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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

De como caçar o ratinho

Os jornais da oposição continuam implicando com o que chamam de "ciclo zoológico" do Palácio Guanabara, depois que lá se instalou o governo de Carlos Frederico Werneck De. Aqui estamos a ler um matutino que reprova a existência de alguns passarinhos nas gaiolas penduradas nas varandas do palácio, porque os ditos passarinhos fazem "fi-fiu" para as funcionárias que transitam pelo local. Não achamos que isto seja feio. O papai aqui não é passarinho nem nada, mas já fez muito "fi-fiu" para funcionárias. Em alguns casos — inclusive — houve adesão.

Mas as folhas da oposição não perdoam. O "Diário Carioca" informa que o "ciclo zoológico" aumentou com o aparecimento de um ratinho cujo — cada vez que corre pelo assoalho do Guanabara — obriga a um monte de funcionárias a subir nas cadeiras e levantarem a saia. — "Ratinho legal" — diria Primo Altamirando, nosso abominável parente.

Já Tia Zulmira, senhora de uma retidão de caráter impressionante, quando soube que há funcionária se dando ao feio vício do strip-tease amador, só por causa do ratinho, ficou indignada e telefonou para o Palácio Guanabara, chamando o administrador. Assim que este atendeu, ela perguntou se já descobriram o buraco do ratinho. O administrador entendeu mal. Tia Zulmira explicou que era o buraco onde o ratinho mora.

Diante da resposta afirmativa, a sábia senhora ensinou um meio infalível de apanhar o ratinho, para que termine de uma vez por todas esse negócio de funcionárias em cima dos móveis fazendo strip-tease de graça.

— Vocês comprem uma lata grande de caviar — explicou a sábia ermitã da Boca do Mato. — Mas comprem caviar do bom: Romanoff, de preferência. Todo dia de manhã um funcionário do palácio pega uma torradinha, bota um pouco de caviar em cima, e enfia no buraquinho onde o ratinho mora.

— Durante quanto tempo? — perguntou o administrador do Guanabara.

— Durante 29 dias — informou Tia Zuzu. — Todos os dias, à mesma hora, coloquem uma torradinha com caviar em cima, no buraco onde mora o ratinho. Quando chegar o trigésimo dia, o encarregado desse serviço deve apanhar um martelo e ficar ao lado do buraquinho. Depois enfia no buraquinho a torradinha sem o caviar. Quando o ratinho puser a cabeça pra fora e perguntar: "Mas que negócio é esse? Só a torradinha? Cadê o caviar?" o funcionário dá-lhe uma traulitada na cabeça e está consumada a "Operação Ratinho".

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O índio

Contou como é que foi. Disse que — de repente — resolveu se fantasiar, coisa que não fazia há anos. Podia optar por duas fantasias: a de árabe ou a de índio, que são as mais fáceis de se fazer a domicílio.

Árabe — sabem como é — a gente faz até com toalha escrito "Bom Dia". Amarra uma de rosto na cabeça e enrola outra de banho no corpo. Por baixo: cueca. Nos pés: sandália. Não fica um árabe rico, mas já dá pro consumo. Índio ainda é mais fácil. Faz-se com uma toalha só, bem colorida. Enrola-se a dita na cintura, com short por baixo. Na cabeça coloca-se o que antes foi o espanador.

Contou que foi de índio porque em casa tinha dois espanadores. Não ficou um índio legal, desses que o John Wayne mata aos potes, em cinemascope. Mas também não chegava a ser desses índios mondrongos que tiravam retrato com o Dr. Juscelino. Se tivesse saído de árabe não teria apanhado a vizinha, distinta que vinha cercando desde setembro, quando ela se mudara para o 201.

E continuou contando.

Índio de óculos também já era debochar demais da realidade. Assim, ao sair pela aí, deixou os óculos na mesinha de cabeceira. Andou pela Avenida, viu as tais sociedades carnavalescas e depois entrou num bar para lavar a caveira. Quando voltou para casa estava ziguezagueando.

Bebera de com força e entrou no edifício balançando. E — coitado — sem óculos, não enxergava direito. Subiu no elevador, saltou no segundo e foi se encostando pelas paredes do corredor. Tava um índio desses que quer apito.

— Que é que tem tudo isso a ver com a vizinha?

Sem óculos — tornou a explicar — em vez de entrar no 202 (seu apartamento), viu a porta do 201 aberta e foi entrando de índio e tudo.

— Era o apartamento da vizinha?

— Era.

— E ela?

— No começo não quis. Mas acabou entrando pra minha tribo.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sábado, 5 de outubro de 2013

Levantadores de copo

Eram quatro e estavam ali já ia pra algum tempo, entornando seu uisquinho. Não cometeríamos a leviandade de dizer que era um uísque honesto porque por uísque e mulher quem bota a mão no fogo está arriscado a ser apelidado de maneta. E sabem como é, bebida batizada sobe mais que carne, na COFAP. Os quatro, por conseguinte, estavam meio triscados.

A conversa não era novidade. Aquela conversa mesmo, de bêbedo, de língua grossa. Um cantarolava um samba, o outro soltava um palavrão dizendo que o samba era ruim. Vinha uma discussão inconsequente  os outros dois separavam, e voltavam a encher os copos.

Aí a discussão ficava mais acalorada, até que entrasse uma mulher no bar. Logo as quatro vozes, dos quatro bêbedos, arrefeciam. Não há nada melhor para diminuir tom de voz, em conversa de bêbedo, do que entrada de mulher no bar. Mas, mal a distinta se incorporava aos móveis e utensílios do ambiente, tornavam à conversa em voz alta.

Foi ficando mais tarde, eles foram ficando mais bêbedos. Então veio o enfermeiro (desculpem, mas garçom de bar "de bêbedo" é muito mais enfermeiro do que garçom). Trouxe a nota, explicou direitinho por que era quanto era etc. etc, e, depois de conservar nos lábios aquele sorriso estático de todos os que ouvem espinafração de bêbedo e levam a coisa por conta das alcalinas, agradeceu a gorjeta, abriu a porta e deixou aquele cambaleante quarteto ganhar a rua.

Os quatro, ali no sereno, respiraram fundo, para limpar os pulmões da fumaça do bar e foram seguindo calçada abaixo, rumo a suas residências. Eram casados os quatro entornados que ali iam. Mas a bebida era muita para que qualquer um deles se preocupasse com a possibilidade de futuras espinafrações daquela que um dia — em plena clareza de seus atos — inscreveram como esposa naquele livrão negro que tem em todo cartório que se preze.

Afinal chegaram. Pararam em frente a uma casa e um deles, depois de errar várias vezes, conseguiu apertar o botão da campainha. Uma senhora sonolenta abriu a porta e foi logo entrando de sola.

— Bonito papel! Quase três da madrugada e os senhores completamente bêbedos, não é?

Foi aí que um dos bêbedos pediu:

— Sem bronca, minha senhora. Veja logo qual de nós quatro é o seu marido que os outros três querem ir para casa.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sábado, 13 de julho de 2013

A dactilógrafa

Amigo nosso, que sofre de sinceridade alcoólica, depois do terceiro contou aqui pra este pobre escravo do padrão ouro, que batuca esta intimorata Remington semiportátil enquanto o sol lá fora assovia coió pra gente, o que aconteceu no seu escritório, esta semana. E contou sem o menor remorso.

