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sábado, 26 de novembro de 2011

A gulosa disfarçada

Um homem casara com excelente mulher, dona de casa arranjadeira e honrada mas muito gulosa. Para disfarçar seu apetite fingia-se sem vontade de alimentar-se sempre que o marido a convidava nas refeições. Apesar desse regime, engordava cada vez mais e o esposo admirava alguém poder viver com tão pouca comida.

Uma manhã resolveu certificar-se se a mulher comia em sua ausência. Disse que ia para o trabalho e escondeu-se num lugar onde podia acompanhar os passos da esposa.

No almoço, viu-a fazer umas tapiocas de goma, bem grossas, molhadas no leite de coco, e comê-las todas, deliciada. Na merenda, mastigou um sem número de alfenins finos, branquinhos e gostosos. Na hora do jantar matou um capão, ensopou-o em molho espesso, saboreando-o. À ceia, devorou um prato de macaxeiras, enxutinhas, acompanhando-as com manteiga.

Ao anoitecer, o marido apareceu, fingindo-se fatigado. Chovera o dia inteiro e o homem estava como se estivesse passado, como realmente passara, o dia à sombra. A mulher perguntou:

— Homem, como é que trabalhando na chuva você não se molhou?

O marido respondeu:

— Se a chuva fosse grossa como as tapiocas que você almoçou, eu teria vindo ensopado como o capão que você jantou. Mas a chuva era fina como os alfenins que você merendou e eu fiquei enxuto como as macaxeiras que você ceou.

A mulher compreendeu que fora descoberta em seu disfarce e não mais escondeu o seu apetite ao marido.

(Informante: Leopoldino Viana de Melo. Macaíba, Rio Grande do Norte - Em Cascudo, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1986. Reconquista do Brasil, 2ª série, 96, p.217)

Fonte: Jangada Brasil.
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A mulher do piolho

Era uma vez um homem muito circunspecto e cioso de sua personalidade. Muito moço teve a dita ou desdita de casar com uma mulherzinha extrovertida e por demais faladeira.

Num dia de domingo, depois do almoço, o homem estava sentado debaixo de uma árvore, tomando fresco, quando a mulher veio para junto, querendo lhe catar cafuné.

De bom grado o homem deitou a cabeça no seu colo. Cafuné para cá, cafuné para lá, acabou por cochilar, enquanto a mulher já meio distraída mexia nos seus cabelos. De repente algo estranho atravessou correndo o couro cabeludo do homem.

Mais que depressa a mulher diligenciou uma busca meticulosa, terminando por encontrar um piolho.

— Um piolho!... Acorde marido! Olhe um piolho na sua cabeça.

O homem acordou assustado e logo viu o piolho esborrachado entre os polegares da esposa. Encabulou, mas nada disse. Porém a mulher não parou mais de falar durante a tarde. A noite chegou e ela falando. O homem calado estava, calado continuou. Noite adentro, volta e meia, a mulher exclamava: — Marido, o piolho!...

No dia seguinte, indo bem cedo para a feira fazer as compras, percebeu que a mulher contava a todos quanto cruzavam o seu caminho o achado da véspera.

— Gente, não lhe conto! Ontem eu encontrei um piolho na cabeça do meu marido.

— Um piolho! — Quem ouvia se escandalizava e com justa razão.

— Sim, senhor. Um p-i-pi-o-l-h-o-lho.

O marido cada vez mais aborrecido, calado estava, calado continuava. Entrava dia, saía dia, dormindo ou acordada, a conversa da mulher convergia somente para o malfadado achado.

Por fim, já furioso, o marido arranjou uma mordaça de cachorro e pôs na boca da esposa. Ela pareceu meio sufocada, mas teve medo de protestar e se conservou em silêncio. Assim o homem acreditou ter solucionado a questão. Mas sua alegria durou pouco. Na feira, em casa, na missa, toda a vez que alguém olhava para os dois, ela não perdia tempo. Esfregava a unha do polegar direito da no esquerdo, como se estivesse matando um piolho, e apontava depois para a cabeça do marido.

Em desespero de causa, o marido carregou com ela para a beira de um rio fundo. Atou aos seus pés uma pedra e lhe deu um empurrão. A pobrezinha caiu na água e começou a se debater, tentando se manter à tona. Mas quando percebeu pessoas que corriam em seu socorro, suspendeu os braços acima da cabeça e fez o gesto de esfregar as unhas dos polegares.

Foi afundando, se afogando, mas sem deixar de fazer o gesto de matar um piolho.

Satisfeito, o homem voltou para casa, crente de ter se livrado da desmoralização.

