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quinta-feira, 22 de março de 2012

Os idiotas confessos

Antigamente, o idiota era o idiota. Nenhum ser tão sem mistério e repito: — tão cristalino. O sujeito o identificava, a olho nu, no meio de milhões. E mais: — o primeiro a identificar-se como tal era o próprio idiota. Não sei se me entendem.

No passado, o marido era o último a saber. Sabiam os vizinhos, os credores, os familiares, os conhecidos e os desconhecidos. Só ele, marido, era obtusamente cego para o óbvio ululante. Sim, o traído ia para as esquinas, botecos e retretas gabar a infiel: — "Uma santa! Uma santa!".

Mas o tempo passou. Hoje, dá-se o inverso. O primeiro a saber é o marido. Pode fingir-se de cego. Mas sabe, eis a verdade, sabe. Lembro-me de um que sabia endereço, hora, dia etc. etc. Pois o idiota era o primeiro a saber-se idiota. Não tinha nenhuma ilusão.

E uma das cenas mais fortes que vi, em toda a minha infância, foi a de uma autoflagelação. Um vizinho berrava, atirando rútilas patadas: — "Eu sou um quadrúpede!". Nenhuma objeção. E, então, insistia, heróico: — "Sou um quadrúpede de 28 patas!". Não precisara beber para essa extroversão triunfal. Era um límpido, translúcido idiota. E o imbecil como tal se comportava.

Nascia numa família também de imbecis. Nem os avós, nem os pais, nem os tios, eram piores ou melhores. E, como todos eram idiotas, ninguém pensava. Tinha-se como certo que só uma pequena e seletíssima elite podia pensar. A vida política estava reservada aos "melhores". Só os "melhores", repito, só os "melhores" ousavam o gesto político, o ato político, o pensamento político, a decisão política, o crime político.

Por saber-se idiota, o sujeito babava na gravata de humildade. Na rua, deslizava, rente à parede, envergonhado da própria inépcia e da própria burrice. Não passava do quarto ano primário. E quando cruzava com um dos "melhores", só faltava lamber-lhe as botas como uma cadelinha amestrada. Nunca, nunca o idiota ousaria ler, aprender, estudar, além de limites ferozes. No romance, ia até ao Maria, a desgraçada.

Vejam bem: — o imbecil não se envergonhava de o ser. Havia plena acomodação entre ele e sua insignificância. E admitia que só os "melhores" podem pensar, agir, decidir.

Pois bem. O mundo foi assim, até outro dia. Há coisa de três ou quatro anos, uma telefonista aposentada me dizia: — "Eu não tenho o intelectual muito desenvolvido". Não era queixa, era uma constatação. Santa senhora!

Foi talvez a última idiota confessa do nosso tempo. De repente, os idiotas descobriram que são em maior número. Sempre foram em maior número e não percebiam o óbvio ululante. E mais descobriram: — a vergonhosa inferioridade numérica dos "melhores". Para um "gênio", 800 mil, 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de cretinos.

E, certo dia, um idiota resolveu testar o poder numérico: — trepou num caixote e fez um discurso. Logo se improvisou uma multidão. O orador teve a solidariedade fulminante dos outros idiotas. A multidão crescia como num pesadelo. Em quinze minutos, mugia, ali, uma massa de meio milhão.

Se o orador fosse Cristo, ou Buda, ou Maomé, não teria a audiência de um vira-lata, de um gato vadio. Teríamos de ser cada um de nós um pequeno Cristo, um pequeno Buda, um pequeno Maomé. Outrora, os imbecis faziam platéia para os "superiores". Hoje, não. Hoje, só há platéia para o idiota. É preciso ser idiota indubitável para se ter emprego, salários, atuação, influência, amantes, carros, jóias etc. etc.

Quanto aos "melhores", ou mudam, e imitam os cretinos, ou não sobrevivem. O inglês Wells, que tinha, em todos os seus escritos, uma pose profética, só não previu a "invasão dos idiotas". E, de fato, eles explodem por toda parte: — são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes, a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas.

E, então, os valores da vida começaram a apodrecer.

Sim, estão apodrecendo nas nossas barbas espantadíssimas. As hierarquias vão ruindo como cúpulas de pauzinhos de fósforos. E nem precisamos ampliar muito a nossa visão. Vamos fixar apenas o problema religioso. A Igreja tem uma hierarquia de 2 mil anos. Tal hierarquia precisa ser preservada ou a própria Igreja não dura mais quinze minutos. No dia em que um coroinha começar a questionar o papa, ou Jesus, ou a Virgem Maria, será exatamente o fim.

É o que está acontecendo. Nem se pense que a "invasão dos idiotas" só ocorreu no Brasil. Se fosse uma crise apenas brasileira, cada um de nós podia resmungar: — "Subdesenvolvimento" — e estaria encerrada a questão. Mas é uma realidade mundial. Em que pese a dessemelhança de idioma e paisagem, nada mais parecido com um idiota do que outro idiota. Todos são gêmeos, estejam uns aqui, outros em Cingapura.

Mas eu falava de que mesmo? Ah, da Igreja. Um dia, ao voltar de Roma, o dr. Alceu falou aos jornalistas. E atira, pela janela, 2 mil anos de fé. É pensador, um alto espírito e, pior, uma grande voz católica. Segundo ele, durante os vinte séculos, a Igreja não foi senão uma lacaia das classes dominantes, uma lacaia dos privilégios mais hediondos.

Portanto, a Igreja é o próprio Cinismo, a própria Iniqüidade, a própria Abjeção, a própria Bandalheira (e vai tudo com ainicial maiúscula).

Mas quem diz isso? É o Diabo, em versão do teatro de revista? Não. É uma inteligência, uma cultura, um homem de bem e de fé. De mais a mais, o dr. Alceu tinha acabado de beijar a mão de Sua Santidade. Vinha de Roma, a eterna. E reduz a Igreja a uma vil e gigantesca impostura. Mas se ele o diz, e tem razão, vamos, já, já, fechar a Igreja e confiscar-lhe as pratas.

Cabe então a pergunta: — "O dr. Alceu pensa assim?".

Não. Em outra época, foi um dos "melhores". Mas agora é preciso adular os idiotas, conquistar-lhes o apoio numérico. Hoje, até o gênio se finge imbecil. Nada de ser gênio, santo, herói ou simplesmente homem de bem. Os idiotas não os toleram. E as freiras põem short, maiô e posam para Manchete como se fossem do teatro rebolado.

Por outro lado, d. Hélder quer missa com reco-reco, tamborim, pandeiro e cuíca. É a missa cômica e Jesus fazendo passista de Carlos Machado. Tem mais: — o papa visitará a América Latina. Segundo os jornais, teme-se que o papa seja agredido, assassinado, ultrajado etc. etc.

A imprensa dá a notícia com a maior naturalidade, sem acrescentar ao fato um ponto de exclamação.

São os idiotas, os idiotas, os idiotas.

[19/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Madrugada de 13 de Janeiro

Vou ver o Juarez, no Banco Nacional de Minas Gerais, ali na esquina de Ouvidor com Avenida. Tomo o elevador, salto na sobreloja. E, no corredor, sou recebido com uma saraivada de versos. Um funcionário ergue o gesto e declama:

— "Madrugada de 13 de janeiro / Rezo chorando o ofício da agonia" etc. etc. Perfilo-me como se aquilo fosse, não um soneto, mas o próprio Hino Nacional. E continua o rapaz, trêmulo de beleza: — "Sem um gemido assim como um cordeiro".

E, de repente, instalou-se, naquela sobreloja, o clima de Augusto dos Anjos. Sua tuberculose tossia para mim. O poeta falava da morte do próprio pai. Saíra para o jardim, ou quintal, e achou em tudo "o mesmo abismo de beleza". Depois, pareceu-lhe ver, "como Elias no carro azul de glórias", a alma do pai subir aos céus. Amém.

Quem acabava de declamar era o funcionário da portaria, Francisco Hilton Batista. Sempre que vou ao banco, ele me dispara, à queima-roupa, um soneto. De Bilac, Raimundo ou Augusto. Deste último, prefere a morte do pai, que começa forte e crispada:

— "Madrugada de 13 de janeiro" etc. etc. E a data, atirada na cara do ouvinte, tem um patético insuspeitado e fremente.

Entro para falar com o Juarez. Sou um brasileiro que paga, não as dívidas, mas os juros. E estou tratando justamente de juros quando entra o Batista. Vem com a bandeja e dois cafezinhos. (Eis um dos mistérios do nosso caráter: — não há brasileiro, vivo ou morto, que goste de café; e todos o tomam). Depois de acertar as contas com o Juarez, saio. Paro um momento junto ao Batista. Põe-se de pé e começa:

— "Ainda hoje o livro do passado abrindo, lembro-me e punge-me a lembrança delas". Era o Bilac. O rapaz termina o soneto; digo-lhe: — "Deus te abençoe". E saio para a Avenida. Pensava no velho Brasil.

Houve, sim, o Brasil do soneto. Do soneto e também do fraque e do espartilho. Era o tempo em que o nosso Afrânio Peixoto chamava Baudelaire de torpe realista.

Eis a verdade: — o fraque, o espartilho e o soneto influíam em nossos usos, costumes, maneiras, valores e pudores. O fraque predispunha à ênfase generosa; o espartilho disciplinava as ânsias femininas; e quantas se casavam por um soneto, ou traíam por um soneto?

Enfim, o brasileiro estava sempre a um milímetro do patético e do sublime.

E há o caso daquela bela senhora que amou o amigo do marido. Foi uma dessas paixões de ópera, de novela ou, ainda, de soneto. Combinaram dia, hora e endereço do pecado. Mas ela dizia que ia e, ao mesmo tempo, insinuava um escrúpulo. Confessava: — "Sou muito medrosa". E ele, arquejante de paixão: — "Ou você não gosta de mim?". Ela suspira: — "Gosto. Amo". Mas tinha medo, não do marido, não do pai, não da sociedade. Pausa e novo suspiro: — tinha medo do filho.

Desta vez, o bem-amado perdeu a paciência: — "Medo de um fedelho de três anos?". A Ana Karenina soluçou: — "Se eu for, nunca mais beijarei meu filho!". O garotinho era o seu Juízo Final. Mas ele tantas fez que ela prometeu: — "Está bem. Vou". Ele jurara que o filho não saberia nunca.

Até que chegou a data do pecado. Na véspera, ela deixara o garoto, o Juízo Final, na casa da avó. E já acordou suspirando. Era a belle époque e nunca a brasileira suspirou tanto como na belle époque. Enquanto o marido tomava café, ela, cheia de papelotes na cabeça (era o Brasil do papelote), imaginava: — "Não sabe!". O desgraçado passava manteiga no pão. E, ao mastigar, a manteiga vinha de volta, como uma baba amarela. Ela, varada de remorsos, dizia-lhe: — "Limpa aqui, meu bem!". Arquejante de apetite, o outro limpava-se na própria toalha ou na fralda da camisa. (Como se vê, estou exagerando).

Mas não é nada disso que eu queria dizer. O que eu queria dizer é que o marido foi trabalhar e ela ficou sozinha, com seu pecado. Coincidiu que fazia um calor de rachar catedrais. E faltou água. Ou por outra: — o problema não foi a falta da água. Isso mesmo, não foi a falta da água. Olhava o relógio, numa espécie de terror. Devia estar lá às três e era meio-dia.