Deu-se que sua secretária, senhora respeitabilíssima, que era sua auxiliar direta há muitos anos, cometeu a temeridade de casar e largar o emprego, no momento em que a maioria das mulheres está largando o marido pra arranjar emprego. Mas a secretária quis, disse que ia e não houve jeito. Ou melhor, o jeito foi botar um anúncio no jornal, na base do "precisa-se de secretária".

Diz o amigo que essa coisa de existir muita gente procurando emprego é bafo de boca, porque somente depois do quinto dia é que apareceram duas candidatas. Apareceram quase ao mesmo tempo, explicaram por que vinham e ficaram sentadinhas na sala de espera, aguardando a vez.

Diz ainda o amigo que, lá de dentro, sem ser visto, ele examinou bem as duas, principalmente a segunda. A primeira, segundo sua descrição, era dessas magras e de óculos, que sofrem de utilidade, sabem fazer tudo, têm pele ruim e cara de quem nunca tirou menos de 10 no colégio. Pela pinta, segundo sua própria expressão, era uma mulher invicta.

A segunda... Bem, a segunda tinha aquela cor de pele que a gente mandaria pintar no carro, se assim pudesse ser feito. Tinha olhar 45, corpo que é a forma universal e aquele ar inocente das que nunca foram inocentes.

A primeira era estenógrafa, arquivista, falava inglês, francês e espanhol. Era dactilógrafa, taquígrafa e tinha cursos de um modo geral. Mas ele não quis saber nada disso. Quando ela entrou na sala limitou-se a dizer que a vaga — infelizmente — já estava preenchida.

Então, depois que a bruxa foi embora, mandou entrar a certinha que, num bambolear ameno e compassado, entrou, sentou numa cadeira próxima e deixou um joelho de fora, ao cruzar as pernas. Ele pigarreou e explicou que a vaga era dela.

A moça agradeceu muito e foi obrigada a confessar que aquele era o seu primeiro emprego, que não tinha experiência nenhuma. E, ante a decisão dele, murmurou aveludadamente que só batia a máquina de escrever com dois dedos. Mesmo assim ficou no emprego.

Quando terminou de contar, perguntamos o que dissera, quando a boa confessou que só batia a máquina com dois dedos.

— Eu perguntei pra ela assim: Pra que tanto dedo, minha filha? E fomos tomar um lanche.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sábado, 29 de junho de 2013

Ferro em Ferros

Sim, companheiros: ferro em Ferros! Aqui essa a notícia, retirada do jornal tal qual foi publicada: "As moças da cidade de Ferros (MG), situada no coração de uma das zonas mais ricas de minério de Minas Gerais, iniciaram uma greve: a greve do flerte, que consiste em não aceitar como namorados, no período de férias, os rapazes que as trocam, durante o ano letivo, pelas estudantes que vêm de fora.

A greve das moças de Ferros (cidade atualmente com 20 mil habitantes) consiste em não aceitar convites para festas, cinemas ou passeios no jardim (fora o mais importante, naturalmente; e, naturalmente, o parêntesis é por nossa conta), em represália ao fato de os rapazes da localidade trocarem-nas sistematicamente, de abril a novembro, pela moças que se matriculam na Escola Normal da cidade."

Taí no que dá os ferristas (ou será ferrenhos, ou mesmo ferreiros, Osvaldo? Verifica aí) gostarem de novidades. Podiam maneirar com as mocinhas locais. Mas não: chegam as normalistas, mocinhas de fora e — portanto — mais propensas à confraternização, e eles aderem, deixando as beldades locais no frigorífico, até as férias. Agora as ferristas, sem a concorrência das condescendentes rivais, endureceram o jogo, feridas que estão no seu amor-próprio pelo desprezo que dura todo o ano letivo.

Resultado: os rapazes de Ferros vão ficar numa abstinência bárbara de mulher: de janeiro a março. Três meses sem mulher, companheiros. Será que eles aguentam  Se fosse conosco estávamos mais jururu que um galo de terreiro olhando o cercado das frangas.

Mas foi bem-feito. Quem mandou ferirem o amor-próprio das moças de Ferros? Vocês desculpem, sim? Mas era inevitável.

Está na cara que Primo Altamirando, quando leu a notícia no jornal, trocadilhou inexorável: "Quem em Ferros fere, em Ferros será ferido."

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quinta-feira, 13 de junho de 2013

Colchão de vaca

Você aí, sabia que vaca tem um sentimento cheio de sutilidades? Agora, sente o drama, vá. Vaca também gosta de boa vida, de ser bem tratada, merecer o seu elogiozinho, como qualquer pessoa vaidosa ou precisada do chamado calor humano.

Claro que, no caso da vaca, melhor seria dizer calor bovino.

Mas não se aplica a expressão. Nada se aplica porque vaca gosta de calor bovino (aliás ela deve gostar mais de calor taurino do que de calor bovino) mas é muito exigente também em relação ao calor humano. Quem disse isso não foi Freud, no seu substancioso manual. Quem disse foram os discípulos atuais do Segismundo...

Como, minha senhora? Se o primeiro nome de Freud era Segismundo?

E era, não somente o seu primeiro nome como também o seu primeiro complexo. — Mas — prosseguindo — psicanalistas modernos descobriram que vaca é um bicho muito sutil e muito vaidoso, sendo que este segundo sentimento qualquer um manja: basta reparar no rebolado pretensioso de todas as vacas, quando caminham. Quanto à sutileza das vacas, foram estudos mais apurados que levaram os psicanalistas à certeza de que vaca bem tratada é mais gentil. A gente tem que puxar saco de vaca, para ela dar mais leite.

Antigamente pensava-se que, para vaca dar leite, bastava puxar suas tetas (lá dela), mas agora já se sabe que também é preciso puxar saco. Diz o criador holandês Van Diesen, num livro sobre pecuária: "Aquele que criar suas vacas em desconforto terá prejuízo. A vaca melhora sempre sua produção de leite, quando cuidada com mais carinho e deferência."

E foi para aumentar a deferência para com as vacas que os pecuaristas europeus passaram a usar colchão de espuma de borracha nos estábulos. As vacas que dormem em colchão de espuma ficam muito mais pródigas do que as outras, às quais se dá um mísero catre de palhas secas para

 repousar. Os vendedores de colchões de espuma de borracha para vacas afirmam que os animais gostam e se acostumam de tal forma à nova Comodidade que, depois de certo tempo, passam a zelar pela limpeza dos seus leitos.

Enfim, o que eles querem dizer é que vaca tratada com boa educação também fica bem educada e, depois de um certo tempo, já não faz mais pipi na cama.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sexta-feira, 7 de junho de 2013

Inferno nacional

A historinha abaixo transcrita surgiu no folclore de Belo Horizonte e foi contada lá, numa versão política. Não é o nosso caso. Vai contada aqui no seu mais puro estilo folclórico, sem maiores rodeios.

Diz que era uma vez um camarada que abotoou o paletó. Em vida o falecido foi muito dado à falcatrua, chegou a ser candidato a vereador pelo PTB, foi diretor de instituto de previdência, foi amigo do Tenório, enfim... ao morrer nem conversou: foi direto para o Inferno.

Em lá chegando, pediu audiência a Satanás e perguntou:

— Qual é o lance aqui?

Satanás explicou que o Inferno estava dividido em diversos departamentos, cada um administrado por um país, mas o falecido não precisava ficar no departamento administrado pelo seu país de origem.

