anos precisava pôr-se de perfil para atravessar as portas.

O sujeito olhava a mulher e via, nos seus quadris fortes, uma generosa promessa de fecundidade. Nada mais normal do que uma mulher ter oito filhos. Lembro-me de mães de vinte, 22 filhos. Hoje, a partir dos dez, a mãe recebe um prêmio do Chacrinha, medalha, o diabo. Mas era a brasileira. O casal que parava no primeiro filho arrancava os cabelos de vergonha e frustração.

Em nossos dias, cabe a pergunta alarmada: — onde estão os quadris? Não se pode nem falar em "cadeiras", porque não há mais cadeiras. E, súbito, esbarramos numa realidade surpreendente: — o tipo manequim. Ele se multiplica por toda a parte. Está na PUC, na praia, nos colégios, nas calçadas. A beleza sem quadris, sem peso, sem busto e, numa palavra, o manequim.

Outro dia, um amigo meu, desesperado, bramava: — "A brasileira nunca foi manequim!". Bufei: — "Nunca". Mas tanto eu como o meu amigo somos vencidos, convencidos e humilhados pela evidência. Realmente, a brasileira nunca foi manequim. De Debret para cá e antes e depois de Debret, a brasileira nunca foi manequim. Até há pouquíssimo tempo, não era manequim.

Não era. Um dia, porém, o brasileiro acorda e constata o seguinte: — está namorando um manequim; vai-se casar com um manequim; e, se trair, há de ser com outro manequim. Nas velhas gerações, a brasileira não se parecia com uma alemã, ou uma inglesa, ou uma americana. E, de repente, parece gêmea dos modelos profissionais que posam nas revistas de Londres, Nova York, Paris.

Outro amigo me pergunta se eu não noto menos feminilidade por aí. E, então, eu me lembro de um Rio em que as mulheres tinham um certo halo de histeria. Há anos e anos e eu quase dizia: — há várias gerações que não vejo ninguém desmaiar. Alguém poderá explicar a redução de feminilidade e os pobres quadris de manequim.

Não deixa de ser alarmante para o brasileiro. Tem que namorar, amar, trair ou esquecer a antibrasileira. Sob a pressão de novos usos, novas maneiras, novas idéias, novos sentimentos, a brasileira muda também fisicamente e vira a antibrasileira.

Contei o caso de um amigo, de 45 anos, que amou uma menina de vinte. Ah, nós sabemos o que é uma dessas paixões tardias que levam tudo de roldão, tudo. O meu amigo estava disposto a largar família, fugir, o diabo. Até que, um dia, vai ver a garota e ela o recebe com uma saraivada de palavrões jamais sonhados.

Mais tarde, contando-me o episódio, ele esbravejava: — "Um manequim, um manequim!".

Para ele, a explicação de tudo estava nos quadris estreitos. Não tinha quadris, donde tinha que ser uma impotente do sentimento. Uma antibrasileira.

[12/2/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sábado, 1 de outubro de 2011

O aniversariante nato

O brasileiro é o aniversariante nato. Nenhum outro povo faz anos com tão larga e cálida efusão. Bem me lembro da minha iniciação jornalística. Bela época em que o dono de jornal era doutor, para todos os efeitos. (Hoje, o último "doutor" da imprensa é o Britto, do Jornal do Brasil). Depois de 30, fui trabalhar em O Tempo.

De 30 para trás, cada jornal novo chamava-se O Tempo. E esse título obsessivo foi o túmulo de não sei quantos matutinos, vespertinos, semanários, mensários etc. etc. Eis o que eu queria contar: — o diretor era, se assim posso dizer, um aniversariante vocacional. Fazia anos de mês em mês. Os redatores promoviam uma vaquinha para o presente; havia discursos; e, depois, tínhamos uma mesa de mãe-benta, queijadinha, empada, pastel etc. etc.

Fiz a introdução acima para chegar ao José Lino Grünewald (belo nome para um jovem oficial afogado no afundamento do Bismarck). Somos amigos, amicíssimos, mas vejam vocês: — a despeito da nossa intimidade, só consigo chamá-lo, por extenso, como num cartão de visitas, de José Lino Grünewald. Eu diria ainda que ele é neopagão, poeta concreto, amigo de Ezra Pound.

Todos os dias, antes de sair de casa, o José Lino Grünewald vai ao guarda-roupa e apanha uma pose. Não uma pose qualquer, intranscendente. O neopagão não se pode comportar como um vago e convencional pai de família. A pose que ele veste, calça e abotoa é a de um cínico, de um amoral, de um perverso. Por outro lado, a soma dos dados já referidos — neopagão, poeta concreto e amigo de Ezra Pound — sugere não sei que abjeções inenarráveis.