Portanto, daí a três horas, ela estaria batendo na porta. Tomou banho. Mas, quando olhou o espartilho, pensou que teria de vesti-lo, de tirá-lo, de vestir e tirar. Começou a sentir um cansaço, um tédio, uma irritação contra o espartilho. E, depois, não era apenas o espartilho, mas o ser amado; e, pouco a pouco, vinha o tédio do próprio pecado.

Pôs-se diante do espelho. Percebia, olhando a própria imagem, que o desejo é triste, que o desejo é vil. Às três horas estava em casa, ainda em casa e para sempre em casa. E foi a preguiça de pôr o espartilho, a preguiça de tirar o espartilho, que a salvou. Dirá alguém que influíram outros fatores secundários, como, por exemplo, o calor. Vá lá o calor. Mas foi o espartilho que começou todo um processo de angústia sufocante.

No dia seguinte, ela passa no armarinho; lá comprou um carretel. Voltava, quando viu o ser amado, na esquina.

Abordou-a, impulsivamente. Disse-lhe, baixo e violento: — "O que você fez não se faz. Esperei quatro horas. Está pensando que sou seu moleque?". Ela não teve medo: — "Não fale assim comigo. Nunca lhe dei essa confiança".

O sujeito recuou como um agredido: — "Nunca me deu essa confiança? Escuta. Não combinamos? Hem? Não combinamos? Fala!". E ela: — "Eu sou uma senhora casada! O senhor não sabe com quem está falando!". Ele balbuciou: — "Está tudo acabado?". Ela disse as últimas: — "Acabado o quê? Não houve nada. O senhor não se enxerga! Quer deixar eu passar? Quer?".

O outro, branco, afastou-se, para dar-lhe passagem.

De noite, quando o marido chegou, ela o recebeu aos soluços: — "Fui insultada!". Contou-lhe: — "Aquele canalha fez propostas!". O marido ouvia só, atônito. Foi apanhar o chapéu; disse: — "Volto já". E saiu.

Andando, na calçada, de fraque, parecia um estadista. O fraque, repito, dava mais ferocidade à sua honra conjugal. Foi encontrar o amigo, se não me engano, no Café Papagaio (exatamente, no Café Papagaio). O outro tomava cerveja, sozinho. O marido aproxima-se e diz: — "Seu cachorro!". Puxa o revólver e o fuzila.

O sedutor (como então se dizia) nem se levantou. Morreu sentado.

Se o ofendido não estivesse de fraque, talvez lhe tivesse apenas quebrado a cara. Quem sabe?

Aí está: — o espartilho frustrou um adultério e o fraque matou um homem.

E há também o episódio do soneto. Foi o caso de uma noiva na véspera do casamento.

De tardinha (era como se dizia: — "de tardinha") recebeu um envelope. Virou, revirou e abriu. Era um soneto e, por baixo, a assinatura do ex-namorado, por sinal, o primeiro de sua vida. Leu a primeira vez. E, depois, foi-se trancar no banheiro para reler dez, vinte, trinta vezes. De vez em quando, vinha alguém bater na porta: — "Está aí, Fulana?". Estava. E a pessoa ia dizer na sala que a noiva não saía do banheiro. A mãe explicava: — "Nervosa".

Até que, de repente, a rua ouviu aqueles gritos. Todos correram. A noiva embebera o vestido em álcool, ou querosene. E riscara um fósforo. Depois correu, dentro de casa, gritando, incendiada. Só muito tarde alguém se lembrou de abraçá-la com um cobertor. Levaram a moça para a cama, enquanto chamavam a assistência.

E, de repente, uma tia notou que algo se derretia, atravessava o colchão e vinha pingar no soalho. Era a banha que escorria. A velha foi apanhar uma bacia e a pôs debaixo da cama. Quando a assistência apareceu, estava morta. E, por algum tempo, ouviu-se o pingo tinir na bacia.

Só depois se falou no soneto.

(Já usei a mesma tia, o mesmo colchão, a mesma bacia, o mesmo pingo, em crônica anterior. Desculpem).

[17/8/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O ópio das elites

Em todas as ruas, há um ódio. Ou é do ex-namorado pela ex-namorada, ou de uma vizinha por outra vizinha, ou de uma família por outra família.

Na minha infância, vi um ódio de meninos. Um teria seus nove, outro, oito anos. Um deles, mais vingativo, encheu de iodo uma seringa de borracha; e deu um esguicho no olho do outro. De repente, a rua encheu-se de gritos. Ainda bem que foi um olho só, e não os dois. Dias depois, apareceu na calçada. Logo outros meninos e outras meninas se juntaram. Fiquei espiando o ceguinho.

Ainda agora, estou vendo o olho branco, ou melhor: — era branco, mas com uma mancha de azul leve, diáfano. E, não sei por que, eu achava mais bonito o olho cego e tinha inveja do olho cego.

Assim como as ruas, também os povos precisam ter seu ódio. Não importa qual seja, nem contra quem. Hoje, estou convencido de que os povos sem ódio agonizam na mais pavorosa esterilidade, na mais cruel frustração. Quando me contam que a estatística de suicídios, na Suécia, atinge proporções inéditas, bem entendo esse feroz tédio sueco.

Falta a seus homens e falta às suas mulheres o incentivo mágico, vital, do ódio. Na minha infância, o ódio era o argentino. Odiávamos o argentino. Eu, garoto, de seis, sete anos, ficava ouvindo a conversa dos adultos. Tinha-se como certo que, mais dia, menos dia, íamos brigar com a Argentina. Meu irmão Roberto me dizia:

— "Os argentinos chamam os brasileiros de macaquitos!".

E, por muitos e muitos anos, aquilo me doeu na carne e na alma. Era como se fosse eu o macaquito, eu a vítima única do insulto direto e crudelíssimo.

Mas o barão do Rio Branco cometeu um erro, a meu ver grave. Era um estadista. Mas vejam vocês: — nem sempre o estadista é psicólogo. Não percebeu que devia promover, e não contrariar, a nossa paixão contra a Argentina. Um bom ódio, obsessivo e unânime, é a melhor, a mais eficaz, a mais fascinante distração de um povo. O vizinho, a família ou o povo que odeia esquece todas as outras questões vitais. Dito isto, passo adiante.

Até que um dia (ainda estou falando de Brasil x Argentina), até que um dia houve um episódio. Seria, em outras circunstâncias, um fato secundário, intranscendente e, mesmo, humorístico. Mas o povo viu o incidente através da óptica monumental do ressentimento.

E, de repente, a cidade saiu para as ruas. Todo mundo se juntou no largo de São Francisco. Hoje, passo anos sem pisar no largo de São Francisco e sem ouvir-lhe o nome. De vez em quando, chego a me perguntar: — "Será que existe o largo de São Francisco?". Se não existe hoje, naquele tempo existia.

E a multidão veio para o largo de São Francisco exigir "guerra". Queríamos mobilização fulminante e fulminante invasão. E o barão do Rio Branco foi avisado. Largou o gabinete e veio, de carro aberto, para a praça pública. Quando chegou ao largo de São Francisco, recebeu uma tremenda ovação. Naturalmente, viria trazer também o seu grito de guerra. Em pé, no carro, com a sua nobilíssima barriga, ele fez um gesto de silêncio. Pedia silêncio e fez-se o silêncio. E, então, ele ergueu o chapéu:

— "Viva a Argentina!".

Pausa. O povo estava mudo, num desses espantos jamais concebidos. E o nosso Paranhos repetiu:

— "Viva a Argentina!".

E, então, subiu das entranhas da massa o berro triunfal:

— "Viva a Argentina!".

Mas, repito, foi um erro. Volto ao que dizia. Como pode viver uma rua se, entre vizinhos, entre famílias, não explode um desses sentimentos fortes e exterminadores? Assim o povo. Nada como um ódio geral para uni-lo, para dar-lhe uma tensão nacional e dinamizar suas potências criadoras.

Realmente, ninguém trai o seu ódio e repito: — o homem é mais fiel ao seu ódio do que ao seu amor.

Vimos que, em dez minutos, saímos do "morra a Argentina" para o "viva a Argentina". Anos depois, o barão morreu; e seu enterro, segundo as testemunhas, foi maior que o de Inês de Castro.

Mas eis o que eu queria dizer: — a partir de então, o povo teve alguns ódios locais, com graus diferentes de intensidade: — um deles foi Pinheiro Machado. Mas o ódio a Pinheiro foi mais retórica do que paixão. Era, digamos assim, um ódio de comício. Foi apunhalado por um discurso.

Tivemos também Bernardes. Eu, com nove anos, odiei Bernardes; os meninos de Aldeia Campista odiaram Bernardes. Mas era pouco para o nosso coração. O ódio que rende mais, que dá dividendos mais generosos, exige o estrangeiro.

Graças a Deus, descobrimos o americano. O americano foi, mais que um ódio, uma solução. Se odiamos o americano, não precisamos nem amar o Brasil. Não exagero nada. A evidência está aí: — o Brasil é um país por fazer. Fazer o Brasil seria a nossa tarefa. Não damos um passo sem esbarrar, sem tropeçar num problema. Tudo no Brasil é problemático. Mas reparem: — quanto mais odiamos o americano, menos pensamos no Brasil e, repito, menos o amamos. O Vietnã está mais próximo de nós do que Magé.

E sabem por que essa impotência nacional para qualquer trabalho sério? Por causa dos Estados Unidos.

Mas temos as nossas elites. As elites, porém, estão entretidas em odiar o americano. E não tapam um buraco de rua, não soldam um cano furado, não desentopem uma bica. Na hora de pichar o muro, damos vivas a Cuba, e ao vietcong, e a Mao Tsé-tung, e a Guevara, e a Fidel. Vivas ao Brasil, jamais.

Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas. E convém falar, em especial, dos nossos intelectuais. São socialistas, em sua maioria absoluta. Pode-se perguntar: — à maneira sueca? Não e jamais. Ninguém fala da Suécia, porque lá não houve sangue, nem ódio, nem extermínio, nem escravidão. Portanto, a Suécia não interessa. O nosso intelectual está de olho no socialismo totalitário da Cortina de Ferro.

Dirá alguém que ele, intelectual, por boa-fé, ingenuidade ou simplesmente burrice, é vítima de uma funesta ilusão. Mentira. Ninguém que ligue duas idéias tem o direito de se iludir a tal ponto. A experiência socialista é a mais gigantesca e vil impostura do nosso tempo. E o intelectual é o primeiro degradado, sempre.

O romancista, o poeta, o cineasta, o dramaturgo, o crítico, o artista plástico, o compositor, todos, todos são rigorosamente escravos. E quando um ou outro insinua um vago lamento, vem a polícia e o interna como louco. E os psiquiatras do Estado o tratam como doente mental perigosíssimo. Ou, então, é fisicamente destruído.

Uma dona de casa que me leia há de perguntar:

— "Mas o nosso intelectual sabe disso e, apesar disso, quer isso mesmo?".

Quer. A maioria quer. Pergunta:

— "E por quê?".

Como diz um vizinho meu: — "Há gosto pra tudo". Diria mais que, por uma fatal coincidência — fora poucas exceções, suicidas —, o intelectual não resiste ao totalitarismo comunista. Tem sido assim em toda a Cortina de Ferro. Jamais insinua um protesto contra o estupro da liberdade, da inteligência, das artes e da pessoa humana.

Volto às elites. Temos aí artistas, escritores, médicos, arquitetos, cineastas, professores, os grã-finos. Ninguém faz o Brasil, porque só temos tempo de odiar o americano. E fica todo mundo numa deliciosa e alienada inércia contemplativa.