Podia ficar no departamento do país que escolhesse.

Ele agradeceu muito e disse a Satanás que ia dar uma voltinha para escolher o seu departamento. Está claro que saiu do gabinete do Diabo e foi logo para o Departamento dos Estados Unidos, achando que lá devia ser mais organizado o inferninho que lhe caberia para toda a eternidade.

Entrou no departamento dos Estados Unidos e perguntou como era o regime ali.

— Quinhentas chibatadas pela manhã, depois passar duas horas num forno de 200 graus. Na parte da tarde: ficar numa geladeira de cem graus abaixo de zero até as 3 horas, e voltar ao forno de 200 graus.

O falecido ficou besta e tratou de cair fora, em busca de um departamento menos rigoroso. Esteve no da Rússia, no do Japão, no da França, mas era tudo a mesma coisa. Foi aí que lhe informaram que tudo era igual: a divisão em departamento era apenas para facilitar o serviço no Inferno, mas em todo lugar o regime era o mesmo: quinhentas chibatadas pela manhã, forno de 200 graus durante o dia e geladeira de 100 graus abaixo de zero, pela tarde.

O falecido já caminhava desconsolado por uma rua infernal, quando viu um departamento escrito na porta: Brasil. E notou que a fila à entrada era maior do que a dos outros departamentos. Pensou com suas chaminhas: "Aqui tem peixe por debaixo do angu."

Entrou na fila e começou a chatear o camarada da frente, perguntando por que a fila era maior e os enfileirados menos tristes. O camarada da frente fingia que não ouvia, mas ele tanto insistiu que o outro, com medo de chamarem a atenção, disse baixinho:

— Fica na moita, e não espalha não. O forno daqui está quebrado e a geladeira anda meio enguiçada. Não dá mais de 35 graus por dia.

— E as quinhentas chibatadas? — perguntou o falecido.

— Ah... o sujeito encarregado desse serviço vem aqui de manhã, assina o ponto e cai fora.

_________________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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domingo, 26 de maio de 2013

Mulheres medicinais

Turco, vocês sabem como é, turco é chato pra mulher. Foram os turcos que inventaram ou, pelo menos, que conservaram aquilo que Primo Altamirando chama de proporção racional, isto é, muitas mulheres para um homem só. E foi justamente o Ex-presidente da Assembléia Nacional Turca — Refik Koraltan — que entrou numa fria danada, por causa de mulher.

Koraltan, que conta atualmente 71 anos, foi acusado de ter mandado vir da Alemanha para a Turquia uma jovem de 25 anos, correndo as despesas da viagem como se fosse equipamento médico.

Isto deu um bode danado, porque a oposição política caiu em cima dele, dizendo que mulher nunca foi equipamento médico. Ele, coitado, com a mulher em casa, explicou que houve um mal-entendido. Importara, realmente, equipamento médico para sua esposa, que estava doente e aproveitara para mandar vir uma enfermeira. Daí a confusão.

Mas os inimigos de Koraltan não foram nessa, pois a mulher dele já morreu e a enfermeira continua lá, o que nos parece bastante razoável. Primeiro porque não se joga uma alemãzinha de 25 anos fora; segundo, porque, se a mulher dele queimou todo o pavio, é até bom que fique lá o que sobrou dos medicamentos, para que o viúvo se recupere.

Depois, esse negócio de acusarem o "importador" sob a alegação de que mulher não é equipamento médico é besteira. Mulher sempre fez parte da terapêutica em muitos casos medicinais. Tem doenças até que, se o médico não receitar mulher, o camarada penetra pela tubulação todinho.

De mais a mais é remédio ao alcance de todas as bolsas, de fácil aplicação, pois não se vende em embalagens de luxo (claro que estamos nos referindo ao produto popular e não ao outro, que é produto de perfumaria e não de farmácia). É de uso racional, é prático, não dependendo sua aplicação de gotas ou pastilhas, pois o remédio é de aplicação local, com uma única observação na bula: agite antes de usar.

Por tudo isso, estamos do lado de Koraltan. E não venham com a conversa de que estamos sofismando não, porque o negócio é igual também para os homens. Homem é medicamento de grande eficácia em muitos casos.

Quantas e quantas vezes já vimos o facultativo receitar homem, de acordo com a bula, para doenças de senhoras.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mulher de borracha

Quem nos informa a novidade é a Agência Ansa — nossa subsidiária no interior — em telegrama vindo de Nova Iorque. Diz que o "Collector's Ex-changing Bulletin", revista que circula muito entre os que têm mania de fazer coleções, seja coleção de caixa de fósforos, moedas antigas ou retrato de mulher... de mulher... como diremos?... de mulher à vontade, vem de publicar um anúncio (a sério) que fez muito sucesso e está surtindo efeito surpreendente.

Sim, porque, assim como o "Collector's Ex-changing Bulletin" publicou a coisa a sério, os leitores também leram o anúncio com muitaseriedade e muitos deles tomaram providências para adquirir o artigo anunciado.

Como, minha senhora? Que é que está no anúncio?

Pois não, era justamente o que íamos contar agora. A senhora endireita aí esse decote, que isto já não é mais decote, é deboche, e preste atenção. O anúncio diz assim: "Para homens solitários, tímidos e incapazes de escolher uma companheira ou de abordar na rua uma jovem qualquer, esta é uma grande novidade. Queiram enviar 2,50 dólares pelo reembolso postal que, dentro de poucos dias, receberão em sua casa uma mulher de borracha, de dimensões normais, macia e perfeitamente inquebrável."

Como, madame? A senhora não gostou do anúncio?

Nós também não, porque não somos da equipe dos tímidos e — modéstia à parte — se for preciso meter o ronco pra cima de "uma jovem qualquer" (conforme está no anúncio), a senhora pode ficar certa que a distinta será devidamente roncada. Mas houve quem se interessasse, pois a notícia explica que houve. Tem muita gente que prefere uma mulher inquebrável a — por exemplo — uma mulher inquebrantável.

Depois, madame, observe a malícia do anunciante. Diz que é de borracha macia. Convenhamos que mulher macia é mais do gosto da maioria do que mulher encaroçada. E — sendo de borracha — talvez possa ser esquentada em banho-maria. Ou talvez fique cálida empregando-se o tradicional método usado para o chamado saco quente. Estas considerações devem ter sido tomadas em conta pelos que responderam prontamente ao anúncio, fazendo centenas de encomendas.

De todas as vantagens propaladas, aliás, nós só não fazemos fé naquela que diz que a mulher é "de dimensões normais". A senhora sabe como é? Isto de tamanho varia muito. Que o digam as casas de modas que fabricam vestidos de meia confecção. E há o gosto pessoal também.

É, madame, a mulher de borracha para os tímidos é um bom negócio para o comprador e um grande negócio para o fabricante.

E a senhora pode ficar certa de uma coisa: esta humanidade anda tão torta, que é bem capaz de um camarada com mulher de borracha em casa se apaixonar pela mulher de borracha do vizinho.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quarta-feira, 22 de maio de 2013

A papagaia

Era uma vez uma papagaia... ou antes, era uma vez uma senhora que vivia sozinha, era muito católica e não tinha bicho nenhum em casa. Como era uma senhora solteirona, ficava até um pouco puxado para o tarado o fato dela não se dedicar a um bicho. É aqui que entra a papagaia.