Mas no dia seguinte, quando foi à feira, todos se dirigiram a ele como o marido da mulher do piolho. Repetindo o que ele pensava ter sepultado. Assim acaba a história.

Fonte; Viana, Hildegardes. "A mulher do piolho". A Tarde. Salvador, 09 de outubro de 1967, primeiro caderno, p.4.
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Vida e morte do Malazarte

Dizem que Malazarte era o diabo. Pois não era e tanto não era que um dia, depois que Pedro Malazarte deu pousada a Jesus Cristo, este como sempre acompanhado de Pedro — São Pedro, o chaveiro — concedeu-lhe, em paga, o direito de fazer três pedidos.

— Quero — pediu prontamente Malazarte — que quem subir nessa figueira (apontou para uma figueira no quintal) não possa descer sem que eu mande.

— Concedido.

— Quero...

— Pede o reino do céu. — Aconselhou São Pedro.

— Quero — disse o outro sem fazer caso da interrupção — que quem entrar no meu surrão não possa sair sem minha ordem.

— Concedido.

— E quero...

— ... o reino do céu. — Insinuou São Pedro.

— Que reino do céu, o quê?! Deixe de ser bobo! Quero que ninguém possa por a mão no meu boné. Só eu.

— Concedido.

Somente depois que eles partiram lembrou-se que não tinha pedido nada.

— Não há de ser nada.

Chamou o diabo, pediu-lhe dinheiro e prometeu-lhe a alma, em troca.

— Daqui a dez anos pode vir me buscar.

Daí a dez anos, o diabo apareceu.

— Vou fazer o meu testamento. Você, se quiser, pode subir naquela figueira e ir comendo uns figos enquanto me espera.

O diabo assim fez e, quando quis descer da árvore, não pôde.

Esforçou-se, ameaçou, pediu, e, por fim. Pedto soltou-o com a condição de lhe deixar mestre satanás mais vinte anos de vida. Daí a vinte anos o diabo voltou. Pedro disse:

— Meu surrão está pronto. Quer me ajudar a amarrá-lo?

O diabo foi ajudar, mas quando estava bem perto, Pedro o empurrou para dentro. Por mais que esperneasse, não conseguiu sair. Então Pedro disse:

— Você pode ir embora, mas está desfeito o nosso trato. Nunca mais me ponha os pés aqui.

O diabo deu o fora. E Pedro acabou indo para o céu, por artes do bonezinho. Foi assim: Morreu. Apareceu no céu e São Pedro bateu-lhe com a porta na cara. "Você não quis pedir o reino do céu, agora aqui você não entra".

— Está bem — resignou-se Malazarte. — Então vou para o inferno.

Foi ao inferno e o diabo não o quis lá. Voltou ao céu e pediu a São Pedro que, já que não era possível entrar que o deixasse ficar sentado à porta. São Pedro encolheu os ombros.

— Se é só isso...

Pedro ficou. Não demorou muito aproveitou-se de uma distração do santo chaveiro e atirou o bonezinho para dentro. Acontece que ninguém podia pegar no bonezinho. E acontece também que quem entra no céu não pode mais sair — pormenor típico de várias histórias populares do tipo desta. E, assim, o Malazarte entrou para pegar o boné e ficou no paraíso.

(Vale do Paraíba, 1940, informante idosa, analfabeta.)

A mesma história é conhecida na Espanha. Foi recolhida uma variante em Rio Tuerto, Santander, por Aurélio M. Espinosa, que a registrou em "Cuentos populares españoles". Nossa versão, a personagem central é, em vez do Malazarte, Juan Soldão...

Decalcado no mesmo lema, o que demonstra a sua difusão na França foi o conto Federico, de Prosper Merimée.

Vim a saber do fim — por assim dizer — finalíssimo — do Malazarte, isto é, como Deus se arranjou com ele no céu, alguns anos mais tarde de um caipira mentiroso da alta sorocabana.

— Quando ele entrou no céu, por obra e arte do tal bonezinho mágico, cujo poder lhe foi conferido por Jesus, em suas andanças pelo mundo, Deus Nosso Senhor, pai de todos falou:

— Não quero que você fique aqui dentro, virando a cabeça de tudo quanto é santo. Já chega a Pedro que você enganou.

Arranjou um montão de trigo e deixou o Malazartes a um canto, contando os grãos, para que ele não tenha tempo de conversar com mais ninguém.

Há uma outra lenda que justifica medida do Todo-Poderoso. Segundo referem alguns dentro da tradição oral do Vale do Paraíba, Pedro sentou-se às portas do paraíso e manhosamente puxou prosa com São Pedro:

— Escute aqui, velhinho...

São Pedro encrespou tempestuosamente as sobracelhas.