Sim, o ódio ao americano é o ópio das elites brasileiras.

[15/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Os defuntos literários

Todo mundo já ganhou o prêmio Nobel, menos o brasileiro. Não me venham falar em subdesenvolvimento. O Chile e a Nicarágua são mais subdesenvolvidos do que o Brasil. E ambos têm o seu prêmio Nobel. Há quem diga: — "A Nicarágua não existe". Sei lá. Mas, exista ou não, eis a verdade: — existe para a Academia Sueca. O Brasil, não.

E nem importa a nossa tremenda extensão territorial. Este país é uma espécie de elefante geográfico. Mas a Academia Sueca olha para cá e não vê ninguém. Portanto, existimos menos do que a Nicarágua. Mas é uma injustiça. Temos uma massa de intelectuais.

Numericamente, não estamos atrás de ninguém, nem da União Soviética. Na Rússia há, registrados, seis mil e tantos escritores (e o sujeito que não foi registrado não é escritor. Mesmo que tenha escrito A divina comédia, não é escritor). Pode parecer que, numericamente, a União Soviética está na frente do Estados Unidos. Dos Estados Unidos, talvez. Do Brasil, não.

Vocês se lembram da última passeata. Antes do desfile, fui ver a concentração. Levei comigo o Raul Brandão, pintor de grã-finas e igrejas. E espiamos o espaço reservado aos intelectuais. Parecia uma massa de Fla-Flu. Jamais nos ocorrera que a inteligência brasileira fosse tão abundante. No seu horror, o Raul Brandão perguntava: — "Tudo isso é intelectual?".

Fomos olhar outra vez a tabuleta. Lá estava escrito, acima de qualquer dúvida ou sofisma: — "Intelectuais".

Portanto, os intelectuais eram intelectuais. E, então, passo a passo, tratamos de identificar os nossos poetas, os nossos romancistas, os nossos ensaístas, os nossos dramaturgos, os nossos sociólogos, os nossos professores. Eis a lamentável e quase grotesca verdade: — depois de buscas ingentes, não identificamos ninguém. Ninguém? Isso mesmo: — ninguém.

No meio de 20 mil sujeitos, não havia uma cara conhecida.

De repente, o Raul Brandão crispa a mão no meu braço; sussurra: — "Acho que vi a Nara Leão!". O "acho" insinuava uma dúvida. A Nara Leão pode não ser a Nara Leão. Talvez parecida e não a própria. Pergunto: — "Cadê?".

O Raul Brandão procura, procura, e tem de admitir: — "Sumiu". E, então, começamos a reexaminar as caras. (Quem devia estar ali era a Academia Sueca, apalpando, farejando, a literatura brasileira). Se pose é um dado válido, todo mundo ali era Proust, era Joyce, era Balzac, era Cervantes. Uns ficavam de perfil, outros de frente, outros de três quartos, outros punham as mãos nas cadeiras. Atrás de mim, o Raul Brandão gemia: — "Como são inteligentes!". Eram, sim, inteligentíssimos.

Os idiotas da objetividade poderão insinuar que são autores sem um livro, poetas sem uma quadrinha de São João, ensaístas que não lêem, não escrevem, nem pensam. Não importa. A abundância numérica os salva. Enquanto a União Soviética só consegue juntar escassamente 6 mil escritores, o Brasil pode retrucar com 20 mil.

Dirá alguém que toda a literatura soviética atual não merece amarrar os sapatos de Dostoievski. Como não sou crítico literário, deixo de opinar. Mas continua de pé a pergunta humilhante: — por que, com tantos autores, o Brasil jamais foi contemplado com um prêmio Nobel? Não obstante o subdesenvolvimento, que explica tudo, temos campeões mundiais no futebol, no basquete, no hipismo, no tênis, na pesca submarina, no iatismo.

Nas exposições de gado, temos vacas premiadas. As nossas caixas de fósforos ganham medalhas. Se houver um campeonato de cuspe à distância, um moleque nosso há de vencê-lo. Ainda na semana passada, o nosso Botafogo, com três enxertos, goleou de 4 x 1 a grande seleção argentina. Vitória com olé. Fizemos um gol, o último, de oitenta passes. Mas repito: — por que até as vacas, até as caixas de fósforos brasileiras são premiadas, e os escritores, não?

Foi esta, mais ou menos, a pergunta que fiz a um amigo, justamente um dos idiotas da objetividade. Ele vira-se para mim e pergunta: — "Ou não percebeste que a literatura brasileira não escreve mais?". Tomo um susto: — "É literatura e não escreve?".

Exatamente: — a literatura brasileira é literatura, mas não escreve uma linha, uma frase, um verso, nada. Há, por todo o Brasil, um ensurdecedor silêncio literário.

Esbugalhado, perguntei: — "E que faz a literatura brasileira?".

Retruca o idiota da objetividade: — "Faz passeatas".

Todavia, não aceitei a morte literária do Brasil. Corri à Biblioteca Nacional. E tive a crudelíssima surpresa: — o nosso último suplemento literário fechou as portas na abertura dos portos. Volto ao idiota da objetividade; disse-lhe: — "Mas tínhamos um crítico, rapaz de talento, o Álvaro Lins".

E o outro: — "É anterior a José Veríssimo, Araripe Júnior, Sílvio Romero. Álvaro Lins é a nossa maior antigüidade crítica".

Posto diante da evidência objetiva e estarrecedora, acabei por me convencer. Quando se travou a primeira batalha do Marne, e os táxis de Paris salvaram a França, que fazia, aqui, o José Veríssimo?

Fazia crítica literária, indiferente ao mundo que morria, indiferente ao mundo que nascia. E, sem querer, falei num bilíssimo gênero literário: — a crítica. No passado, um jornal podia abrir mão de tudo, menos do seu crítico. E quando aqui desembarcou d. João VI, enxotado por Napoleão, já encontrou o Álvaro Lins, no cais, à sua espera. El Rey perguntou, num gesto largo: — "Como vai o meu caro rodapé?". E o rodapé, baixando a vista, escarlate de modéstia: — "Caprichando, majestade, caprichando!". Foi divino.

Mas tudo isso acontecia antes das passeatas. O último óbito literário, que se conhece, foi o suplemento concretista do Jornal do Brasil. Aí morreu a nossa literatura. O leitor, que é de uma inocência obtusa, há de perguntar: — e por quê?

Resposta: — Morreu porque se politizou. Veio o Vietnã. E, por último, explodiram as passeatas.

Assim como há o padre de passeata, há o escritor de passeata. São os tais estilistas sem uma frase, os tais poetas sem uma metáfora etc. etc. E, súbito, os nossos cafés, bares e boates se povoaram de defuntos literários. Outro dia, no Antonio's, vi um tão defunto que usava algodão nas narinas. Orai por ele.

Temos, ainda, a grã-fina de passeata. No seu guarda-vestidos há 1500 decotes. Já quando houve, na França, a jovem revolução, o marido da grã-fina sentiu-se ameaçado como se fosse o próprio De Gaulle. E, de repente, começa aqui a imitação francesa. Até que um dia a grã-fina diz que vai à passeata. O marido perdeu a esportiva: — "Está maluca? Bebeu?".

A mulher, que só fazia massagem com um copo de cerveja na mesinha, reagiu como "La Pasionaria": — "Eu não sou reaça como você!". O marido tratou de provar-lhe, didaticamente, que a passeata era contra os 1500 decotes. Ela não se convencia, nem a tiro; e, por fim, o marido propôs: — "Vou lá espiar e depois te digo". Assim se fez. O homem viu e, inclusive, participou da marcha até a Candelária. Não descobriu um preto, um operário, um salário-mínimo, mas viu, em compensação, todas as grã-finas da cidade. Voltou convencido de que eram as classes dominantes que desfilavam, sob a chuva de listas telefônicas. Disse à mulher: — "Pode ir à próxima".

Os 1500 decotes estavam salvos.

[13/8/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A gratificação

Já falei da grã-fina que mora no Alto da Boa Vista. (No seu jardim, há uma estátua nua que, nas noites frias, morre gelada). Seu palácio saiu nos "mais belos interiores" de Manchete. Mas o que me fascina, em certas casas, é o requinte.

Outro dia, fui visitar outro casal de grã-finos. E, na hora de lavar as mãos, vi uma pia inexcedível. A pia ainda não era nada. O que me deslumbrou foi a bica.

Enxuguei as mãos e, depois, chamei o dono da casa. Disse-lhe, de olho rútilo: — "Que bica! Que bica!". E ele, na sua flamejante modéstia: — "Ouro maciço!".

Volto ao Alto da Boa Vista. A dona da casa é exatamente aquela que, certa vez, dizia, lânguida, meio alada: — "Eu sou amante espiritual do Guevara". Em seguida, voltando à vida real, levou-nos para ver o retrato do "Che" em sua alcova. Lá estava ele, de boina; a barba crespa virilizava a doçura da expressão quase infantil. Pois bem. E foi justamente a "amante espiritual" de Guevara que telefonou, ontem, para mim.

Perguntei-lhe, inicialmente, se o retrato de Guevara ia bem de saúde etc. etc. Zangou-se, risonhamente: — "Cada vez mais reacionário!". E eu: — "Pelo amor de Deus!". Mas ela estava com pressa e foi dizendo: — "Vem hoje aqui em casa, ouviu?". Criou um mistério, um suspense: — "Tenho uma surpresa". Resisti de puro charme. Finalmente, disse que ia. Assim nos despedimos.

Cheguei lá, às nove e pouco. Perguntei-lhe: — "E a surpresa?". Brincou com a minha curiosidade: — "Calma, calma". Acabou dizendo que a surpresa era um padre. Assustei-me: — "Padre de passeata?". Fez espanto: — "Que história é essa de padre de passeata? Isso não existe!".

Expliquei-lhe que o padre de passeata era um fato concreto e histórico, Acabou admitindo que, realmente, o sacerdote comparecera a duas passeatas; e acrescentou: — "Uma cabeça. E olha. Mais inteligente do que d. Hélder".

Chamou o marido que ia passando, e perguntou: — "Não é mais inteligente do que d. Hélder?". O marido disse, grave, taxativo: — "Uma cabeça!". Se era "uma cabeça", e "mais inteligente do que d. Hélder", eu estava disposto a vê-lo e ouvi-lo.

Pouco depois, chegava "a cabeça". Nada de batina. O sacerdote estava vestido como um anúncio da Ducal. Quando apareceu, houve um frêmito em todos os decotes. Fui apresentado. "Muito prazer", de parte a parte. Duas ou três o levaram. E a dona da casa dizia, no meu ouvido: — "Vai falar sobre sexo". Insinuei: — "Já estou muito velho para educação sexual". Mas uma outra a chamava. Afastou-se.

E eu fui olhar na janela, que se abria para a noite. (O padre de passeata fazia conferências a domicílio para grã-finas.  Especializara-se em sexo e Guevara). Daí a pouco, sou chamado: — a "cabeça" ia falar. A anfitriã fizera um teatrinho, com umas cinqüenta cadeiras e um pequeno palco, quase ao nível da platéia. Alguém me sussurrou: — "Uma cultura!". E, justamente, a "cultura" começava a falar.

Disse, preliminarmente, que ia fazer uma palestra informal. Estaria disposto a responder perguntas. Mas frisou: — "Estamos aqui num encontro informal". Dizia "informal" com particular satisfação, como se a palavra lhe fizesse cócegas no céu da boca. Não começou imediatamente. No pequeno palco, andava de um lado para outro, de cabeça baixa, as mãos trançadas nas costas. E, súbito, da primeira fila, a anfitriã sugere: — "Conta aquela".