Um dia a senhora solteirona sem nenhum bicho em casa foi visitar uma família conhecida. Chegou lá, viu uma papagaia num poleiro, cantarolando. "Que bonito papagaio" — ela disse. "Não é papagaio. É papagaia" — disseram para a senhora.

E, como tivesse se interessado muito, a família ofereceu a papagaia a ela. Tá na cara que a senhora solteirona sem nenhum bicho em casa adorou o oferecimento e carregou a papagaia para casa.

Mas aí é que foi chato. A papagaia era levadíssima. Mal chegou à sua nova casa, começou a dizer palavrões homéricos, a citar trechos completos da última peça do Nelson Rodrigues, a recitar o diálogo de "La Dolce Vita" e a dizer coisas horríveis sobre seus desejos incontidos.

A senhora ficou horrorizada e já ia mandar a papagaia embora quando chegou um vizinho para visitar. Soube do drama e disse: "Não há de ser nada. Eu tenho lá em casa dois papagaios comportadíssimos. Tão comportados que passam o dia rezando. Eu boto a papagaia perto dos dois e pode ser que ela se manque e fique igual a eles." A senhora agradeceu muito e a papagaia foi.

O vizinho colocou a papagaia num poleiro entre os dois papagaios. Assim que ela se viu na parede, começou a engrossar outra vez. Foi aí que um dos papagaios abriu um olho e ficou observando. Quando ficou convencido de que a papagaia era mesmo da pá virada, catucou o outro que continuava rezando e disse:

— Pare de rezar, companheiro, que, ou muito me engano, ou nossas preces acabam de ser atendidas.

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sexta-feira, 17 de maio de 2013

O poliglota

Vocês desculpem, mas nós num güenta! Nós num güenta e é preciso desabafar, inscrevendo mais uma vez aqui aquela frase que a posteridade já reclama com folgada antecedência: "Ah, Ibrahim, Ibrahim... se não fosse você, o que seria de mim?" Vocês leram o que escreveu o rapaz? Não leram? Aí é que está. Ficam perdendo tempo a ler Gide, Rilke e outros debilóides, depois perdem as maiores jóias literárias do famoso escritor líbano-carioca.

Imaginem vocês que Ibrahim — agora em viagem pela Europa, para desmentir definitivamente a máxima "quem viaja aprende" — vem de publicar uma notinha das mais importantes.

Diz o mestre de Jeff Thomas, o inspirador de Pouchard, que andou conversando com o Duque de Windsor. Para castigar um pouco de modéstia no seu escrito, o famoso "dramaturco" explicou que não conversou em português, o que, aliás, deve ser verdade, pois o Duque fala um pouquinho de português, mas Ibrahim não. A conversa foi num misto de espanhol, inglês e francês.

Quem conta é o próprio Ibrahim: usando um pouco do meu modesto espanhol, do meu inglês e do meu francês, consegui explicar ao Duque de Windsor o que é Brasília. Vejam vocês que pretensão! Explicar a um inglês o que é ponto facultativo já é um negócio considerado impossível pelos brasileiros que dominam perfeitamente o idioma de Henry Wadsworth Longfellow, quanto mais explicar em mau inglês, mau francês e mau espanhol o que vem a ser Brasília.

Brasília, como explicar Brasília a um inglês? Mesmo um inglês que saiba o português direitinho? É tarefa mais árdua do que marcar o Garrincha com um calo no dedão (no dedão do marcador e não do Garrincha, of course). Como é que o Ibrahim, incapaz de entender-se com qualquer plebeu, em qualquer língua, pôde explicar ao nobre e sofisticado Duque de Windsor o que é Brasília?

Dizem nossos olheiros especializados que estiveram apreciando a conversa dos dois, que ambos pareciam índios de fita em série, cada um soltando sons guturais para o outro, numa troca estranha de sons ininteligíveis, onde só se compreendia a palavra Brasília. Houve um momento em que Ibrahim afirmou:

— Brasília es la ville brésilienne who está the capital of Brazil.

O Duque de Windsor arregalou os olhos e não agüentou. Virou-se para a Duquesa que estava ao seu lado e afirmou:

— I’ll be a circus monkey if this cocoroca is not the famous Ibrahim Sued.
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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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quarta-feira, 15 de maio de 2013

O caso do tatu

Era um tatu. Nada mais que um tatu, bichinho que rivaliza com a Prefeitura na arte de esburacar. Um tatu — segundo a ciência — é nome comum a diversas espécies de mamíferos da família dos Dasipodídeos — mas este de que falamos, embora dasipodídeo, não tinha família.

Fora adotado pelo cavalheiro de calça cinzenta e unhas idem, cara de debilóide e camisa de meia, com as tradicionais cores do Flamengo. Aliás, diga-se a bem da verdade, não podíamos saber se ele era torcedor dos rubro-negros. O fato de envergar a camisa do Flamengo não quer dizer que o camarada seja rubro-negro, conforme cansou de provar o beque Tomires, em furadas comprometedoras para o clube da Gávea, quando era titular do time.

Mas — dizíamos — era um tatu. O dono do tatu usava-o para chamar a atenção sobre si mesmo. Assim como Luz Del Fuego usa cobra, Barreto Pinto usa cueca e Salvador Dali usa bigode, o camarada usava o tatu para se fazer notado.

Aos poucos foi chegando gente. Primeiro um garoto com uniforme de estafeta. Parou e perguntou que bicho era. Era tatu... Depois uma mulata gorda, que vinha em companhia de uma branquinha (mais de inanição que de raça). As duas pararam também e ficaram olhando o tatu. Só o tatu é que não dava bola pra ninguém. Talvez não fosse um tatu-bola. O grupo, pouco depois, já era bem seleto.

Havia mais dois estafetas, um sujeito com pinta de contínuo de escritório, diversas senhoras de variadas camadas sociais, dois ou três senhores de pasta, outros tantos sem pasta, uma mulatinha que fazia quase tanto sucesso quanto o tatu (dadas as suas harmoniosas linhas) e mais gente de somenos.

O tatu fuçava a calçada um pouco humilhado, talvez por perceber que calçada não é coisa que tatu possa esburacar. A Prefeitura tem exclusividade. Ia e vinha num raio de dois metros e tanto, restringido pela cordinha que o camarada de camisa do Flamengo prendera no seu rabo.

— Que bicho é este? — perguntou a mulata que fazia sucesso.

Cinco ou seis que estavam de olho nela responderam pressurosos:

— Tatu.

Ela fez um "ahhh" de espanto e coqueteria que lhe ficou muito bem. Um moleque tentou cotucar o tatu com a ponta de uma vara. O dono estrilou. Não seria um estrilo convicto se não recebesse a adesão da mulata gorda que se fazia acompanhar da branquinha esquelética.

— Falta de religião. Cotucar o tatu.

Alguns aprovaram. Outros resolveram ficar contra o dono. Por que um tatu na esquina da Avenida Rio Branco com Visconde de Inhaúma? O bichinho podia morrer. Quem sabe não comia há horas? As hipóteses cresciam, enquanto crescia o movimento pró-tatu. Quando maior era o grupo, mais numeroso o contingente de curiosos, o dono do tatu puxou-o pela cordinha, agarrou-o e o colocou dentro de uma gaiola. O tatu não se chateou; ao contrário da mulata gorda, líder tatuísta no local.