— Escute aqui, faz tempo que o senhor é chaveiro?

— Desde que subi ao céu, com Jesus Cristo, meu mestre.

— Seu cargo é vitalício?

— É o que?

— Seu cargo é permanente? O senhor foi nomeado para toda a eternidade?

— Decerto. — Respondeu o velho chaveiro, impondo orgulho.

— E como é que o senhor sabe disso?

— Ora, o Senhor me disse.

— E se ele mudar de opinião?

— Não mudará.

— Mas se mudar? Tudo pode acontecer.

O velho coçou a cabeça.

Malazarte insistiu:

— O senhor não tem nenhum documento, nenhum contrato, que garanta seus direitos? O senhor tem só um entendimento de boca? E se um dia o senhor se desentender com o Mestre? E se ele resolver pôr um chaveiro mais moço, no seu lugar?

— É mesmo.

São Pedro trancou cauteloso a porta e foi para dentro. Procurou Jesus e perguntou-lhe:

— Senhor, eu sou chaveiro, para a eternidade?

— Naturalmente.

— O senhor não acha melhor... o senhor não vê... eu não tinha pensado nisso... o senhor compreende... minha posição... o senhor não acha...

— Que é isso, Pedro? Desembuche de uma vez.

— O senhor não acha bom nós dois assinarmos um contrato?

Cristo franziu a testa e ordenou:

— Traga o Malazarte aqui, que ele vai ficar contando areia, para não ficar enchendo a sua cabeça e a de todos os meus santos.

Parece que a origem da tarefa de contar grãos e contar areia é peninsular. Constantino Cabal — Mitologia ibérica — cita o caso de um trasgo de mãos furadas. Puseram-no a contar grãos de linhaça e ele não pôde, por causa das mãos furadas. Leite de Vasconcelos dá em Tradições populares de Portugal, notícia de um curioso fradinho de mão furada, que entra pelo buraco da fechadura e dá pesadelos. A antiga lenda peninsular do duende de mãos furadas se bifurca com a mudança de continente. Um ramo encontrando-se com a do saci dá o diabinho de mãos furadas. O outro encontra Pedro Malazarte e origina a lenda que afirma: Pedro Malazarte está no céu contando trigo.

Fonte: Guimarães, Ruth. "Vida e morte do Malazarte". Revista do Globo. Rio de Janeiro, 26 de julho de 1949.
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sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O diabo no corpo


Manuelinha era uma mulata dos seus 18 anos incompletos e um verdadeiro modelo de mestiça bonita e apetitosa.  Não tinha alta estatura; pelo contrário, era toda miudinha de corpo e de formas, porém enxuta de carnes, de braços e pernas roliças, anca refeita, seio agradavelmente espontado debaixo da chita do corpete, pescoço cilíndrico...

Os seus olhos eram grandes, amendoados, negros, vivos e pestanudos, a boca pequena, de lábios carnudos e guarnecida de dentes muito brancos e juntos, nariz perfeito, pele fina, macia, suavemente amorenada, cabeleira farta, sem ser crespa em demasia.

Muito viva, tinha movimentos brevíssimos, olhar ligeiro e petulante, adêmanes rápidos, e sabia rir-se de qualquer coisa com graça encantadora; o muxoxo na sua boca tinha um quê especial.

Demais Manuelinha tinha consciência da sua beleza e sabia fazê-la valer. Debalde muito cabra valente, num pé de viola, lhe tinha feito roda. Inutilmente os arrieiros faziam piegas nos seus cavalos aparelhados de prata, quando passavam junto à sua porta. Manuelinha olhava a todos por cima do ombro; e se algum mais ousado animava-se a dirigir-lhe uma graçola qualquer, por exemplo, um:

– Puxa, mulata, machucadeira de coração!.. – era infalível da sua parte um atrevido:

– Não se enxerga seu sujo?!

ou então:

– Vai te lavar na maré, pato choco!

E assim vivia Manuelinha, contente descuidosa, cortejada por todos, porém sempre esquiva e orgulhosa da sua beleza e da fascinação que exercia sobre todos os homens, que, nos dias de pagode em sua casa, nunca ali faltavam, como que atraídos pela interessante rapariga.

* * *

Toda a rapaziada da vizinhança derretia-se por Manuelinha. Mas dentre a chusma de seus adoradores um merece ser destacado com certo relevo, não só pelo importante papel que vai representar na seqüência desta história, como pela extravagância do tipo.

Esse apaixonado era, nada mais, nada menos que Pedro Camundá, africano com perto de 70 anos, e tio-avô da mulatinha.