Parou, risonhamente, no meio do palco. Fingiu um lapso: — "Qual?". E a outra: — "Aquela!". Empina o queixo, faz um esforço de memória: — "Aquela?". Risos. As pessoas achavam graça. Ele sentiu que o lapso era um efeito. Fechava os olhos, cruzava os braços.

Teve que admitir: — "Sinceramente, não me lembro". E, como ele não se lembrava, não se sabia o quê, explodiu a gargalhada. O padre de passeata dramatizou o lapso. Apertou a cabeça entre as mãos. Sentiu o sucesso e o agarrou. Há de ter pensado: — "A platéia está no papo".

Um sujeito, a meu lado, com uma barriga de ginecologista, repetia, banhado em delícia: — "Uma cabeça! Uma cabeça!". Fui, então, varado por uma súbita recordação auditiva. Há um tango de Gardel que começava assim: — "Por uma cabeça" etc. etc. E o tango devia ser de Gardel e Le Pera.

Na platéia, já batiam palmas. Era o primeiro lapso aplaudido.

A dona da casa explicava: — "Aquela da prostituta. Aquela!".

O padre de passeata bateu na testa: — "Agora me lembro". E a anfitriã, de pé, virava-se para a platéia; dizia, radiante: — "Ótima, ótima!". Sentou-se novamente. Andando de um lado para outro, o sacerdote não tinha pressa. Parou numa extremidade do palco. De perfil para a platéia, olhando para o alto, disse: — "Realmente, realmente".

Começou: — "Prostituta". Suspirou. E, já no centro do palco, explicava: — "A prostituta não me espanta". Perguntou, de sopetão, à platéia: — "Os senhores se espantam com um bombeiro hidráulico, um ourives ou protético?". Silêncio. Recomeçou:

— "Ser prostituta também é um ofício". Repetiu, com certa ferocidade: — "Ofício, ofício, ofício". Pausa. Novo suspiro: — "Profissão". Profissão, como outra qualquer. "Ganha-pão." Ria agora: — "Aconteceu comigo um fato. Um episódio. Fato de rua".

Jogando as pausas, usando silêncios, ele deliciava os presentes. Disse: — "Nem sei se deva contar". Vozes protestaram: — "Conta, conta!". E o padre de passeata dispôs-se a contar. Agora estava mais ágil, mais lépido, mais brilhante: — "O caso é o seguinte: — fui abordado por uma mulher da vida. Digamos: — mulher da vida. Me abordou".

Excitação na platéia. As pessoas se entreolhavam. Longa pausa. Foi de uma extremidade a outra e vice-versa.

Disse: — "Me fez uma proposta". E, súbito, em tom castamente informativo, ele falou que, hoje, há trottoir por toda a cidade. "Até na porta da igreja." No passado, a prostituição estava localizada. Hoje, não. Às vezes, em ruas rigorosamente familiares, estritamente residenciais, nós vemos uma moça. Parece uma menina. O sujeito jura que é uma menina de família. E, ali, na calçada onde as crianças brincam, ela está exercendo uma profissão. "Não direi profissão infame, porque não há profissões infames. Há profissões."

Vozes perguntam: — "E o que é que o senhor fez?".

Repetiu, criando um suspense delicioso: — "O que é que eu fiz?". Continuou: — "Ela falou comigo em português. E eu respondi em alemão".

Perplexidade divertida.

A "amante espiritual de Guevara" pediu: — "Diz por que é que o senhor falou em alemão".

Sorria, banhado em sucesso: — "Pelo seguinte: — porque eu queria passar por estrangeiro. Saíra da igreja, estava sem batina. Pra todos os efeitos, eu não estava entendendo nada". A dona da casa, em pé, protestou: — "O senhor não está contando direito. Conta, conta. Por que é que o senhor não podia entender a proposta?". E ele, iluminado:

— "Porque se eu entendesse a proposta e recusasse, ela ia pensar que eu sou pederasta".

Foi uma ovação formidável. Os decotes se atiravam para o palco. Era uma euforia geral. E ele, que falara tão pouco, e usara mais pausas do que palavras, suspirava: — "Cansei". Vozes: — "Genial! Genial!".

Meia hora depois, a "amante espiritual de Guevara" chamou-o numa outra sala. E lá o padre de passeata recebeu, no envelope, o cachê.

[10/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Telefone com sotaque

Entro na redação e o companheiro avisa: — "Telefonaram pra ti. Do Paris-Match. O correspondente de lá".

No meu espanto, balbucio: — "O Paris-Match? Comigo?". Qualquer telefonema é uma janela aberta para o infinito. Muitas vezes a glória internacional começa no telefone. Tirando o paletó, armei uma fantasia paranóica.

Seria talvez uma entrevista. E já imaginava um retrato meu de página inteira. Sair na revista que só promove Stalin, Buda, Mao Tsé-tung, Roosevelt, o príncipe de Gales e o decote de Elizabeth Taylor (decote tão robusto, tão bem alimentado).

E, como um telefonema do Paris-Match é altamente promocional, já os companheiros cravavam em mim o olho da inveja. E, súbito, o telefone bate novamente. Numa tensão sufocante, fecho os olhos e espero o chamado. Ouço a voz: — "Nelson, pra ti!". Saio atropelando mesas e cadeiras, como um centauro. Digo, arquejante: — "Alô! Pronto!". E, como a voz não tem sotaque, rilho os dentes de frustração. Era o alfaiate.

Destratei-o: — "Eu não sou o único brasileiro que deve! Sossega o periquito!". Bati com o telefone.

Sentei-me. E já me afligia e humilhava a gíria sórdida. No momento em que a imprensa européia me procurava, não me perdoei aquele "sossega o periquito". No meu canto, pedi pelo amor de Deus um telefonema com sotaque. Três ou quatro minutos depois, sou chamado, outra vez. Ainda sondei o contínuo: — "Tem sotaque?". "Sim."

Da minha mesa para o telefone, tive tempo de imaginar o seguinte: — estréia de minha peça Vestido de noiva em Paris. Na frisa oficial, estaria De Gaulle, com todas as medalhas escorrendo, em ouro, pelo peito. E, ao abaixar o pano, o Herói, de pé, pedindo bis, como na ópera.

Chego ao telefone. Digo: — "Pronto, pronto!". E ouço o bendito sotaque.

Era o homem.

Na minha dispnéia emocional, estou dizendo: — "Pois não, pois não!". E fiquei ouvindo o enviado do Paris-Match.

Logo nas primeiras palavras, o colega esvaziou-me de toda a mania de grandeza. Não estava interessado em mim, nem em meus textos, nem nas minhas metáforas. Vinha falar do Britto. Queria informações urgentes sobre o Britto. A princípio, não liguei o nome à pessoa. Britto? Que Britto? O sotaque falou no Jornal do Brasil (sempre este órgão fatal). Só então fez-se luz em mim. Já que o autor era outro, e não eu, comecei a achar execrável o sotaque.

Eis o fato: — chegara ao Velho Mundo a notícia de que o Britto, através do Jornal do Brasil, declarara guerra de morte às cores. Era um desafeto das cores e um fanático do preto-e-branco. Não podia passar por uma porta de tinturaria sem náuseas profundíssimas.

Comecei a ver, ali, um mistério, um suspense. Que dizer do Britto? Achei a seguinte solução: — ia reunir uns dados e, em seguida, escreveria uma crônica sobre a vida e a personalidade do nosso patrício. Estou falando, aqui, no momento, para o Paris-Match.

Quem é o Britto? Geralmente, cada qual é um só. Buda foi Buda, exclusivamente Buda e tão-somente Buda, do berço ao túmulo. E assim Maomé, e assim são João Batista, e assim Nero ou Stalin. No presente caso, temos três Brittos num só: — o do Jornal do Brasil; o futuro ministro das Relações Exteriores; e o beque do Vasco. Há um quarto: — o Britto doutor, único doutor da imprensa brasileira. Portanto, os três são quatro.

Quando começou a sua projeção internacional?

Vejamos. Domingo passado, a TV Globo iniciou, no Brasil, a época da televisão em cores. Se perguntarmos a um paralelepípedo analfabeto, ou a uma cabra vadia, ou a um bode de charrete se a televisão em cores é um passo maravilhoso, a resposta será unânime e taxativa: — "Está na cara!". Não pensa assim o beque do Vasco. Ao saber da novidade, convocou uma reunião de editorialistas.

Como se sabe, o Jornal do Brasil não diz um "oba" sem uma assembléia prévia e douta. Sob a presidência do dr. Britto, as maiores cabeças da casa discutem o "oba", em toda a sua complexidade. Se aquelas inteligências preferem o "oba", o Jornal do Brasil, no dia seguinte, diz o "oba" em vibrante editorial. Pois bem. Também a televisão em cores mereceu essa grave, erudita, clarividente reunião.

Parecia uma sessão histórica da Câmara dos Comuns. Por vezes, os debates se acaloraram. Mas, mesmo no fogo da controvérsia, todos conservavam um tom dignamente crespo. O primeiro a falar foi o dr. Britto. Pedia licença para referir um fato, dos mais desprimorosos. E contou. Dias antes, vinha ele passando pela Avenida quando viu, na esquina, três cores: — o verde, o grená, o branco. Por se tratar de cores conhecidas, ele resolveu cumprimentá-las. Agora vem o horror: — as três cores viraram-lhe o rosto.

Ante esse ultraje direto e crudelíssimo, o dr. Britto voltou atrás e perguntou-lhes: — " Vocês não me cumprimentam?".

Resposta: — "Nós somos Fluminense. E você Vasco". E o dr. Britto, que já não gostava do amarelo, tinha agora razões de honra para abominar o verde, o grená e o branco. Na cabeceira da mesa, em pé, de fronte alçada, bradou: — "Ao Fluminense, nem água!". Os taquígrafos, de orelhas ávidas, não perdiam uma palavra.

Imediatamente, fez-se uma comissão de estilistas (os mais finos da folha de pagamento) para redigir uma nota feroz que desagravasse o chefe. Lá estava o dr. Britto, com os brios mais eriçados do que as cerdas bravas do javali. E a página foi feita e, no dia seguinte, publicada, num luminoso "Informe JB". É um primor ou, como diziam as velhas gerações, uma tetéia. Nada de cores.

Se o poente do Leblon não é em preto-e-branco, azar da paisagem e abaixo o poente. A nossa baía é metida a azul. Pau nela!

Portanto, a televisão em cores deve ser varrida a patadas. E o "Informe JB" chega ao sublime quando malha a miséria colorida. O certo, o correto, o patriótico é a miséria em preto-e-branco, é a mortalidade infantil em preto-e-branco, é o subdesenvolvimento em preto-e-branco.

Alguns realistas, que sempre os há, poderão dizer que a ira do Jornal do Brasil tem razões sordidamente competitivas. Quem ruge contra a televisão em cores é o jornal que não tem a televisão, nem as cores. Seja como for, o velho órgão esta ventando fogo por todas as narinas.

Assim é o homem. Mas justiça se lhe faça: — aos poucos, etapa a etapa, vai conseguindo tudo o que quer.

Dirá alguém que nunca passará de "futuro" ministro do Exterior. Não importa: — é um título. E os contínuos já o chamam de "ministro", "sr. ministro" e, até, "dr. ministro". Faltava-lhe a consagração do escrete. São Januário era pouco para a sua fome. É agora zagueiro da seleção.