Sem dar atenção a ela o dono do tatu armou uma mesinha precária na calçada, colocou sobre ela estranhos vidrinhos e diversos pedacinhos de uma coisa indefinida e que depois ficou esclarecido que eram calos. Pigarreou e meteu lá:

— Senhoras e senhores, nenhum de nós está livre de possuir um calo. É por isso que eu lhes apresento este maravilhoso preparado que é o maior inimigo das calosidades, mesmo as mais renitentes.

O grupo foi se desfazendo, o dono do tatu ficou falando sozinho. O senhor de pasta que saiu caminhando à nossa frente ia meio capengando. Devia ter calo e, no entanto, perdera a excelente oportunidade de comprar o "maravilhoso preparado que é o maior inimigo das calosidades".

_______________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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terça-feira, 14 de maio de 2013

Nossa Sociedade

Faz muitos anos que nos deram de presente "Nossa Sociedade", trabalho caprichado e caprichoso de senhoras que se dedicaram a organizar uma espécie de catálogo, muito bem apresentado, com a relação das pessoas "bem" do nosso Brasil amado, predominando nessa relação gente "bem" do Rio e gente "bem" de São Paulo.

Faz muito tempo, mesmo, que nos deram de presente o "Nossa Sociedade". Foi há bem uns dez anos, tanto que é a primeira edição. Tudo se resume em dar a ficha da pessoa "bem", catalogada entre "solteiros", "casados" e "solteiras", daqui ou dali.

Por exemplo: no setor das "solteiras" podemos encontrar: Mariazinha Pereira — filha de João Pereira e de Dona Maria Pereira — Residência: Rua Mata Cavalo, 35 — Casa de Veraneio: Avenida das Acácias, 25 (Petrópolis) — Telefones: Residência: 34-2020. Veraneio: 0012. Tudo muito legalzinho.

Se Dona Mariazinha Pereira trabalhasse, tinha o telefone e nome do patrão. E se Mariazinha Pereira fosse casada, estaria na lista dos "casados", junto com o nome do marido, mas constando também seu antigo nome de solteira. Há ainda uma lista diplomática extra.

Agora vimos numa vitrina de livraria society (dessas livrarias metidas a francesa, que vende muito bagulho com capa encadernada, mas onde a gente — de vez em quando — acha uma preciosidade que as outras livrarias não têm), vimos, repetimos, a mais recente edição do livro "Nossa Sociedade". É uma edição alguns anos (quase dez) mais nova do que a que nos mandaram, mas está tão desatualizada quanto aquela.

Comparando as duas edições é que pudemos notar o trabalho impressionante que devem ter as senhoras que organizam o livro, para poder atualizar a gente "bem". Vocês podem pensar que estamos exagerando, mas não estamos não. Muito camarada que era "casado" na primeira edição passou a "solteiro" na segunda, para ser novamente "casado" na terceira ou na quarta edição.

Nosso society não cultiva com escala razoável a tradição da residência e, por isto, um fulano podre de chique, que morava num palacete da Rua São Clemente (l.a edição), habita um apartamento da Avenida Atlântica (3.a edição). 0 elegante de 1950, que tinha moradia em Petrópolis com piscina e tudo, é um teso em 1954, já não tendo, portanto, a casa de veraneio, vendida antes de sair a segunda edição, para pagar suas firulas excessivas.

E na lista dos "casados", onde as casadas aparecem com o nome de solteira ao lado do respectivo marido, é que reside a grande dificuldade de atualização do livro. Gente "bem" muda muito e Mme. Fulano de Tal já não é mais, porque voltou pra lista das "solteiras", ou então está na lista dos "casados" ... mas com outro. É muito difícil manter atualizado o livro "Nossa Sociedade”.

Aconselhamos aos interessados a, anualmente, jogar fora a edição antiga e comprar a nova. E mesmo a nova, quando consultada, que o seja com cautela.
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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sábado, 11 de maio de 2013

Um contista sexy

A sede de revistas que, de uns tempos para cá, vinha entortando a mentalidade de mocinhas suscetíveis de minhoca na cabeça deve estar saciada. Tem revistinha pra cachorro nas bancas. E cada uma com nome mais bonito: "Querida", "Sedução", "Intimidade", "Capricho", "Sétimo Céu", "Destino", e por aí a fora.

As tais fotonovelas, em que estão sendo usados galãs frustrados do cinema nacional (não menos frustrado, olé), são bárbaras. A mocinha é pobre, o rapaz namora uma granfa. No fim a granfa entra bem e na última fotografia a mocinha pobre está pendurada no beijo do galã frustrado.

Tem um monte de mocinhas que não perde uma dessas revistas editadas pelos maiores sexy relations da imprensa autóctone. Lê a fotonovela (lê, não. Espia, porque é história em quadrinho com fotografias) de cima a baixo e fica tinindo. Os contos também são ótimos, mas têm uma ilustração só. Ou é uma cara de mulher desesperada, ou é um beijo diabólico, que encima o título do conto. O título também é legal: "Eu amava o meu primo", "Minha vida era Geraldo", "Casei-me com um hipócrita", "Fuga para o encanto" e outros que tais.

Como, minha senhora? Quem são os autores?

Varia muito, madame. Geralmente são nomes de "escritoras" americanas: Nancy Gilbert, Dothy Longfellow, May Taylor. Mas é tudo de araque. Os autores são "nós mesmo" — como diz o Al Neto. Isto é, rapaziada daqui mesmo, que escreve a coisa como se tivesse acontecido em Las Vegas, Califórnia ou Londres, mas tudo foi imaginado e datilografado à noite, num modesto apartamento do Méier.

E o conto, vendido à razão de uma abóbora, quando muito, sempre ajuda a faturar a quinzena. Stanislaw tem um amigo que é especialista em contos de amor para as revistas dos sexy relations. Ele faz o mesmo conto sempre, mas tem o cuidado de mudar os nomes dos personagens e dos lugares onde acontecem os beijos ou as bolachas, assim como o título, naturalmente. Depois assina Lillian Clark, ou Jane Underwood, ou mesmo Joan L. Macmillan e vai vender na redação. Sempre dá pro feijão.

Agora, bom mesmo é escolher título para fotonovela ou para os contos de amor. Ele telefona e pergunta :

— Stan, que tal "Aconteceu nas Bermudas"?

— Fraco — respondemos.

E depois queremos saber quais foram as modificações introduzidas no conto. Ele explica que é tudo naquela base e então propomos:

— Que tal "Beijo de fogo em noite de frio"?

Aí, ou o "escritor" exulta do lado de lá, ou responde enfático:

— Esse nome eu já usei ontem.

E assim vamos vendo as possibilidades, até que chega o título ideal. Mas o que foi ótimo mesmo foi quando — na semana passada — um sexy relations mandou perguntar se Stanislaw não queria escrever alguns contos no referido estilo, com o pseudônimo de Brigitte Sagan. E antes que recusássemos, prometeu dez abobrinhas por cada imbecilidade.

Aceitamos.

Somos — atualmente — o entorta-dor de mentalidade feminina mais bem pago da imprensa sexy.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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segunda-feira, 6 de maio de 2013

História do Rio de Janeiro

A coisa começou no século XVI, pouco depois que Pedro Álvares Cabral, rapaz que estava fugindo da calmaria, encontrou a confusão, isto é, encontrou o Brasil. Até aí não havia Rio de Janeiro.