Por artes do diabo, aquele "cação", como lhe chamava a malcriada mulatinha, enamorou-se perdidamente da sobrinha-neta, e lavava todo o santo dia a importuná-la, apesar das insolentes rebatidas da rapariga.

Pedro Camundá, ou antes, para dizer exatamente o seu nome com todos os seus estrambólicos apelidos, por ele mesmo forjados, Pedro Camundá Lopes Martins Júnior, Filho do Gama Pesca de Dia, de Noite Escama, Cócôriôcô, Galo Quando Canta É Dia, entendia lá no seu bestunto que, sendo-se tio-avô de Manuelinha tinha mais do que qualquer outro direito de possuí-la, e pouco se lhe dava a diferença de idade entre os dois e a repugnância que em geral a mulata sente pelo negro.

Pedro Camundá não refletia nisso. Era tio e essa consideração do parentesco julgava ele suficiente para destruir todos os obstáculos. Não desanimava, pois, de fazer render a rapariga à sua concupiscência.

É claro, porém, que a moça, por mais depravado que fosse o seu gosto, nunca poderia entregar-se voluntàriamente àquele urutu de venta esborrachada, carapinha enredada, cambaio, desdentado e de olhos sangrentos. Era, portanto, em vão, que Pedro Camundá Lopes Martins, etc., etc., ostentava para agradá-la diversas habilidades que possuía, tais como: tocar flauta de taquara pelo nariz, pegar cobras com a mão, tirar ponto de jongo e outras astúcias mais.

Manuelinha cada vez o aborrecia mais, e se não o enxotava de casa é que Pedro Camundá tinha fama de grande feiticeiro. Nessa qualidade ela o temia extraordinàriamente; maus tratos, porém, não lhe poupava, e a todo o momento lhe assacava epítetos os mais injuriosos.

* * *

Era de uso antigo em casa de Manuelinha festejar-se com uma grande pagodeira o dia de Nossa Senhora da Conceição, que era a madrinha celeste da mulatinha. Chegado o dia, começaram a afluir visitas de toda a parte, tanto homens como mulheres, pois essa festa tinha fama na vizinhança.

Cantava-se uma ladainha, ia-se depois para uma mesa bem servida de suculentas iguarias, e depois caía-se no batuque, que durava até amanhecer.

Entre outras pessoas estranhas que vieram pela primeira vez a essa pândega, notava-se o sr. Antônio Guimarães, ilhéu chegado pouco antes do Faial e hortelão de uma fazenda da vizinhança.

Era um sujeito grosso de corpo e de espírito, usando barba de varre-lama e de queixo e beiço raspado.

Ainda vinha metido na pesada saragoça de além-mar, com o clássico remendão nos fundilhos, e trazia atarracado à alentada pata o grosso tamanco de beiça grande e revirada, guarnecido de cravos fortes de cabeça chata.

Guimarães logo que pousou a vista na mulŽtinha, nesse dia vestida e penteada a capricho, começou a sentir umas comichões na garganta e pôs-se a mexer no banco, todo esquerdo, todo casmurro. Via-se logo que aquela alma ilhoa queria reza; mas, o que é mais singular, Manuelinha, a invencível mestiça, a tirana que havia orgulhosamente desprezado o amor da mais desempenada caipiragem, simpatizou igualmente com o forasteiro, e logo todos, inclusive Camundá, perceberam que os dois, no fim de meia hora, estavam de namoro trançado.

Muitos se arreliaram com isto. O negro velho. porém, encheu-se da maior das raivas, e os seus olhos, que pareciam duas postas de sangue, não se despregavam da sobrinha, como que ameaçando-a.

* * *

Todavia este incidente não desmanchou a festa.

Ao contrário, como Manuelinha parecia ainda mais alegre que de costume, a rapaziada fez vista grossa ao namoro com o ilhéu e entrou no batuque, desembaraçada de qualquer preocupação. Ora bolas! ela era senhora de gostar de quem quisesse.

Muitos, até, começaram logo a lançar os seus olhares para as outras raparigas, quando mais não fosse para moerem a impostora que tinha desprezado os seus patrícios e estava agora a derreter-se com um sujeito à-toa, vindo da Estranja ou de onde o diabo perdeu as botas, isto só porque o pé-de-chumbo era de sangue sem mistura.

– A negrinha quer limpar o sarro da senzala na barba do portuga, – diziam uns para os outros despeitados.

No entanto estrugia o sapateado e quando cessava era apenas para se fazer ouvir algum cantador que extravasava os seus queixumes ou os seus fingidos desdéns numa quadrilha estribilhada pelo Quero mana, lerê, quero mana! ou pelo Vai de roda, siá dona Geralda e outros.