Sem nada dizer, para não o humilhar, a verdade é que sempre o julguei um puro. Lembro-me de que, certa vez, chamei um amigo comum, o Francisco Pedro do Coutto, e disse-lhe: — "Quando vejo o José Lino Grünewald, tenho vontade de oferecer-lhe alpiste na mão".

E, com isso, queria dizer que o nosso Grünewald (belo nome naval) é um terno, um manso, portador de não sei quantas virtudes exemplares.

O Francisco Pedro do Coutto ouviu-me e concordou com a idéia do alpiste manual. Mas o que faltava, a mim e ao Coutto, era a evidência das virtudes que atribuíamos ao amigo. Em suma: — precisávamos de um fato sólido, de uma atitude concreta. E, de repente, tudo aconteceu. Imaginem vocês que almoçamos, ontem no Nino, eu, o José Lino Grünewald, o Francisco Pedro do Coutto, o Marcello Soares de Moura e o "Marinheiro Sueco".

E o que notei, ao primeiro olhar, foi a luminosidade escandalosa de José Lino Grünewald. Se ele falava, sentia-se nas suas palavras como que um halo intenso. Seu olhar vazava luz. Eis a pergunta que nos fazíamos, sem lhe achar resposta: — que teria acontecido? Ninguém sabia, só Deus.

Era um neopagão e, pois, um sujeito sem nenhum compromisso com a melancolia. Mas, certa vez, entrei no Correio da Manhã e o surpreendi arriado numa cadeira. Vendo-o pingar tristeza, fui perguntar-lhe: — "Mas que tristeza é essa?". Reagiu: — "Eu sou um dionisíaco". E não teve nem forças para acrescentar à sua tirada um necessário ponto de exclamação.

Citei o episódio para concluir: José Lino Grünewald é sujeito a cavas depressões como qualquer cristão.

E, no almoço, sua presença foi uma festa irresistível. Até que, de repente, anuncia: — "Vou fazer anos dia 13". Nenhum comentário. Deixa passar alguns minutos e insiste:

— "Vou fazer anos dia 13". E nos olhava, aflito, na esperança da reação, que tardava. Berrei então com vários dias de antecedência: — "Gentil aniversariante!". Ele, transfigurado, repetia: — "Pois é. Dia 13, dia 13". Juntou o dado histórico:  — "Nasci numa sexta-feira 13".

Percebi tudo. Diante de nós, estava o brasileiro. Não mais o amigo de Ezra Pound, não mais o poeta concreto, não mais o neopagão. Num único lance, extrovertera toda uma inconfessa verdade interior, toda uma verdade negada. Ali estava o anticínico, o antiamoral, o antiperverso. Era apenas o aniversariante. E, no Brasil, um aniversário jamais é intranscendente.

Estamos longe do dia 13. Pois o José Lino Grünewald, com uma semana de antecedência, anda por aí, trêmulo de felicidade; e já providenciando os salgadinhos, as mães-bentas, os guaranás.

Ai de nós, e, ai de nós. Somos 80 milhões de aniversariantes, e, repito, 80 milhões com alma de aniversariantes. Passo agora a outro assunto. Se a emotividade do nosso Grünewald é tão autêntica, tão brasileira, não posso dizer o mesmo dos rapazes da Escola de Belas-Artes (não falo de todos, mas de um grupo). Vocês conhecem o caso.

Dias atrás, a cidade esbugalhou-se lendo no jornal o seguinte: — rapazes de belas-artes iam queimar, em praça pública, poemas de amor. Ora, o estudante brasileiro nunca foi "isso". De mais a mais, a solenidade projetada era uma cínica imitação nazista. A Alemanha de Hitler queimava livros; aqui, ia-se tocar fogo em poemas de amor e porque eram de amor.

No fim, os rapazes nem coragem tiveram de queimar. Simplesmente, rasgaram os poemas. Alguém dirá que os jovens tinham a atenuante da burrice. Não, não. A burrice que assassina livros não tem perdão. O melhor que se poderia talvez dizer é que os estudantes tinham a coragem cínica e suicida de afrontar toda uma cidade, toda uma população.