E se o Paris-Match dedicar ao nosso patrício as mesmas sete páginas que concede a De Gaulle e ao busto de Elizabeth Taylor — não faz mais que a obrigação.

[9/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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terça-feira, 29 de novembro de 2011

Werther

Não me lembro de ter dito que o Palhares, o canalha, é o carioca radical. Sim, ninguém mais carioca, ninguém tão carioca. É uma espécie de irmão das coisas, das esquinas, das retretas, dos paralelepípedos da cidade.

Olha o Pão de Açúcar como se fosse a primeira vez, sempre a primeira vez. E tem a sensação de que a luz acaba de inaugurar o Corcovado.

Pois bem. E, ontem, eu estava na Cinelândia, olhando os pombos. Não sei que misterioso pudor me impede de lhes dar milho na mão. De repente, ouço o berro: — "Nelson! Nelson!". Era o Palhares, "o que não respeita nem as cunhadas".

Na calçada da Biblioteca, ele, qual um extrovertido ululante, berrava o meu nome.

E, depois, atravessou a Avenida. Os automóveis em disparada raspavam o magnífico pulha. Mas ele chegou do outro lado, sem um arranhão, sem uma fratura e sem uma trombada.

Olhei o canalha. Como sempre, tinha uma pele de quem lavou o rosto há quinze minutos. E anunciou: — "Tenho uma pra te contar, menino!". Imaginei que devia ser a sua última conquista. O Palhares tem sempre uma "última conquista". E ele, já de olho rútilo, ia começar.

Súbito, balbucia: — "Até logo, até logo!". Segurei-o pelo braço: — "Que é isso, rapaz?". Diz, baixo: — "Vem aí o Torres. Já me viu. Torres, o homem de bem. O maior chato do Rio de Janeiro. Adeus!". Largou-me e fugiu.

E eu, que também conhecia o Torres, tratei de escapar.

Atravessei para a Câmara, dobrei a Evaristo da Veiga e fui andando, rente à parede. Se vocês conhecessem o Torres, "o homem de bem", justificariam o meu horror e o do Palhares.

O Torres é a virtude mais promocional do Rio de Janeiro. Em todas as esquinas, salas e retretas ele esfrega, na cara dos outros, a sua honra. Lembro-me de um dia em que, na esquina de Sete de Setembro, bramava: — "Sou um homem de bem! Sou um homem de bem!". E quando ele aparece as pessoas fogem, como se ele fosse o Juízo Final ou, pior do que isso, o rapa.

Jamais o Torres deu um biscoito a um pobre sem promover tal esmola em manchetes. Mas não é ele o único Narciso da caridade. A toda hora e em toda parte, há íntegros que nos atropelam com a sua integridade, há justos que nos humilham com a sua justiça, há castos que nos ofendem com a sua pureza. Raríssima uma bondade sem impudor. Por isso, chega a ser inquietante o caso de Abrahim Tebet.

Digo-lhe o nome e não sei se vocês o conhecem. Foi homem do esporte, do futebol, do escrete. Mas o que me interessa é o Abrahim Tebet "ser humano". Muita gente só tem de humano o terno, a gravata, os sapatos. E passamos meses e até anos sem ver ninguém parecido com o ser humano.

Há dois ou três dias, Abrahim tomou posse do cargo de presidente do Conselho Estadual de Trânsito. Ah, que figura patética e, eu quase dizia, chapliniana, a do "empossado".

Depois do governador Negrão de Lima, falou o próprio Abrahim. Imaginei: — "Vai chorar!". Mas não chorou. Ah, o esforço que fez para controlar a própria tensão. Ao lado, estava o Luís Alberto Bahia, o chefe da Casa Civil. Nós sabemos que o poder gosta de pôr uma máscara hirta. Mas o nosso Bahia é, justamente, o poder dionisíaco. Sai de casa, num suntuário chapa-branca, e leva no bolso várias gargalhadas. Ria para mim, para o Abrahim, para todo o mundo. Essa alegria antioficial estarrecia os mais tímidos.

Mas sem querer estou pecando contra o meu assunto. Volto a ele. Eis o que eu queria dizer: — vimos a bondade do Torres, que se badala como um sino indigno. Mas a do Abrahim é, justamente, a que se esconde, a que se nega, e se disfarça. Diria que ele faz o bem às escondidas, como quem pratica um ato obsceno. É bom com vergonha de o ser.

Quando ele deixou a CBD, houve quem sussurrasse o vaticínio: — "Vai morrer de fome". Aí está. Abrahim, o doce, sempre terá uma fatia de pão e um pouco de manteiga para lhe barrar por cima. (Não sei se eu disse que o Luís Alberto Bahia tem o riso luminoso e forte dos sátiros vadios). Falei de Abrahim e passo ao Nelsinho Motta.

Dias atrás, escrevi sobre o jovem cronista, e não só cronista: — também homem de TV, da canção, do romance (ainda não escreveu nenhum romance, mas será, um dia, romancista). E o Nelsinho, que é romântico por dentro e por fora, romântico no terno, romântico na gravata, romântico na calça de veludo e romântico na palidez. Faço ponto, porque já vou arquejando.

E, como ia dizendo: — o Nelsinho escreveu, justamente, contra os românticos. Há uma rapaziada aí que anda bebendo nas fontes líricas da música popular. E meteu-lhe o pau.

Não contente, Nelsinho faz do Chico Buarque de Holanda uma imagem cruelmente inexata. Na sua versão, o autor de A banda seria um vampiro saudoso de carótidas, querendo beber o sangue gelado da burguesia. Mas esse é o falso Chico, a negação do Chico, o anti-Chico. Ninguém mais nostálgico, ninguém mais fremente, ninguém mais pungente.

E como é antiga e infeliz a sua ternura. Querem transformar um Pierrô do Méier num Guevara de capinzal vagabundo.

Dirá o leitor: — "E Roda viva?". Ah, Roda viva é também o anti-Chico, e por outras palavras: — Roda viva é o José Celso. O diretor sentou-se na alma do espetáculo. No texto que lá aparece não há uma janela. Ora, o Chico tem, como as modinhas antigas, a obsessão das janelas. Eu me lembro de uma letra de Hermes Fontes (de Hermes Fontes ou Olegário). Diz assim: — "Pela janela da saudade" etc. etc. Aí está insinuada a Carolina.

E eu achei que toda a crônica do Nelsinho tinha um som de moeda falsa. Por que o pudor de ser piegas? Que somos nós, todos nós, senão 80 milhões de piegas? E o Nelsinho, que é capaz de fazer um pacto de morte na primeira esquina, e Chico, idem? Um ou outro devia aparecer na boca-de-cena e anunciar, de fronte alta: — "Damas e cavalheiros: — Eu sou um piegas nato e hereditário". E o Sérgio Buarque de Holanda, uma das inteligências mais sérias do Brasil? Em várias entrevistas, já declarou: — "Eu sou apenas o pai do Chico". Eis um gesto do piegas radical e incontrolável.

Quando escrevi sobre o Nelsinho, estava disposto a uma feroz polêmica. Seria o patético, raiando pelo sublime: — de um lado, eu, velho, de uma velhice inenarrável; de outro lado, o Nelsinho, com todo o esplendor das Novas Gerações.

Mas não há tal polêmica. O Nelsinho pensa como eu, sente como eu, e mais: — usa contra mim as minhas próprias piadas. Quando cruzar com esta figura da belle époque, hei de perguntar-lhe: — "Quando é o pacto de morte?".

E dirá ele, pálido como um Werther: — "Estou caprichando".

[8/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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O paulista

Certa vez, estou em casa, quando bate o telefone. Atendo: — era o paulista. Fiz-lhe uma festa imensa: — "Como vai? Há quanto tempo!". E, de fato, não nos víamos há uns três anos. Ou mais. Quatro ou cinco anos. Sou um desses brasileiros que vão pouco a São Paulo. Em 55 anos de vida passei por lá três ou quatro vezes. Só. E não sei se por culpa minha ou de São Paulo ou de ambos. Creio que de ambos.

Um dia, fui a São Paulo, de automóvel, ver um jogo. Se não me engano, Brasil x Tchecoslováquia. Exatamente, Brasil x Tchecoslováquia. E ele foi comigo ao Pacaembu. Torcíamos juntos, ou por outra: — só me lembro da minha torcida. A dele apagou-se completamente na minha memória.

Do Pacaembu saímos para jantar. Jantamos. E já me pergunto: — será que jantamos mesmo? Sei lá. Passamos a noite juntos. Ele não arredava o pé de mim. Fazia um frio tão feroz — era junho — que, em dado momento, tive vontade de chorar, sentado no meio-fio.

O homem foi para mim uma espécie, digamos, de irmão súbito. Não consegui pagar uma caixa de fósforo. Ele subvencionou tudo. E fez questão de me levar no trem.

Desembarquei no Rio e me saturei, até os sapatos, de vida carioca. Passa-se o tempo e, de vez em quando, me lembrava do paulista. Via com a maior nitidez a sua cara, o terno, a camisa, e nada mais. Lembrava-me, sim, do seu pigarro. Mas não me ficara de nossa convivência uma palavra, uma frase, um "boa-noite", um "adeus". Cheguei a pensar que, em minha passagem por São Paulo, ou eu era surdo ou ele mudo.

Mas claro que se tratava de uma ilusão auditiva: — até uma múmia acompanhada há de falar coisas, dizer frases, soltar palavrões etc. etc. E eu só me lembrava de um único e escasso pigarro.

Mas, enfim, estava ele no Rio. Ótimo, ótimo. Eu ia vê-lo e, mais do que isso, ia ouvi-lo. No telefone, combinamos um jantar. Exagerei, patético: — "Você não imagina a minha alegria". Quis saber: — "Quanto tempo vai passar aqui?". Resposta: — "Dois dias". Ao sair do telefone, juntei ao pigarro mais umas quinze palavras. Vejam bem: — quinze palavras e um pigarro tinham, para mim, quase que a abundância de uma ópera.

Vou encurtar, porque não quero tomar o tempo do leitor.

Jantamos, nesse dia, almoçamos e jantamos no dia seguinte, fomos ao teatro e ainda ceamos na sua última madrugada de Rio. De manhã, compareci ao aeroporto. Perguntei-lhe: — "Até quando?". Teve um sorriso inescrutável e não disse uma palavra. Por fim, tomou o avião e partiu. Vim embora e aqui começa a minha trágica perplexidade: — eu voltava à mesma situação. O outro era um paulista fino, inteligente, um homem de sensibilidade, de imaginação. Há momentos em que o mais incomunicável dos homens tem que fazer uma confidencia. Ou faz uma confidência ou morre. E ele, nos seus dois dias de Rio, não fizera nenhuma confidência.

A princípio, ainda tentei forçar aquela barreira de silêncio. Mas senti que era inútil e calei-me também. E, então, aconteceu esta coisa vagamente alucinatória: — éramos dois silêncios que andavam um atrás do outro; dois silêncios que comiam, bebiam, fumavam e se entreolhavam.

Deu-me, por vezes, a vontade de ouvir-lhe o som do pigarro. Se não tinha o que dizer, podia dar-me a esmola auditiva de um pigarro. Por imitação inconsciente, eu ia-me tornando paulista também.

Saí do aeroporto numa melancolia hedionda. E a primeira buzina que ouvi deu-me uma desesperada euforia. Pensei: — "Ao menos as buzinas falam!".