Todos folgavam ou pareciam folgar com a maior alegria. Só Pedro Camundá, o preto velho, acocorado a um canto da sala, remoia a sua grande raiva concentrada.

* * *

Em um dos intervalos do batuque, e depois que alguns cantadores trocaram algumas trovas em desafio, Manuelinha chegou-se ao Guimarães, que não tirava os olhos de cima dela, e disse, com muitos requebros no corpo e doçura na voz e na fala:

– Cante alguma coisa para a gente ouvir seu Antônio.

Guimarães, assim rogado tão agradavelmente, ficou um tanto envergonhado, e a torcer a tramela da porta, para disfarçar a confusão, disse:

– Lá o cantar eu cantava, pois com a ajuda de Deus não nasci com a língua pregada, mas é que eu sei somente cantar à moda da minha terra e talvez as pessoas que aqui estão não gostem.

– Por que não se há de gostar? – disse a mãe de Manuelinha, uma mulata escura que outrora vivera amasiada com um português. – Por que não se há de gostar? Até tem mais graça porque é uma coisa nova.

– Decerto que sim, – confirmaram algumas outras mulheres. – A gente já anda tão enfarada dessas modas daqui.

– Cante seu Antônio, – rematou Manuelinha arrebitando o nariz. – Se alguém não gostar, não faltará quem lhe aprecie.

Ao ouvir tais palavras Guimarães entendeu que não devia mais resistir e assim falou:

– A sora dona Manuela manda em quem bem quer lhe servir. Benha daí uma biola. Lá pelas nossas terras antes dum homem se pôr a cantar bota pra baixo um bom picheI de vinho. Mas como ele não há por cá, mandem-me uma pouca de aguardente para desencatarrar o peito.

Sendo logo servido no que pedira, o Antônio tomou uma viola, afinou-a a seu jeito, e, ao som de um estabanado rasgado, cantou o seguinte:

Ai! belas manhãs da Lapa,
E eu fui aos caramujos,
Quando bejo mulher belha,
Tiro meu chapéu e fujo.

Sôra Maria,
Mestre Manel,
Quem mora na rua
Nan paga aluguel.

Riram-se todos a bandeiras despregadas com os versos do casmurro, e Manuelinha exultou de contentamento, por demonstrar àquela gente que o homem a quem distinguia não era pra aí qualquer pasmado. Todos gostaram dos versos, ou por muito estúpidos, ou simplesmente por serem novidade naquele meio, afeito às doçuras langues do Passo branco avoou e outras composições matutas. Todos gostaram, exceto, porém, Pedro Camundá. Esse sempre sentado, ao canto da sala tornava-se cada vez mais sério e embezerrado. Dir-se-ia que tinha ciúmes do triunfo que o português alcançava.

No entanto ninguém dava por isso, e Antônio Guimarães, animando-se aos poucos, destampou outra vez o peito e berrou:

Oh! munina da labada,
Rega o teu manjaricão,
Que hoje estou devoleto
Amanhã estarei ou não.

Senhor João do Norte
Bem todo ratado,
Co'as buxigas loucas
Do ano passado.

Novas gargalhadas acolheram tal destempero poético: a caipirada achava um cômico irresistível nos versos do ilhéu, e Manuelinha, interpretando os risos como sinais de admiração, no tamborete em que se achava, remexia-se de contentamento.

Pedro Camundá, cada vez mais enfiado, mastigava em seco no canto da sala, e Antônio Guimarães, impando de orgulho, e querendo mostrar à cabritada que era homem de recursos no braço de uma viola, variando a música e o ritmo despejou de um só fôlego toda essa embrulhada:

Quando Cristo frumou Judas,
Palácios de grande altura,
Muita gente lá morreu
Foram para a sepultura

Casa grande tem fartura
Andam lebres nos trigais,
Comem-n'as aves o milho,
Quaim paga são-n'os pardais.

Cabalo grande é trangola
Puquenino é perereca,
Pau furado é biola
De caracol é raveca.

E deixando pender o corpo todo para Manuelinha, que se achava sentada a seu lado, rematou por esta forma extravagante a sua lengalenga:

E agora, senhores meus,
Uma coisa bou dizeire,
Andam cabras pelo monte,
Muito custa um bem quereire.

Esta munina é minha
Compei-a numa audiência
Na Relação de Lisvôa
Na mesa da consciência.

Todos compreenderam perfeitamente a alusão que o português fazia à facilidade com que havia realizado a sua conquista amorosa, a despeito dos cabras que andavam por aquele monte, e Manuelinha mostrava estar satisfeita com aquela declaração brutal.