E, no entanto, vejam vocês: — os culpados distribuem agora uma circular em que gaguejam explicações e só faltam dizer: — "Nós não tivemos a menor intenção etc. etc.". Pior do que a atitude foi a explicação. Estarei disposto a admitir um canalha que trepe numa mesa e anuncie: — "Meus senhores e minhas senhoras, eu sou um canalha". Um canalha assim translúcido e assim confesso estaria salvo. O pior do canalha é que se quer passar por gentil-homem.

Goebbels, quando viu seu mundo perdido, matou a mulher, seis filhos e se matou. Não estava brincando. Eu aceitaria os tais rapazes de Belas-Artes se, ao menos, tivessem a coragem, a consciência, a fúria do próprio gesto. Se queriam queimar poemas, por que não o fizeram? À última hora, resolveram apenas rasgar. Já essa concessão foi uma vergonha.

Muito bem: — rasgaram. E só porque os jornais meteram o pau, soltam uma circular deprimente. Pareciam uns bárbaros, uns possessos, e me saem uns parnasianos.

Eis o que eu desejaria notar: — o que se procura no bem e no mal é a autenticidade. O José Lino Grünewald vai fazer anos dia 13. Como um brasileiro puro, está numa alegria honrada e profunda. Como já disse, todos nós somos, acima de tudo, aniversariantes.

José Lino Grünewald não trapaceia. E os jovens de belas-artes fazem trapaça. À primeira resistência, caem num pânico profundo. Com um pouquinho mais de pressão, acabam recitando o nosso J. G. de Araújo Jorge, com um piano ao fundo, tocando a Dalila.
[8/2/1968]   
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Os falsos canalhas

Um dos momentos mais patéticos da minha infância foi quando ouvi alguém chamar alguém de "canalha". Note-se: — era a primeira vez. Teria eu que idade? Cinco anos, talvez. Ou menos. Vá lá: — cinco anos. E me crispei de espanto. Minto: — de medo. Foi medo e não espanto.

Para mim, uma palavra estava nascendo, era o nascimento de uma palavra.

Paro de escrever. Por um momento, repito para mim mesmo: — "Canalha, canalha". O som ainda me fascina como na infância. E pergunto a mim mesmo se "o canalha" é uma dimensão obrigatória de cada um. Pode haver alguém que não tenha um mínimo de canalha? Um santo, talvez, ou nem isso. Disse não sei quem que há santos canalhas.

Eis o que eu queria dizer: — o medo dos cinco anos perdura em mim até hoje.

Ainda agora me pergunto se alguém tem o direito de chamar um semelhante de canalha. Poderão objetar que pulha é um insulto equivalente. Ilusão.

Vi um sujeito ser chamado de "pulha". Retrucou ao outro: — "Pulha é você!". E o incidente morreu aí. Dez minutos depois, os dois pulhas estavam, na esquina, bebendo cerveja.

O sujeito pode ser pulha e como tal beber cerveja. Não há incompatibilidade entre o pulha e a cerveja. Mas ninguém pode ser canalha. A simples palavra constrói uma solidão inapelável e eterna.

Eis o que eu queria dizer: — o canalha é o pior solitário. Esse destino de solidão é o seu, eternamente.

Mas tinha eu, como já disse e repeti, cinco anos. Meio século depois, me pediram um programa de televisão.

Recomendaram: — "Coisa original". Tratei de recorrer à minha originalidade. E, então, lembrei-me da cena de Aldeia Campista. Diante de mim estava um sujeito chamando o outro de canalha (e meio século depois, a minha úlcera teve contrações de víbora agonizante). Imediatamente, ocorreu-me a idéia. Liguei para o patrocinador. Disse-lhe: — "Já tenho o título". O anunciante esperou. E eu anunciei: — Os falsos canalhas.

Era o título. Expliquei o resto. Seria uma revisão de valores. No Brasil, como em qualquer país, a história, a glória, a lenda são tecidas de equívocos fatais. Nunca se sabe se o grande homem é grande homem, se o gênio é um débil mental, se a senhora honesta é uma messalina.

Eu queria fazer, justamente, o processo dos nossos falsos canalhas. Assim como há a falsa virtude, existe a falsa abjeção. E os falsos canalhas andam por aí. Nós os encontramos nas primeiras páginas, nos editoriais; ou na boca das esquinas e dos botecos. Estão no parlamento, nos consultórios, nos lares e no banho de mar.

Começaríamos o programa, exatamente, com Roberto Campos. A meu ver, não há, em todo o Brasil, e por toda a nossa história, um falso canalha mais translúcido e mais exemplar. Ou por outra: — era tão canalha como O inimigo do povo, de Ibsen. O herói ibseniano acabou apedrejado como uma adúltera bíblica. E, súbito, ele descobriu que o grande homem é o que está "mais só".