Entrei na redação e fui adiantar serviço. Passei dez minutos diante da máquina. Mas não me ocorria absolutamente nada. O papel estava na máquina, branco, virginal.

Acabei decidindo: — "Vou escrever sobre o kaiser". Mas quando comecei a bater as teclas, saiu-me esta frase: — "A pior forma de solidão é a companhia de um paulista". Reli, honestamente espantado. A coisa nascera sem nenhuma elaboração prévia.

Continuei a escrever. Expliquei a verdade, isto é, que a frase me escapara sem querer. E fiz toda uma crônica sobre o kaiser.

Dias depois, encontrei-me, na casa do Pitanguy, com a sra. Clô Prado. Falou da minha frase com uma ternura agradecida: — "Como é verdadeiro o que você disse! Como é exato! Como é perfeito!". Nessa mesma noite, e ainda na casa do Pitanguy, um dos convidados achou que eu escrevera, numa simples frase, uma verdade estadual inapelável e eterna.

Já no fim da madrugada, uma terceira pessoa me levou para os fundos da casa. Pitanguy tem uma piscina. E foi, perto da piscina, que conversamos.

Era ainda a frase. O convidado começou por dizer que o paulista é a única solidão do Brasil. E aí está sua formidável superioridade sobre todos os outros brasileiros. E o que explica a epopéia industrial de São Paulo é a solidão.

Realmente, o paulista é capaz de viver, amar, envelhecer sem fazer jamais uma confidência, nem ao médium depois de morto. Os demais brasileiros são extrovertidos ululantes, está certo. Mas não fazem o Brasil. O único que faz o Brasil é o paulista. O autor do Brasil é São Paulo.

Fiz-lhe a pergunta: — "O senhor é paulista?". Era.

Todos os autores têm suas três ou quatro frases bem-sucedidas. Não sei se me entendem. São frases que adquirem vida própria e que duram mais do que o autor, mais do que o estilo do autor, mais do que as obras completas do autor.

Imaginem que a da solidão paulista ainda me rende bons dividendos. Ontem, por exemplo. O telefone me chama. Vou lá. Era uma voz fininha de criança que baixa em centro espírita. Veio a pergunta: "Seu Nelson?". E eu: — "Pois não". Começou dizendo que era paulista. Começo a ficar inquieto.

Continua: — "Vim-lhe falar sobre aquilo que o senhor escreveu". Eu não digo nada ou, melhor, digo: — "Ah, sim, sim". Evidentemente, era a frase. Pergunto: — "A senhora concorda ou não?". E a voz de anjo defunto: — "Foi a maior verdade que o senhor já disse na sua vida. O senhor é paulista?". Quase pedi desculpas de ser pernambucano.

Conversamos uma hora ou mais. Disse a idade: — oitenta.

Era paulista há oitenta anos. Casada desde os quinze, vivera com o marido, outro paulista, por 65 anos. Ele era fazendeiro, não sei onde. E passavam dias, semanas, meses de silêncio total. Muitas vezes, ela já não se lembrava de como era a voz do marido e chegava a esquecer a própria. E a velhinha me perguntou: — "O senhor acredita se eu lhe disser que enterrei meu marido na semana passada?". Acreditei. Em mais de meio século de coabitação, nem lhe conhecera o gemido, o simples gemido. Um ficava escutando o silêncio do outro. Ele agonizara sem gemer.

E, depois, lá foi ela para a capelinha. Floriu, velou e chorou um desconhecido.

[7/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sobre vaidade

Há tempos, contei o caso do ministro que foi, pela primeira vez, à televisão. A família tremeu em cima dos sapatos. E não sei se a própria mulher, uma tia, ou uma cunhada, deu a sugestão espavorida: — "Toma banho! Toma banho!". E porque não lhe ocorrera a idéia do banho, o ministro julgou-se um vencido.

Imediatamente, a esposa se arremessou. Podia ser banho de chuveiro. Mas, como ele ia falar na TV, a santa senhora achou que devia ser banho de imersão. Encheu a banheira. Temperou a água. E o banho ministerial foi digno de Paulina Bonaparte. Do lado de fora, a mulher comandava: — "Esfrega bem! Esfrega bem!". Uma tia cochichou: — "Debaixo do braço!". E a mulher mais alto: — "Debaixo do braço, ouviu?".

Súbito, alguém veio dizer à esposa: — "Homem não sabe tomar banho. Não se limpa direito". Vozes a instigavam: — "Vai lá! Vai lá!". E ela foi. Quando s. exa. saiu, era o membro mais limpo do governo.

E, assim, esfregado pela própria mulher e mais perfumado do que uma noiva, lá se foi o ministro. Ele, só, não. Levava um acompanhamento estarrecedor. Parecia uma passeata de parentes. Havia, na família, uma solteirona de García Lorca. Chamada, não queria ir. Quase a laçaram; e a velha estrábica (era estrábica) teve que se incorporar à massa familiar.

O ministro entrou na estação em ânsias, palpitações sufocantes. Não acreditava em nada, era um ateu nato e hereditário. Todavia, na hora de ir para o ar, vira-se para a mulher: — "Reza por mim! Reza por mim!". E, com uma dispnéia pré-agônica, encaminhou-se para o abismo. Sim, a televisão era, para S. Exa., um abismo voraz e inédito.

Na frente das câmeras e dos microfones, deixou de ser o poder, o governo, a autoridade. Era o contínuo de si mesmo. Houve um momento em que, em pleno ar, teve sede. Apanhou o copo com as duas mãos. Mas parte da água voltava como uma baba.

Já não me lembro por que é que estou contando tudo isso. Ah, já sei, já sei. Eu queria demonstrar o óbvio, isto é, que a televisão fascina qualquer um. O sujeito pode ser rei, ou rainha, ou anjo, ou santo. Mas atravessa três desertos para entrar no programa do Chacrinha, da Dercy ou da Bibi.

Cabe então a pergunta: — e por que esse deslumbramento?

Vamos lá. Primeiro, porque, normalmente, cada um de nós é um ator sem platéia. Representamos, no máximo, para uma namorada, para meia dúzia de familiares, meia dúzia de vizinhos, meia dúzia de credores. E o sujeito que entra no Chacrinha sai de lá célebre. Aparece para milhões. E essa celebridade fulminante é a maior delícia terrena.

E quem fala para tantos pode, com uma frase, fundar uma religião, com outra frase derrubar um império, com uma terceira frase decapitar várias marias antonietas. De mais a mais, a simples imagem nos confere uma nova dimensão. Pois não há idiotas no vídeo.

Lembro-me de um outro ministro. Alguns espíritos, estreitamente positivos, afirmam que é débil mental de babar na gravata. Foi para a televisão e parecia um Disraeli. E De Gaulle, que fez De Gaulle, quando viu a França sob a brutal ocupação francesa? Correu à TV e anunciou: — "Eu sou a Revolução!".

Isso, dito cara a cara, e para meia dúzia, não convence ninguém. Mas uma platéia de 20 milhões não pensa. E não precisou polícia, nem exército, nem bazuca. Uma frase bastou. Sem nenhuma repressão sangrenta, o único francês vivo liquidou o que ele próprio chamou de "carnaval". Baixou sobre a França uma súbita quarta-feira de Cinzas. O que restou de tudo foi a ressaca do caos ululante.

E se alguém disser na televisão que é Joana D'Arc, será Joana D'Arc. Portanto, a França e colônias (se sobrou alguma colônia), todo mundo acreditou que De Gaulle era a própria Revolução de esporas e penacho.

Aqui mesmo tivemos o encontro de Carlos Lacerda e d. Hélder. Iam fazer um diálogo. Mas o diálogo foi monólogo. Só Lacerda falou. O arcebispo disse um "oba" à entrada e um "até logo" à saída.

Por que tal silêncio? Por dois motivos: — primeiro, porque d. Hélder só se interessa por d. Hélder; segundo, porque é um arcebispo de TV, um santo de TV. Ele próprio o disse: — "Não sou um Guevara de salão". É um Guevara de TV. Carlos Lacerda era um único e escasso espectador. D. Hélder só falaria para milhões de carlos lacerdas.

Eis o problema: — ninguém quer mais posar para meia dúzia. O nosso gesto, a nossa ênfase, a nossa careta pedem a grande comunicação, a formidável audiência. Aí está a minha CLASSE.

No passado, era-se atriz, ator, diretor para uma platéia de poucos. Mas hoje o palco passou a ser a pior forma de solidão. Diante dos 150 gatos-pingados de cada sessão, a Duse ou o Zaconi sente-se um Robinson Crusoé sem radinho de pilha. Instalou-se em cada um de nós, do teatro, a utopia das platéias fantásticas.

Disse-me o dramaturgo Plínio Marcos que queria representar e ser representado no ex-Maracanã, hoje Mário Filho, para uma platéia de Vasco x Flamengo, de Santos x Corinthians. Cada um de nós queria ser um Santos x Corinthians, um Vasco x Flamengo. Ou ainda: — qualquer um de nós gostaria de ser, na pior das hipóteses, uma preliminar de Fla-Flu.

Foi a televisão, claro, que nos deu essa obsessão numérica das grandes massas. Volto ao teatro. Lembro-me de um ator que me dizia, patético: — "Eu queria morrer no palco". Um outro, mais radical, além de querer morrer no palco, gostaria de ter nascido no palco. E o palco seria, duplamente, berço e túmulo. Hoje, este último gostaria de nascer e morrer na TV, para milhões.

Por que todos gostamos de fazer passeata? Pode parecer que temos altíssimas e sutilíssimas razões políticas, ideológicas, revolucionárias etc. etc. Na verdade, e até prova em contrário, o que há é a vontade que cada qual tem de ampliar a sua platéia. Reparem como tudo é pretexto para passeata. Há uma greve de veterinários? A CLASSE sai à rua. Mas como, se ela nunca tratou de cachorro? Não importam os cães, sejam eles galgos ou vira-latas. O que interessa é a conquista de uma nova e incalculável platéia.

Outrora, as sacadas não iam ao teatro, os automóveis não gostavam de teatro, os edifícios abominavam o teatro. E a passeata incorpora à sua platéia ideal milhares de carros, e prédios, e esquinas, e avenidas etc. etc. Dirá alguém que é um público sem bilheteria. E pergunto: — e a vaidade? Hoje, há poetas, sociólogos, arquitetos, protéticos, cardiologistas que pagariam, do próprio bolso, para entrar na passeata.

Eu disse "vaidade". Aí está a palavra que explica tudo. O que nos induz à passeata é, digamos, uma vaidade de leitão assado. Se não entenderam a metáfora, tentarei justificá-la.

Imaginem um salão imenso. Banquete. Quinhentas pessoas sentadas, entre casacas e decotes. E, lá do fundo, um garçom traz na bandeja um leitão. Levado na bandeja em desfile, o leitão há de sentir uma vaidade total. Assim também o artista, o literato, o cineasta ou o padre de passeata.

O sujeito parece desfilar triunfalmente, numa bandeja imaginária, e de maçã na boca, como o leitão assado.

[6/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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sábado, 26 de novembro de 2011

Mãe

Posso não ter outras virtudes, e realmente não as tenho. Mas sei escutar. Direi, com a maior e deslavada imodéstia, que sou um maravilhoso ouvinte. O homem precisa ouvir mais do que ver. Qualquer conversa me fascina e repito: — não há conversa intranscendente. E, se duas pessoas se falam, a minha vontade é parar e ficar escutando.