Um murmúrio surdo de indignação fez-se ouvir logo. Os caipiras olhavam uns para os outros, como se quisessem consertar algum plano contra o ilhéu, pois aquilo já estava cheirando a desaforo grosso, e Pedro Camundá, que tinha ouvido toda a versalhada do Guimarães, dando sempre os sinais mais visíveis de indignação, entendeu que devia mostrar a todos que também sabia cantar. Deslumbraria o português, e conjuntamente a mulatinha, que não podia deixar de preferir o seu canto.

* * *
Assim, logo que o português se calou, Pedro Camundá, como se houvesse sido mordido pela tarântula, pulou para o meio da sala e a desengonçar-se todo e a bater palmas, berrou descompassadamente na sua meia língua:

Eh! Eh! Eh! Eh!
Maria sobe moro,
Bunda teremê,
Coração min dóe.

Pedro Camundá não pôde continuar. Manuelinha, envergonhada e irritada com aquela entrada estapafúrdia do tio, tão fora de tempo e de propósito, foi ao seu encontro, e gritou-lhe com a insolência que lhe era própria:

– Cala a boca, burro.

– Burro não, sua malcriada. Mais respeito com seu tio! – retrucou Camundá enfurecido.

– Que tio! que nada! Vocemecê não vê que não sabe cantar? Para que está aborrecendo a gente com essa porcaria de jongo. Sempre mostra que é negro!...

Manuelinha não chegou a terminar bem a frase.

Pedro Camundá, enciumado e ferido no seu amor-próprio de modo tão público, desandou-lhe tão violenta bofetada, que a mulatinha estendeu-se a fio comprido no chão.

Levantou-se logo grande celeuma entre os foliões, e Antônio Guimarães, irritado com aquela ofensa à mulata, a qual já considerava como coisa sua, arrancou do pé o grosso tamanco ferrado de cravos de cabeça chata, e cibrou-o com toda a força na cabeça do negro, de onde escorreu pronto um fio de sangue.

Então ferveu o sarceiro. Diversos caipiras, querendo tornar-se agradável a Manuelinha, colocaram-se ao lado do português. Outros, porém, declararam-se em favor de Camundá, e o pau roncou deveras, fazendo as mulheres grande berreiro.

Quebraram-se diversas cabeças e muitos ficaram cheios de contusões, mas, afinal, todos se reconciliaram. Houve explicações de parte a parte, trocaram-se desculpas; e todos mostraram-se dispostos a recomeçar o pagode.

Quem não se acalmou, porém, foi Pedro Camundá. Recusando lavar o sangue que lhe escorria da cabeça lascada pelo tamancão do ilhéu, parecia endemoninhado, e vendo que todos se voltavam contra ele, pela sua obstinação em insultar a sobrinha, pôs arrebatadamente na cabeça o chapéu de palha, dirigiu-se à porta, e dali, cuspindo três vezes para dentro da sala e lançando à mulatinha um olhar terrível, disse:

– Negro, hein?! Negro?! Tu me pagarás!... – Acabando de pronunciar tais palavras, desapareceu na escuridão da noite, deixando todos sob o peso daquela terrível ameaça dirigida à rainha da festa.

* * *

Não era uma coisa à-toa esse projeto de vingança formulado pelo preto velho.

Todos o tinham por feiticeiro terrível, e sabia-se que ele fazia de rei nos canjerês arranjados pela negrada das fazendas vizinhas.

A sua habitação, uma choupana esburacada e mal coberta, metida no sambambaial da lomba de uma serra onde ele vivia sozinho com um gato preto e um bode velho, estava atulhada de coisas estranhas, e todos a evitavam com horror: eram cobras mansas, morcegos espetados pelas paredes, sapos, braços de crianças pagãs que desenterrava dos cemitérios, dentes de animais peçonhentos e outras bruzundangas.

Ali vivia ele desde que se libertara, e muita gente se queixava dos seus feitiços. Dizia-se que o seu olhar continha um fluido venenoso que matava os animais e causava moléstia nas criaturas. Pelas suas artes realizava desuniões nos casais. Mil outras perversidades se lhe atribuíam.

Por isso ficaram todos apreensivos com a sua ameaça. Pedro Camundá não era para graças; aquilo era negro danado, negro do couro azul, diziam os caipiras uns para os outros, comia brasa de fogo, fazia vez de cururu.

* * *

Decorreram alguns dias depois da pouco edificante cena que acabamos de descrever.

Assustada durante os primeiros dias com a ameaça do tio, afinal Manuelinha esqueceu-a completamente.