Depois, em 1512 — segundo o testemunho ocular de Brício de Abreu —, rapazes lusitanos que estavam esquiando fora da barra descobriram uma baía muito bonita e, distraídos que estavam, não perceberam que era baía. Pensaram que era um rio e, como fosse janeiro, apelidaram a baía de Rio de Janeiro. Eis, portanto, que o Rio já começou errado.

Passaram-se os anos, os portugueses não deram muita bola pra descoberta, e vieram uns franceses intrusos e se alojaram na baía. Foi então que os portugueses abriram os olhos e, ao mesmo tempo, abriram fogo contra o invasor, chefiados por um destemido cavalheiro que atendia pelo nome de Estácio de Sá (onde mais tarde se fundaria a primeira escola de samba, mas isso foi depois).

Estácio era sobrinho de Mem de Sá, ex-governador-geral, e primo de Salvador de Sá, que mais tarde viria a governar a cidade. É interessante notar que, muito tempo depois, quem descer pela Rua Mem de Sá vai dar na Rua Salvador de Sá que, por sua vez, passa pelo Largo do Estácio, também de Sá.

Quando os comandados de Estácio de Sá iniciaram a batalha contra os franceses, a coisa foi dura e só se resolveu numa derradeira batalha travada na Praia de Uruçumirim. Para vencer tiveram que suar a camisa e é por isso que, mais tarde, a Praia de Uruçumirim ficou sendo a Praia do Flamengo, o célebre Flamengo, que, por tradição, sua a camisa até hoje. Isso aconteceu aí pelo ano de 1567 e estava fundada a cidade do Rio de Janeiro, a mesma que viria a ser, em 1763, capital do vice-reinado, e depois capital da República dos Estados Unidos do Brasil.

A cidade foi construída sobre alagadiços e a brava gente, que a construiu, secou tão bem os alagadiços que até hoje está faltando água.

Quando, em 1763, foi considerada capital do vice-reinado, a cidade tinha somente 30 mil habitantes natos e mais, naturalmente, o Brício de Abreu, que não nasceu aqui, mas em Paris, de onde veio ainda pequenino no vapor "Provence".

Daí por diante o Rio de Janeiro foi crescendo, foi crescendo, foi crescendo e... pimba!... estourou. E, como tudo que estoura, abriu buraco pra todo lado.

Tal é, em resumo, a História do Rio de Janeiro, que foi descoberto por portugueses navegadores e que portugueses do comércio atacadista da Rua Acre querem levar para Portugal. Daí o velho ditado de Tia Zulmira: "Cabral descobriu o Brasil e Manoel quer carregar."

Não é, como o leitor mais arguto pouquinha coisa pôde perceber, uma História tão brilhante assim, como pretendem as letras dos sambas apoteóticos.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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sexta-feira, 3 de maio de 2013

O passamento de "Bette Davis”

Gilberto Milfont e Lúcio Alves são cantores, o que ninguém ignora, nem mesmo os que nasceram para conjugar o verbo ignorar. Mas quando param de cantar só pensam em cavalo de corrida.

Vai daí, não somente apostam nos cavalinhos da Gávea, como nos cavalinhos de Cidade Jardim, dada a condição de contratados da TV Record, de São Paulo, onde vão semanalmente.

Pois noutro dia Gilberto Milfont estava no aeroporto, pronto a embarcar para São Paulo, quando o microfone anunciou o seu nome. Foi Gilberto saber o que era e era telefone. Gilberto atendeu:

— Alô, Gilberto? É Lúcio Alves. Assim que você chegar em São Paulo, vá lá na Record, peça dez contos ao Blota Júnior em meu nome e jogue na égua Bette Davis, no quinto páreo. Mas só jogue se pagar 25 pratas, senão não interessa.

— Mas Lúcio... — tentou explicar Milfont, embora Lúcio já tivesse desligado. Desligou também e embarcou.

Chegando em São Paulo, Gilberto seguiu direto para a Record, a fim de procurar o diretor-artístico Blota Júnior, que aliás não é tão artístico assim como pensa o próprio. Chegou, explicou, e Blota, que é desses que depois do almoço palita os dentes com um lado só do palito, pra economizar o outro lado pra depois da jantar, fez cara de choro e disse que só tinha 5 contos.

Estava quase na hora de correr o 5.° páreo e então o Gilberto Milfont aceitou os cinco e se sacudiu pro Jóquei. Chegou bem na hora da última apregoação. Bette Davis era a favorita e estava cotada a 23. Lúcio dissera que menos de 25 não valia a pena. E então Gilberto guardou o dinheiro e foi ver o páreo correr.

O diabo é que, assim que chegou junto da cerca, reparou no placar e viu que a cotação subira pra 26 e não dava mais tempo de jogar.

— O Lúcio me come vivo se essa tal de Bette Davis ganha o páreo — pensou Milfont. Ele deve estar no Rio torcendo mais que nariz de grã-fino, quando fala com pobre. O jeito era torcer contra.

O páreo saiu e Bette Davis pulou 10 corpos na frente dos outros e saiu disparada. Giberto, encostado na cerca, rezava pra Bette Davis mancar e quanto mais ele rezava mais Bette Davis corria. Na entrada da curva ela vinha com 15 corpos e Gilberto torcia tanto que a camisa estava ensopada de suor. — Pára, desgraçada — dizia ele, entre dentes.

E Bette Davis pareceu ouvir. Na reta final começou a correr menos. Oito corpos, sete, cinco, dois e todo o lote passou por Bette Davis com Gilberto todo torcido. E a égua veio parando, veio parando e parou bem na frente de Gilberto. O jóquei saltou para examinar Bette Davis mas não teve tempo. Ela deu uma tremedeira rápida e caiu na pista. Estava morta.

Gilberto Milfont saiu dali e telefonou pro Rio. Lúcio atendeu do lado de cá e perguntou:

— Como é? Deu Bette Davis?

E Gilberto, na maior dignidade:

— Por sua causa eu acabo de matar uma das maiores atrizes do cinema americano.

_______________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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É triste... muito triste

Sim, companheiros, é muito triste um pai educar uma filha para corte, costura e o chamado trivial que vai do pregar botão ao fazer feijão, e depois, quando a filha fica pronta vira Elegante Bangu. É triste mesmo!

Mas não se deve negar aos homens o direito do vexame. É triste um pai criar um filho dentro das linhas que obedecem aos princípios da sagrada burguesia, pagando-lhe o colégio, alimentando-o para que um dia possa trabalhar e descontar para o IPASE e depois, quando o filho fica pronto, mete uma cabeleira loura e sai fotografia dele nos jornais, "travestido" em Rainha Morna.

Não é menos verdade, no entanto, que triste, muito triste é mãe devota fazer sacrifício para vestir e calçar filha órfã de pai, dando duro em emprego modesto, gastando com economia o montepio do falecido e depois, quando a filha fica mais ou menos o número que a gente usa, sai por aí arranjando voto para ser Rainha sabe-se lá de que trono.

Inegável, contudo, é que a tristeza paira sobre o semblante do pai que não saiu de casa "naquele dia" por amor ao garoto, a quem orgulhosamente deu de tudo e depois, quando o filho se sentiu capaz de certas coisas, ver esse filho desfilando na passarela no João Caetano, no baile aquele.

E por que faltar com a verdade, fingindo ignorar o quanto é triste para mãe extremada ver a filha ir encorpando, encorpando e fugindo ao seu controle, até o momento em que — lá uma noite — volta para casa dizendo que ele é casado e não há mais nada a fazer?