Uma simples frase, ainda que pouco inteligente, tem a sua melodia irresistível.

Ontem, por exemplo. Eu ia passando e vi duas senhoras no poste de ônibus. Conversavam. Estaquei e resolvi ouvi-las. Eram duas gordas e uma delas perguntava à outra: — "Sabe onde fica a praça Serzedelo Correia?". A outra respondeu: — "É pertinho daqui. Ali". E mostrava, com o dedo: — "Está vendo? Ali". A primeira olha e suspira: — "Então vou tomar o ônibus".

A distância que a separava da praça era de uma quadra. Comecei a ver, ali, um mistério insuportável. Por que tomar um ônibus para ir de uma esquina a outra esquina?

Foi mais ou menos o que disse a segunda senhora: — "Não precisa ônibus. Para que ônibus? Tão pertinho". Novo suspiro da primeira: — "Estou tão machucada. Vou mesmo de ônibus".

Foi aí, e só aí, que eu e a outra percebemos a evidência total. Estava, sim, bem machucada. Na minha infância, dizia-se "amarrotada". E ela estava amarrotada. O olho esquerdo, ou direito, tinha um halo negro, um halo que parecia feito de rolha queimada. Uma das orelhas (não vi a outra) estava enorme como a de um boxeur. Enorme e vermelha ou roxa. A simples palavra repercutia, dolorosamente, lá por dentro. E, então, compadecida, a outra quis saber: — "Mas que foi isso? Desastre?".

Parecia um bárbaro atropelamento. E havia, na conversa, um clima folhetinesco. Não perco uma palavra. Veio a resposta: — "Foi meu filho que me deu uma surra". Dizia isso sem nenhum horror, em tom castamente informativo.

Era como se não fosse ela a mãe, e fosse o espancador o filho da vizinha. A segunda senhora deixa passar um momento.

Ainda espicha o pescoço para ver o ônibus. E pergunta, com relativo interesse: — "Bateu na senhora?". Geme: — "Bateu".

E havia no que uma perguntava, e no que a outra dizia, uma naturalidade hedionda.

A primeira olha no relógio de pulso: — "Já são onze horas, meu Deus!". E, como o ônibus não vinha, a outra indaga: — "Bateu por quê?". Disse: — "Me pediu dinheiro. Eu não tinha. Já sabe. Meu filho tem um gênio que Deus te livre. Muito nervoso". A segunda olha no fim da rua: — "E esse ônibus que não vem?". Espia de novo o relógio. Suspira: — "Caso sério". A primeira está dizendo: — "Quando respiro...".

Respira fundo: — "Dói aqui". Espeta o dedo: — "Aqui".

E, súbito, chega o ônibus. Uma subiu, fácil e lépida. Mas a mãe espancada foi uma dificuldade. Dizia baixinho, como se o motorista pudesse ouvi-la: — "Espera, espera". O trocador fica olhando e reclamando: — "Como é, minha tia?".

Lá fui eu ajudá-la. Um outro apareceu. Foi empurrada, quase carregada. Gemia: — "Ai, ai". Finalmente, entrou. Arquejou para mim e para o outro: — "Deus te abençoe, Deus te abençoe!". O trocador deu o sinal, o ônibus partiu. Começou, para ela, a longa viagem de uma esquina para outra esquina.

Pouco depois, estava eu no táxi. E pensava: — "Será que essa mãe não tem marido? Ou um outro filho? Ou vizinho?". Vamos crer que fosse viúva de filho único. Mas teria vizinhos. E, além disso, há a imprensa, o rádio, a televisão, as duas casas do Congresso, as Forças Armadas etc. etc. E toda essa maravilhosa estrutura não faz nada, não exala um pio? Um filho pode espancar a mãe e fica por isso mesmo? Admito que não se faça nada. Mas o que não entendo é que ninguém se espante. O brasileiro cada vez se espanta menos.

A própria vítima não me pareceu espantada. Vejam bem: — não a espantou a surra do filho, usara um tom impessoal e, repito, apenas informativo. Já falei das orelhas? Acho que não. Uma delas estava roxa, um roxo de orquídea e de gangrena. Agora me lembro: — falei, sim, da orelha.

Paciência. Lembro-me de que, ao contar a surra, inflexionava como se tivesse pena, não ódio (ódio nenhum), pena do filho. Era uma espécie de ternura apiedada. Se a outra condenasse o rapaz, ela o teria defendido, talvez. Talvez, não. Estou certo
de que o teria defendido. E, se a apertassem muito, acabaria dando razão à surra. E iria para o espelho acusar a própria imagem: — "Bem feito, bem feito!".

Eis o que eu queria dizer: — essa mãe, capaz de dar razão à surra, existe e aos milhares, existe aos milhões, em todas as terras e em todos os idiomas. É o próprio mundo — não, não —, é a própria família que atira pela janela todos os seus valores.

Há poucos dias, um pai amargurado escreveu-me: — "Meu filho sabe mais do que eu! Minha filha sabe mais do que a mãe!". Porque fez dezoito, ou vinte, ou 23 anos, o sujeito passa a ter a "verdade da idade", a "razão da idade", o "direito da idade", o "poder da idade", a "virtude da idade".

E todos assumem a mesma atitude da abdicação: — o jornalista, o político, o psicólogo, o sociólogo, o sacerdote, os artistas. O pintor Raul Brandão berrava numa galeria de pintura: — "O jovem tem todos os defeitos dos mais velhos e mais um: — a imaturidade!".

Outro dia, tivemos a jovem revolução francesa. Os estudantes da França explodiram. A princípio, pensou-se que eram as vítimas da fome, furiosas contra a fome. Mas logo se percebeu que era a antifome. Sim, a antifome que devastava a França. E o mundo viu os filhos da alta burguesia virando carros, arrancando paralelepípedos. Ninguém entendia nada.

Certo parisiense, perfeito idiota da objetividade, escreveu: — "A desgraça da França são os franceses". Outro propôs uma Resistência contra os franceses. Um terceiro queria uma nova invasão da Normandia que salvasse a França da brutal ocupação francesa.

E eram os jovens, os jovens, os jovens. Como eram os jovens, todo mundo lhes deu razão. Cabe a pergunta: — e que fizeram eles, além de arrancar paralelepípedos e de quebrar vidraças? Foram pichar as obras-primas do teatro Odeon. Passaram a gilete ou a brocha nas telas famosíssimas. Por que esse ódio, esse estupro plástico? Porque os estudantes eram contra a "arte oficial". Mas fecharam a Bienal, por se tratar de arte moderna, capitalista etc. etc. O festival de Cannes foi também fechado, a tapa. Alguém que acordasse, de repente, havia de imaginar que era uma nova ocupação nazista.

Os nazistas nunca se lembraram de humilhar, degradar os belos quadros, as obras-primas de todos os tempos. E o curioso é que jamais ocorreu aos estudantes franceses que eram eles a alta burguesia, eles o capitalismo, eles as classes dominantes.

Volto à mãe que apanhou do filho e deu razão à surra.

Foi um pouco o papel da França ao ser agredida pela própria juventude. Lá ninguém insinuou um protesto. Igualmente suicida é a posição da família diante dos seus filhos.

Dizia-me, ontem, um padre de passeata: — "A família tem seus dias contados". Viu a minha perplexidade e perguntou: — "Ou você não percebe que a família é uma instituição falida?".

Bem. Não direi falida. Suicida, talvez.
[5/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Órfãos de rosas

E, de repente, o sujeito fez um comício. Era um sarau de grã-finos.

A dona da casa não fazia outra coisa senão passar. Estava com penteado de Josefina Bonaparte, decote de Josefina Bonaparte, vestido de Josefina Bonaparte (só a maquilagem é que era de cadáver). Falei das sandálias? Não, não falei das sandálias.

Sandálias também de Josefina Bonaparte. E o rapaz, dizia eu, fazia um comício.

Abro um parêntese para falar do rapaz. Chamá-lo de bêbedo é dizer muito pouco. O comum dos paus-d'água precisa beber. Esse, não. Sem tocar em álcool, sem tomar água da bica, está embriagado. Imaginem um bêbedo que não bebe ou, melhor dizendo, um bêbedo nato. Dirão que isso é impossível. Não sei. Simplesmente constatei. E, se quiserem, vão discutir com o fato. Fecho o parêntese.

Que dizia o pau-d'água nato e talvez hereditário? Dizia e repisava: — "A grã-fina não tem alma". Era falar de corda em casa de enforcado. Sem contar a dona da casa, que continuava passando, todos ali eram grã-finos. Mas ninguém se ofendeu. Um dos decotes presentes quis saber: — "Todas?". E o bêbedo, que também era grã-fino, teve um repelão feroz: — "Todas!".

Foi então que alguém objetou: — "É um erro generalizar".

Cada grã-fina, ah, estava lisonjeadíssima de não ter alma. O pau-d'água, na sua cólera fácil, explodiu: — "Erro, vírgula; erro, uma ova!". Foi aí que, dos presentes, um gordo, com uma papada de Nero de Cecil B. de Mille, interrompeu: — "Há uma exceção" — e repetiu, mexendo o gelo do uísque: — "Há uma exceção". Logo todo mundo quis saber que grã-fina, entre tantas, entre todas, tinha uma alma.

O Nero fez um suspense e o prolongou. Por fim, disse o nome: — "Fulana!". Os presentes se arremessaram. Queriam saber que ato, fato ou feito tinha cometido a Fulana para que lhe atribuíssem essa coisa preciosa, entre todas as coisas, que é uma alma. Atropelado por tantas curiosidades, o gordo dizia, risonhamente: — "Eu explico, eu explico!". E disse, por fim: — "Leu as orelhas de Marcuse!".

A anfitriã passou mais uma vez (e sua maquilagem de cadáver só não fazia mais efeito porque as outras usavam também uma hedionda máscara amarela). Desta vez, o próprio bêbedo nato balançou. Teve um movimento de fluxo e refluxo que quase o entorna em cima dos decotes. Houve uma certa aquiescência. Se lera as orelhas, tinha um certo direito à alma. O Nero deu outras informações, forneceu dados biográficos. De mais a mais, participara da última passeata.

Fora vista, entre os intelectuais, numa fotografia de Manchete. E eu, no meu canto, e só ouvindo, imaginava que o nosso grã-finismo ganhou uma George Sand na leitora de orelhas. Depois de negar a alma das grã-finas, o bêbedo hereditário passou a outro assunto. No meio da sala, pôs-se a declamar: — "Uma rosa é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa, é uma rosa". Lera ou ouvira isso não sabia onde, nem quando. E ignorava se as rosas tinham ou não tinham as vírgulas que acrescentara. Repetiu: — "Uma rosa é uma rosa uma rosa uma rosa uma rosa" (tirou as vírgulas). Mas o bêbedo é um emotivo e já queria chorar. Achava justo que uma rosa fosse mil vezes rosa, e eternamente rosa.

Passava mais uma vez a dona da casa. Agarrou-a por um braço. Perguntou-lhe: — "A senhora tem uma rosa em seu jardim?". A máscara amarela sorria (cada vez mais cadavérica). Disse: — "O autor do meu jardim é o Burle Marx". Para o ébrio, a autoria não provava a existência de rosas. E já arrastava a anfitriã: — "Vamos ver! Quero ver!".

Organizou-se uma súbita expedição ao jardim do palácio. Ele exigia rosas, não abria mão das rosas. Desceram todos. Lá fora as estátuas morriam de frio na noite gelada. Dizia-se: — "O Burle Marx é um gênio! Um gênio!".