Guimarães pouco e pouco foi se insinuando cada vez mais no espírito da gentil mestiça, sabendo conquistá-la, seduzi-la, até que veio a assenhorear-se completamente do seu coração, dos seus desejos, das suas vontades, chegando a possuí-la. Falava-se num futuro casamento, mas ninguém acreditava nele, porquanto o português já quase que morava em casa de Manuelinha, dormindo lá nos sábados, passando o domingo todo, para só se retirar na segunda-feira.

A ameaça de Pedro Camundá não fora entretanto vã, e durante certo tempo veio transtornar a paz em que a rapariga vivia.

Num domingo pela manhã, achando-se em casa o Guimarães, como de costume, Manuelinha pôs à cabeça um pote de barro e dirigiu-se à fonte, a fim de trazer água para cozinhar o almoço.

A fonte era pouco distante da casa. Descia-se apenas uma pequenina ribanceira, e ela surgia, a jorrar cristalina água, cantante, muito clara, muito fresca, deslizando por entre imensas pedras limosas, e toda cercada pelas largas folhas de inhames e de taiobas.

A moça chegou ao puríssimo veio d'água, lavou o rosto e os braços, encheu o pote, e preparava-se para pô-lo à cabeça, quando sentiu um ruído nas folhas secas do matal vizinho.

Tornando a descansar o pote no chão, procurou observar o que se passava e, agachando-se, para olhar por baixo da ramaria, avistou um moleque muito preto, coberto de andrajos, e com grande quantidade de latas velhas amarradas pelo corpo.

Assim que os seus olhos pousaram sobre ele, o moleque começou a fazer-lhe trejeitos e caretas. A moça, assustadíssima, correu para casa a relatar o que tinha visto à mãe e ao amante.

Guiados por Manuelinha correram os dois à fonte. Apenas chegados, a mulatinha, muito nervosa, gritou, apontando para o mato:

– Lá está o moleque, mamãe! Veja, seu Antônio! T'esconjuro, diabo!...

A mulata velha e o português olharam atentamente para o lugar indicado por Manuelinha, porém nada viram.

– Onde? onde? – perguntaram os dois ao mesmo tempo.

– Ali, gente! mesmo em frente de nós. É moleque muito preto, todo coberto de molambos e com uma porção de latas velhas penduradas pelo corpo. Ouçam como batem as latas umas nas outras!...

– Eu não bejo nada! – exclamou Guimarães esfregando os olhos já cansados de tanto olhar.

– Nem eu! – disse a mulata velha.

– Ó homem! vocês estão cegos? – disse Manuelinha tornando-se cada vez mais agitada. – Credo! o moleque virou num sapo muito grande e com cada olho! Aquilo é coisa mandada com certeza. Olhem como o sapo está inchando?!...

– Raios parta o sapo mal-o o moleque! –disse Guimarães já um tanto aborrecido. – Pelas cinco chagas de Cristo que eu nãn bejo nada!

– Xi... – continuou a mulatinha. – O sapo virou numa cobra vermelha. T'arrenego, coisa ruim!

– Tu estás douda, rapariga! – exclamou Guimarães. – Ali não há cobra, nem cousa biba nenhuma! Tu não estás voa, com certeza!

– Pois você não vê ali uma cobra tamanhona! Olhe, veja bem como ela se enrosca nos paus e dá botes para todos os lados. Ai, meu Deus! virou agora num lagarto. E lá vem ele para cima de nós. Foge, seu Antônio, foge mamãe... Aquilo é coisa mandada!

E não pôde dizer mais nada. Caiu redondamente no chão e entrou a estrebuchar em convulsões medonhas. Num momento as roupas lhe ficaram em tiras, e ela, com a barriga e as pernas nuas, torcia-se doidamente pelo chão, a ferir-se no saibro da vereda.

Os olhos viraram-lhe para trás, a boca torceu-se e dos cantos dos lábios começou a borbulhar uma espuma esverdeada.

– Meu Deus! que é isso que estou vendo? – disse a mãe, tomada de assombro. – Minha filha que é isso? Fala, responde a tua mãe.

Entrementes, Guimarães observava atentamente todos os movimentos da rapariga e transformações que se operavam no seu semblante transtornado. Dir-se-ia um médico embaraçado com um diagnóstico difícil.

Afinal bateu com a pesada mão no ombro da mãe de Manuelinha e disse, possuído da maior convicção:

– Bocemecê quer saber que tem sua filha?

– Diga, seu Antônio, pelo amor de Deus!

– Sua filha está com o diabo no corpo. São as artes do tal negro belho.

* * *

Depressa correu por toda aquela redondeza que Manuelinha, a flor das mulatinhas do sertão, estava com o diabo no corpo; e à sua casa começou a afluir visitas de mulheres e homens. Todos queriam verificar com os próprios olhos aquele caso estranho, e depois que examinavam a enferma, saíam plenamente convencidos de que a infeliz era presa de um demônio que se comprazia em torturá-la. E choviam as maldições sobre Pedro Camundá. Pois quem, a não ser ele, seria capaz de tamanha perversidade?