Falei em solidão e já retifico. O falso canalha é mais solitário do que o verdadeiro. O poder foi, para Roberto Campos, a solidão total. Não houve ninguém tão só, não houve ninguém mais só. Queriam matá-lo, simplesmente matá-lo. Vi um pau-d'água berrando: — "Dou um tiro nesse Roberto Campos!". Ao mesmo tempo que dizia isso, pendia- lhe do lábio a baba elástica e bovina do homicida.

E Roberto Campos seria o meu primeiro falso canalha. Mas acabei desistindo do programa e explico. Foi tudo o medo antigo, pueril e insuportável de uma palavra, de um som, de um efeito auditivo. Quando me sentei à máquina para fazer o script do programa e escrevi a palavra canalha, aconteceu isto: — senti a minha úlcera vibrando como uma víbora. Tirei o papel da máquina e o rasguei. Liguei para o patrocinador; disse-lhe: — "Olha. Nada feito. Esse título me dá vômito".

Ao mesmo tempo, prometi a mim mesmo não chamar ninguém, jamais, de canalha. Queria-me parecer que é mais puro o sujeito que nasce, vive, envelhece e morre sem usar, contra outro homem, a mais cruel e inapelável das palavras.

E, no entanto, vejam vocês, nem pensei nas surpresas do mundo.

Eis o caso: — li, ontem, isto é, anteontem, um artigo do dr. Alceu. Sou, não nego, o seu mais fiel e obstinado leitor.

Diga-se de passagem que, quando repasso os seus escritos, caio em frustração e pena. Durante vários anos, tentei ser seu amigo e fracassei. Muito bem: — e que diz em tal artigo o notável pensador católico?

Houve, em Cuba, um congresso, ou coisa que o valha, de quatrocentos intelectuais. E começa o dr. Alceu: — "Não sei, realmente, se os quatrocentos intelectuais reunidos em Cuba se esqueceram ou não de protestar contra o resultado iníquo de mais esse crime contra a liberdade de inteligência que acaba de ser cometido em Moscou". Bem. Em primeiro lugar, ninguém esqueceu" nada.

Os totalitários são insuscetíveis de tais lapsos. Simplesmente, os quatrocentos intelectuais estão inteiramente a favor da polícia soviética e apóiam, de alto a baixo, "mais esse crime".

Mas o que me faz rilhar os dentes de horror é que venha o dr. Alceu, para a imprensa, dizer que "não sabe". Não sabe que, por trás de toda a Cortina de Ferro, e em qualquer regime totalitário, inclusive Cuba, não existe nenhuma liberdade de pensamento, de criação artística, de inteligência ou que seja? E se o dr. Alceu "não sabe", nem desconfia do óbvio ululante, como ousa assinar uma coluna de jornal?

Insisto: — se "não sabe", então que devolva o dinheiro que o dr. Britto lhe paga pela colaboração tão cega e tão surda.

Mas sabe. Aí é que está o grave, o patético, o inconcebível: — o dr. Alceu sabe. Sabe que, há pouco tempo, um poeta foi processado, em Moscou, por vadiagem, e condenado.

Quando lhe perguntaram pela profissão, respondeu: — "Sou poeta". E o juiz, fulminante: — "Isso não é profissão!". A Rússia encarcerou o poeta pelo crime de ser poeta. Aliás, esse juiz não é juiz, mas um tira abjeto.

Insinuará alguém a seguinte hipótese: — o dr. Alceu tem uma boa-fé obtusa. Nem isso. Sabe. E insisto na pergunta: — "E, se sabe, por que vem dizer, de olhos baixos:

— 'Eu não sei'?". Mas, se sabe, não deve nem rezar. O dr. Alceu pode enganar, a mim, ou ao dr. Britto, ou aos seus leitores. Mas não enganará a Deus. Deus também sabe e sabe que o dr. Alceu sabe. Ou achará que Deus é um dr. Britto?

Mas eu direi ao eminente sábio, sob minha palavra de honra:

— Deus não é o dr. Britto. Amém.

O que é que eu ia dizer mais? Já sei. Ia dizer que o dr. Alceu vê a torpeza e não a identifica, vê a podridão e não lhe sente o cheiro.

Direi, por fim, que os quatrocentos intelectuais de Cuba em nada diferem dos oitocentos que, na Rússia, assassinaram Pasternak. São canalhas uns e outros.

[5/2/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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