Como é triste também uma família do Norte, que sofre com o agreste da região e a proliferação exagerada de filhos, criar as crianças com o sacrifício da fome e, um dia, o mais velho dos filhos embarcar para a capital só para ser cronista mundano. É triste sim, muito triste.

Aliás, triste, sem dúvida, é moça que se diz bem, que detesta certas intimidades com as chamadas mariposas da noite, freqüentar o "Sacha” o ano inteiro e depois, quando chega fevereiro, meter um maio legal no corpo e ir pro baile carnavalesco dizendo que está fantasiada.

Sim, companheiros, tudo isso é muito triste pra nós, porque os citados não desconfiam nunca. Para eles as bestas são as do apocalipse, se é que já ouviram alguma vez falar em apocalipse. Não, companheiros, eles não desconfiam nunca. Tanto não desconfiam que — noutro dia — ouvimos uma moça dizer para um rapaz que a convidara para ir comer galeto na sua lambreta:

— Que é que você está pensando? Eu não sou uma qualquer. Eu sou bailarina do "Bolero" ouviu?

_______________________________________________________________________ Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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O falso defunto

Foi doce o meu encontro com o Varanda. Com esse nome paisagístico, ventilado, é uma grande figura. E como não nos víamos há meses e meses, houve, de parte a parte, uma festa imensa. Eu ria para ele e ele para mim, como se o amigo fosse uma figura extremamente cômica. Súbito, o Varanda pergunta:

— "Tens visto o Burlamaqui?".

Respondo:

— "Morreu".

O Varanda recua dois passos e avança outros dois. "Pálido de espanto", como no soneto, balbucia:

— "Quem morreu?".

Confirmei:

— "O Burlamaqui".

Pulou como o espectro da rosa. Agarrou-me:

— "Não é possível! Não pode ser!".

Houve, ali, dois espantos, o meu e o dele. Teimei:

— "Você não sabia? Morreu, rapaz, morreu!".

Desatinado, o outro dizia:

— "Só se morreu hoje, agora, neste momento!".

Desta feita, o assombrado fui eu. Disse-lhe:

— "Morreu há dois ou três anos. Dois. Dois, não. Três".

Esquecia-me de localizar o nosso encontro, no tempo e no espaço. Foi ontem, na esquina de Sete de Setembro com a Avenida, às quatro da tarde. Ao ouvir falar em "três anos", o Varanda perdeu de vez a paciência:

— "Estás fazendo molecagem comigo!".

Estendi a mão sobre uma Bíblia invisível:

— "Juro".

Varanda substituiu o espanto pelo furor:

— "Deixa de palhaçada!".

E eu, também exaltado, voltei à carga:

— "Rapaz! Eu fui ao enterro do Burlamaqui, mandei-lhe uma coroa, estive na missa! Está-me chamando de mentiroso?".

Em plena calçada, e aos berros, já fazíamos escândalo. Um senhor gordo, de óculos, com esparadrapo na testa, parou e ficou olhando. O Varanda estava quase chorando:

— "Pelo amor de Deus! Escuta! Estive com o Burlamaqui ontem, ontem. Sabe o que é ontem? Paguei-lhe o cafezinho. Tomou cafezinho comigo!".

Era demais. Estou repetindo:

— "Contigo, cafezinho, ontem? E não morreu?".

O Varanda estendia, as duas mãos crispadas:

— "Acredita em mim! Peço. Acredita em mim!".

E então, pela primeira vez, admiti a hipótese de um engano, sim, de um equívoco fatal. Era possível que a morte, o enterro, a missa do Burlamaqui fossem uma falsa lembrança, um sonho talvez da memória. Finalmente, capitulei:

— "Tens razão, tens razão! Eu me enganei. Não foi o Burlamaqui. Foi outro, um cara que tu não conheces".

Tive que inventar, às pressas, um defunto, que justificasse a confusão. Mas eu e ele estávamos exaustos e irritados com o equívoco. Nem o Varanda me reteve, nem eu a ele. Cada qual queria ver o outro pelas costas. E assim nos despedimos.

Pergunto: — como explicar que a memória invente uma morte, um enterro e uma missa? Só muito depois, em casa, entendi tudo.

Não há brasileiro que não tenha, entre suas relações, um "falso defunto". Não estou exagerando. "Falso defunto" é o que a gente pensa que já morreu umas cinco vezes, que já foi enterrado outras tantas. O sujeito imagina que já o viu de pés juntos e algodão nas narinas. No fim, fica provado que ninguém morreu e que se trata de uma pura e irresponsável fantasia da memória. E o Burlamaqui era, justamente, o "falso defunto". Não havia dúvida: — estaria tão vivo quanto eu e o leitor.

Vejam vocês: — no dia seguinte, estou em casa e bate o telefone. Alguém está dizendo:

— "Aqui fala a alma do Burlamaqui".

E, em seguida, veio a gargalhada, forte, tremenda, vital. E eu, rindo também:

— "Ah, como vai essa figura?".

O outro não parava:

— "Então, você me matou? Parei contigo!".

Simplesmente, o Varanda armara toda uma alegre intriga entre nós dois. Rimos muito; perguntei-lhe:

— "Que fim levaste?".

E ele:

— "Moro em Brasília. Estou passando uns dias aqui, na casa do meu cunhado".

Quando lhe perguntei "Que tal Brasília?", ele explodiu:

— "Brasília é o ouro! O ouro!".

Indaguei se ele estava bem lá. Deu uma resposta triunfal:

— "Estou com a vida que pedi a Deus. Você precisava ir pra Brasília. O Rio é uma ilusão, São Paulo outra ilusão. Vai pra Brasília!".

Por fim, marcamos um encontro para logo depois. Esquecia-me de dizer que, antes de Brasília, o Burlamaqui pagara todos os seus pecados. Conheceu a fome. Certa vez passara 48 horas sem comer e sem beber. Um dia, entrou num boteco e pediu um copo de água da bica. Foi medonho.

O garçom deu-lhe o copo e ele não bebia. Simplesmente, mastigava a água e repito: — comia a água. Em outra ocasião, Burlamaqui agarrou-me. As lágrimas caíam-lhe de quatro em quatro. Disse, baixo:

— "Me empresta um dinheiro. Não vi nem o café da manhã".

Estava lívido, febril de fome. Hoje estava feliz; e eu percebera, em tudo o que dizia, uma prosperidade insolentíssima. Quando me viu, fez a pergunta afrontosa:

— "Precisas de dinheiro? Estamos aí".

E repetia, batendo no bolso:

— "Dinheiro há, dinheiro há!".

Tal generosidade era uma maneira de se compensar de velhas e santas humilhações. Repetia (e seu olhar vazava luz):

— "O ouro está lá! Está lá!".

Apontava na direção de Brasília. Quando lhe perguntei pelo mistério, deu risada. Contou que fora para Brasília morto de fome; e, agora, tinha três empregos e era fazendeiro. No meu espanto, gemi:

— "Mas é um milagre!".

Riu, com salubérrimo descaro:

— "A autora do milagre é Brasília".

Conversamos duas horas e o assunto obrigatório foi a capital. Eu só ouvia, numa impressão profunda. E, por tudo que contava o Burlamaqui, eu via Brasília como a imagem da pequena comunidade. Sim, a pequena comunidade é a soma de acomodações, de interesses, de egoísmos. Cada qual absolvia o próximo para ser também absolvido. O sujeito podia ter três, quatro empregos, porque os demais tinham três, quatro empregos. Quando falei na imprensa, o Burlamaqui dava gargalhadas de se ouvir no fim da rua.