Decerto, o jardim era uma obra-prima. Mesmo porque o gênio de Burle Marx está acima de qualquer dúvida ou sofisma. Todavia, depois de meia hora de busca, fez-se a constatação vagamente humilhante: — não havia, ali, uma única rosa. Nenhuma, nenhuma. A mais espantada era a dona da casa. Dizia: — "É mesmo! É mesmo!". O Burle Marx esquecera as rosas, e mais: — os jardins de Burle Marx não têm flores. Houve um espanto, quase um terror. A anfitriã sentiu-se cruelmente órfã de rosas. O bêbedo exultava.

Dizia, em arrancos: — "O Brasil é um país sem rosas. Não há flores. Flores, flores!". Todos voltavam, sucumbidos. Alguém perguntava a um outro: — "Há quanto tempo você não vê uma rosa?". Um confessou que tinha que ir ao cemitério, no dia de Finados, para ver flores. E o bêbedo, com alegre crueldade, repetia: — "Por isso, esta droga não vai pra frente! O Brasil é um país perdido!".

Varado de indignação, berrava: — "Há gramados e não há flores. Mas para que grama, se não somos cabras?".

Interpelava os presentes, damas e cavalheiros: — "Somos cabras?". Embora parecesse óbvio que ninguém, ali, era cabra, vozes esclareceram: — "Não, não, não!".

E, de repente, o que era uma festa tornou-se uma sessão fúnebre.

Só quem falava era o bêbedo nato.

Argumentou com a Europa. Lá não havia uma varanda, ou uma janelinha, sem flores. E por que a tristeza das novas gerações brasileiras? Por que os gabinetes dos psicanalistas tinham filas? A depressão nacional achava uma razão nítida e profunda: — as rosas, as rosas, as rosas.

Os presentes concordavam em que o Brasil precisa, não de um estadista, mas de um jardineiro. Aqui, só os defuntos têm flores.

Eu continuava um maravilhado ouvinte de tantas opiniões ilustres. E não me lembro por que, de repente, os grã-finos saíram das flores para as passeatas. O Nero de Cecil B. de Mille tomou a palavra. Dizia, por outras palavras, o seguinte: — "As passeatas vão salvar o Brasil".

Alguém duvidou: — "Por que, meu Deus?". A papada do gordo vibrou: — "É o povo! É o povo!". Falava e o suor pingava da papada como um pranto.

E, então, o bêbedo teve outro rompante: — "A passeata não salva ninguém!". O gorducho bramava: — "É o povo! E o povo!". Quase se atracavam no meio do salão. Vozes concordavam em que era o povo. O ébrio teve um riso feroz: — "Povo nenhum! O povo não se meteu!". Na ira de sua embriaguez, teimou: — "Vocês viram? As fotografias? Não tinha um negro, um operário, um torcedor do Flamengo!".

Silêncio. E, realmente, ninguém se lembrava de ter visto um negro, um operário.

O pau-d'água começou a chorar: — "Sabem quem estava lá?". Suspense. Ele olha, uma por uma, as caras que o cercavam. A dona da casa, que vinha passando, parou. E o outro soluçando: — "Quem estava lá eram as classes dominantes! Foi a passeata das classes dominantes. Nenhum perna-de-pau, nenhum cabeça-de-bagre, nenhum pau-de-arara. Só as classes dominantes!".

E o bêbedo hereditário teve, ali, nas nossas barbas estarrecidas, o delirium tremens. Via as classes dominantes, em cima e embaixo, no asfalto e nas sacadas da Avenida.

As classes dominantes o atropelavam. Acabou vomitando no tapete.
[31/7/1968]

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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A atriz inteligente

Não há dúvida que se cavou um abismo, um voraz abismo, entre o antigo teatro e o novo. (Pode parecer que eu esteja aqui dizendo o óbvio ululante. Paciência). E não se trata do estilo de representação.

Outrora, um ator entrava em cena com uma saúde e um estardalhaço de centauro. E o último suspiro da Dama das camélias era um rugido. Hoje, berra-se pouco, urra-se menos. Sim, o artista é mais sóbrio, mais contido. Morre e mata com mais cerimônia e polidez. Sua tensão é superiormente controlada.

Mas o que me impressiona não é a dessemelhança de comportamento cênico. O artista mudou até na vida real.

Voltemos, por um momento, à belle époque, Faz de conta que ainda não houve a primeira batalha do Marne, nem os táxis de Paris salvaram a França. Imaginemos por um momento que Mata-Hari, a espiã de um seio só, ainda não foi fuzilada, e que tampouco ocorreu a primeira audição do Danúbio azul.

Pergunto: — e que fazia então, no palco e fora dele, uma atriz? Qual o seu tipo de vida? As prima-donas vinham realizar, cá fora, todo o patético e todo o sublime dos papéis românticos. Uma Sarah Bernhardt amava mais no mundo do que no palco. Seria uma humilhação para uma atriz passar quinze minutos sem uma paixão suicida e homicida. O que a Duse amou D'Annunzio! O grande homem estava, então, em furioso apogeu.

Durante vinte anos, o poeta reinou em toda a Europa. Era uma vergonha não ser amante de D'Annunzio. E a Duse o amou e, pior do que isso, deu-lhe dinheiro. Não satisfeita, a trágica mandava o seu "relações-públicas" espalhar que pagava o esteta. A humilhação também era promocional. Vejam bem: — uma atriz precisava ter, por fundo, amores reais e crudelíssimos. Ou ateava paixões e suicídios ou deixava de ser bilheteria.

Hoje, não há mais similitude entre o real e o ideal. A ficção vai para um lado e a vida para outro. Vejam o teatro brasileiro. As nossas musas não amam ou, se amam, ninguém sabe. Dirá alguém que, hoje, o sexo é menos promocional. Pode ser, quem sabe? E, realmente, depois de Freud, o homem passou a amar menos.

Ainda outro dia, uma mocinha, em pânico, correu à mãe. Soluçava: — "Estou amando! Estou amando!". A mãe tremeu em cima dos sapatos, horrorizada. O pai soube e também pôs as mãos na cabeça. Foi chamado, às pressas, um psiquiatra. Finalmente, a menina recebeu um tratamento de choques para se curar do amor. O amor virou doença.

Volto ao teatro. Há uns meses que faço a pergunta, sem lhe achar a resposta: — "O que é que mudou essencialmente nas atrizes, nos atores, nos diretores?". Outra pergunta: — "E por que não há mais Duse, nem há mais D'Annunzio?".

Imaginem vocês que, de repente, descobri toda a verdade.

Ontem, eu ia ver, no Teatro Jovem, a peça de José Wilker, Trágico acidente destronou Teresa. (Um texto admirável. Resta saber que tratamento lhe deu Kleber Santos). Mas aconteceu não sei o que e fiquei em casa. Ligo a televisão. E, por felicidade, vi e ouvi a entrevista da sra. Maria Fernanda. Foi aí que, de supetão, descobri qual é, exatamente, a dessemelhança entre a atriz moderna e a da belle époque. Uma é inteligente e a outra não.

Não exagero. No antigo teatro, a atriz não pensava, simplesmente não pensava. A maioria absoluta, para não dizer a unanimidade, nascia, vivia e morria sem ter arriscado jamais uma frase própria. Graças a Deus, não havia rádio, nem televisão. E, na hora de dar uma entrevista, a diva chamava o poeta mais à mão e este redigia, com o maior rigor estilístico, as suas declarações. Mas, no teatro moderno, a atriz pensa como nunca. E as que não pensam pensam que pensam. (Desculpem o jogo de palavras).

Pois bem. O que a televisão nos mostrou foi a sra. Maria Fernanda pensando. O repórter e deputado Amaral Neto fazia as perguntas. E justiça se lhe faça: — como a atriz falou bem! Não me refiro somente às idéias, todas de uma fascinante originalidade. Há também a considerável vantagem do métier, que é a inflexão. E como a TV é imagem, a atriz faz uma composição cênica da mais fina qualidade. Assim o sorriso, e o olhar, e o movimento das mãos e, mesmo, o clima que se evolava da entrevistada. O fato é que a sra. Maria Fernanda não dizia duas ou três frases sem lhes salpicar outras duas ou três
verdades eternas.

A notável atriz está representando, no momento, uma peça do falso grande dramaturgo Arthur Miller. E discorreu, exatamente, sobre esse texto e respectiva encenação. O repórter Amaral Neto pediu-lhe que resumisse a mensagem do drama. Outra qualquer se teria arremessado em uma fulminante resposta. Não a sra. Maria Fernanda. Fez uma pausa de duração calculada. E, por fim, respondeu: — "A peça é o problema de opção".

Nos lares, as donas de casa, os chefes de família, as tias se entreolharam. Rola, por toda a cidade, um suspense atroz. Mas havia mais, havia mais. E a sra. Maria Fernanda varreu todas as dúvidas: — "O problema da nossa época é a opção". Alguns descontentes, que sempre os há, poderão insinuar que a atriz não disse nada, nem de novo, nem de profundo.

Vejamos: — "O problema de nossa época é a opção". Isso, dito por qualquer outra, não teria maior transcendência. Mas, em teatro, a inflexão é tudo. Um vago "bom-dia", dito da maneira certa, adquire uma profundeza inimaginável. E a "opção" da sra. Maria Fernanda deu-nos uma vertigem de abismo. Ao mesmo tempo, ela parecia ter, na testa, a seguinte manchete: — "Inteligência aqui é mato".

Sim, subiu muito o nosso nível intelectual. Contei o caso daquela grã-fina que leu as orelhas de Marcuse. Leu as orelhas e saiu, na passeata, ao lado dos intelectuais e como um deles. Mas voltemos ao nosso teatro.

Tenho um amigo que é um retrógrado, um obscurantista, que os íntimos chamam de "a própria Idade Média". Ele mesmo, antes de opinar, faz sempre a ressalva: — "Eu, que sou a Idade Média" etc. etc. Esse amigo relembrava, com inconsolável nostalgia, as gerações românticas.

Naquela época, o ator era grande porque não pensava. E essa radiante obtusidade dava-lhe a tensão dionisíaca que a poesia dramática exige. Quanto à "opção", não sei se ela existe. A meu ver, nunca optamos tão pouco. Somos pré-fabricados.

É difícil para o homem moderno ousar um movimento próprio. Nossa vida é a soma de idéias feitas, de frases feitas, de sentimentos feitos, de atos feitos, de ódios feitos, de angústias feitas. A última passeata mostrou como é rala a nossa autodeterminação.

Eis o fato: — no meio do caminho, o líder Vladimir Palmeira trepou no automóvel e disse: — "Estamos cansados". Ninguém estava cansado. Mas, como ele o dizia, começamos a arquejar de uma dispnéia induzida. (Parecíamos uns barqueiros do Volga).

Em seguida, ele acrescentou: — "Vamos sentar". Falava para a parte mais lúcida do Brasil. Ali, estavam médicos, romancistas, poetas, atores, atrizes, arquitetos, professores, sacerdotes, estudantes, engenheiros (só não víamos um único preto ou
um único operário).

Como reagiu a elite espiritual do país? Sentando-se no asfalto e no meio-fio. A única que permaneceu de pé e assim ficou foi uma grã-fina, justamente a que lera as orelhas de Marcuse. Estava com um vestido chegado de Paris. E não quis amarrotar a saia.

Todos sentados, e ela, alta, ereta, numa solidão de Joana D'Arc.

[30/7/1968] 
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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