Não saía de Brasília nenhuma notícia que a pudesse comprometer. Uma universitária sofreu uma curra homicida. Nunca ninguém, na Terra, foi tão humilhada e tão ofendida. O fato chegou ao Rio por via oral. Os jornais telefonaram. Resposta das sucursais:

— "Não há nada".

E se lá aparecesse um Jack, o Estripador, ou um conde Drácula, ninguém saberia, ninguém. As sucursais continuariam falando da Arena e do MDB. E o silêncio envolve os fatos indignos como um celofane. À sombra dos egoísmos solidários, ninguém julga ninguém, ninguém acusa ninguém. E, portanto, os curradores referidos continuam maravilhosamente impunes. E o Burlamaqui me diz:

— "Houve uma passagem comigo que... Foi o seguinte: — um cara folgou comigo. Dei-lhe uns tiros. E não me aconteceu nada. Vivo lá na minha fazenda, venho só receber dos três empregos, ninguém me aborrece".

Maravilhado, repito:

— "Mas é um milagre!".

O outro ri, sórdido:

— "Mais ou menos".

Já se despedia. Mas antes de partir, ainda me disse:

— "Larga tudo, vai pra lá. Todas as cidades pecam, menos Brasília".

Respira fundo e completa:

— "Em Brasília, somos todos inocentes e somos todos cúmplices".

O automóvel estava no estacionamento. Vi o "falso defunto" embarcar no carro. Já falei na sua Mercedes? Acho que falei. Não, não. Não falei.

Pois sua Mercedes tem cascata artificial, com filhote de jacaré.

[5/10/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo:  Companhia das Letras, 1995.
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domingo, 28 de abril de 2013

Menininha viciada

Foi noutro dia, num convescote patrocinado por conhecido doador de sangue desta praça (existem duas espécies de doadores de sangue: os que têm conta no Banco do mesmo nome e os que dão coquetel. Exemplo: Jorginho Guinle é doador de sangue tipo B). Enfim, foi na residência de um tipo B.

Nossa televisão, graças a Deus, enguiçara mas — sabem como são os ossos do ofício — tínhamos que assistir a um programa muito do calhorda, só porque uma membra da nossa frota telefonara dizendo que trabalhava nele.

Nós não tínhamos nada com isso, pois não cobramos taxa sobre os cachês das nossas protegidas. Mas é que era estréia e a moça fez a flor dos Ponte Pretas prometer que assistiria. Palavra empenhada, palavra cumprida — costuma ser o nosso lema, quando não aparece uma outra enxutinha no caminho da razão, é lógico.

Onde estávamos? Ah... sim! Então a televisão enguiçou e não apareceu nenhuma outra mulher. O jeito era cumprir a palavra e assistir ao programa. Por isso, telefonamos para um amigo que reside no mesmo prédio que nós e perguntamos se podíamos subir (ele é dois mais acima) para usar da sua televisão:

— Prazer imenso, amigo! — berrou ele do outro lado do fio, numa prova cabal de que estava triscado pelo álcool.

Então subimos. Ele nos recebeu de copinho na mão e explicou que a visita não seria apenas para ver televisão. Imagine que ia dar um coquetel dentro de minutos. As moçoilas em flor estavam prestes a chegar e ficariam encantadas de encontrar ali aquela surpresa: o maior expert em mulheres, em carne e osso (mais carne que osso).

Fizemos ver que estávamos com a barba por fazer, que a camisa estava respingada de pasta de dente, que o intento era só ver o programa e voltar ao tugúrio. Mas qual. Ele argumentou que Humphrey Bogart também era displicente e nunca dormiu sozinho.

 E tanto insistiu que, depois de ver o vexame da nossa protegida, ficamos para os salgadinhos.

— Que tipo de damas teremos aqui? — indagou Stan. — Senhoras condescendentes, figurinhas ainda não inauguradas ou manicuras?

— Figurinhas ainda não inauguradas — respondeu o anfitrião.

E de fato. Pouco depois começavam a chegar moçoilas assim — como diremos — "entreaberto botão, entrefechada rosa" (obrigado, Joaquim Maria). Chegavam coloridas de carmim, sorriam para fotógrafos imaginários e sentavam com aquele cuidado das que querem deixar aparecer a anágua. Foi então que percebemos o quanto estão intoxicadas de entrevistas essas mocinhas de hoje.

Pois imaginem vocês que — só para puxar conversa — perguntamos a uma delas:

— O que é que você faz, meu bem?

E ela, ajeitando-se na cadeira:

— Estudo culinária, adoro "Nuit de Noêl", a minha cor predileta é o verde. Leio muito, minha leitura preferida é a Sagan, vou à praia e acho Teresa Sousa Campos a mulher mais elegante que eu já vi.

E antes mesmo que pudéssemos pronunciar uma sílaba, perguntou:

— Quando é que vai sair?

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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Mentalidade de carburador

Estava a pracinha posta em sossego, com as criancinhas brincando na grama, raros casais em colóquios, aproveitando o bucólico (lembra nome de remédio antigo. .. duas gotas de bucólico para sua asma) recanto. Havia um sorveteiro de um lado e um pipoqueiro do outro, ambos vendendo regularmente as respectivas mercadorias. No bar, que ficava em frente à praça, um garçom servia cafés esporádicos. Era, pois, um anoitecer tranqüilo, calmo, acalentador.

Foi nessa altura dos acontecimentos que apareceu o lambretista de blusão de couro e óculos de aviador. Parou a

 lambreta em frente ao bar, mas não parou o motor. Pelo contrário. Acelerou violentamente, fazendo bastante barulho para impressionar as domésticas. Depois desligou a máquina, saltou meio sobre o gaúcho empinado e deu dois passos para melhor admirar sua incômoda propriedade.

O sorriso que espalhou em volta, para os que ficaram parados, com raiva, era um sorriso de superioridade muito do Marlon Brando. Começou a andar novamente em direção ao bar, enquanto ia tirando as luvas de couro que — só Deus sabe por que — os lambretistas usam. No bar deu um assovio para chamar o garçom. Era um autêntico carburator boy, a olhar para todos com ar de desprezo e profunda superioridade.

Bebeu de um trago o conhaque vagabundo (como os cawboys fora de moda) e voltou solene para a calçada, onde um monte regular de garotas e debilóides espiava a lambreta. Abriu caminho entre eles com os cotovelos e tornou a montar. Podia ligar a máquina e sair, mas não era ele homem capaz de resistir à tentação de botar mais um pouquinho de banca.

Sentado na lambreta, fingiu que consertava um parafuso. Depois calçou outra vez as luvas lentamente, como um cirurgião à beira de uma operação importante. E aí ligou outra vez o motor e acelerou ao máximo. Toda a pracinha sentiu estremecer o solo. Mais uma olhada para a direita, outra para a esquerda e saiu como uma bólide, jogando fumaça na cara da gente.

Na esquina vinha um lotação. O lambretista tentou manobrar, mas o lotação foi mais ligeiro, atirando-o longe. E ao vê-lo no meio da rua, com escoriações generalizadas, todos respiraram com alívio.

É que, hoje em dia, o castigo anda de lotação.

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Fonte: Tia Zulmira e Eu  - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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