Na verdade os sintomas da moléstia eram muito singulares. A barriga começou a crescer-lhe de um modo espantoso, dir-se-ia em adiantada gravidez, e nas crises agudas ela torcia-se como uma possessa na cama, injuriava a todos, proferia obscenidades, e, o que é mais singular, às vezes ficava suspensa no ar durante um ou dois minutos. Nesses momentos, os seus olhos viravam mostrando somente o branco, a boca entortava, e dela escorria copiosa espuma.

Outras vezes discutia com o demônio que em si encerrava, e ao qual dava o nome de Caviru. Insultava-o ou rogava-lhe que a deixasse. Outras ainda a sua voz mudava: parecia a de uma outra pessoa e começava a dizer frases incoerentes ou de sentido misterioso.

Vieram muitos curandeiros visitar a inditosa rapariga. Várias mulheres fizeram-na engolir drogas nauseabundas mas ninguém fazia melhorar a pobre moça que de dia para dia definhava sobre o catre.

Todos se condoíam do lastimável estado da pobrezinha, e Antônio Guimarães estava inconsolável.

* * *

Essa triste situação durou algumas semanas e a moça ia cada vez a pior, quando veio visitá-la uma preta velha, que era a sua madrinha de apresentação.

Manuelinha, assim que a madrinha assomou à porta começou a gritar horrivelmente, como se a cruciassem dores pungentíssimas.

Todos se admiraram com o que estavam presenciando, porém tia Maria não se abalou e disse aos mais que ficassem tranqüilos, pois ela ia tirar o diabo do corpo de sua afilhada.

– O coisa-ruim já me conhece. Agora vai ele ver o ruço comigo.

– Quando ele, o estapoire saire, logo se conhece: a rapariga há de daire um grande bufa.

– É tal e qual, – confirmou tia Maria.

E dizendo isso a preta agarrou a afilhada pelos pulsos e gritou:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina? Fala coisa-ruim!

A moça torceu-se toda, porém seus lábios não se descerraram.

– Você fala ou não fala, Caviru?

Nada; nenhuma resposta se ouviu.

– Ah! – disse a preta, – essa Peste está reinando! Vão buscar uma vara de guiné e um galho de arruda. Ah! negro velho caborgeiro, eu bem conheço as tuas maldades! Fazer isso com a pobre da minha afilhada!

E a velha pôs-se a rezar e a benzer a sobrinha em todas as direções.

Daí a pouco trouxeram-lhe a vara de guiné e o galho de arruda.

– Vão agora buscar um gato preto, para o diabo passar para o corpo dele.

– E só quando a rapariga der um bufo é que ele sai.

Enquanto procuravam o gato, tia Maria amarrava com um largo cinteiro o galho de arruda sobre o roliço ventre da rapariga, e chegando o gato, ordenou ao Guimarães que o sugigasse.

* * *

Todos acompanhavam esses preparativos com o maior interesse, e tia Maria, depois de riscar três cruzes com o dedo molhado em azeite, sobre os seios da moça, que se achava completamente nua sobre a cama, pegou da flexível vara de pau-guiné e gritou de novo:

– Caviru! Caviru! quem te mandou para o corpo desta menina?

Como das outras vezes nenhuma resposta se fez ouvir. Então a preta velha vibrou com a vara de guiné uma forte vergastada nas nádegas carnudas da rapariga.

Manuelinha deu um grande grito e espernegou na cama.

– Anda, peste! – tornou de novo tia Maria. – Quem te meteu aí?

Ainda nada de resposta e a vara de guiné tornou a silvar no ar e a cair sobre as carnes da moça.

– Fala, desgraçado! Quem foi que te meteu aí?

E como o demônio se obstinasse em não dar resposta, a velha amiudou as varadas, aos gritos da infeliz que pinoteava no leito, até que afinal a rapariga, como que fazendo um grande esforço sobre si mesma, gritou convulsivamente:

– Foi Pedro Camundá!

– Eu nãn lhes havia dito que era aquele estapaire! – disse logo Guimarães.

– Segure o gato, seu Antônio! – exclamou a preta. – Caviru já obedece, agora ele tem que sair, quer queira quer não.

E toca a zurzir a vara nas nádegas da moça, aos berros de Sai! sai maldito!

A moça, já com as carnes todas lanhadas, cada vez gritava mais.

– Segure o gato, seu Antônio! O bicho está aqui, está fora. Segure o gato, seu Antônio!

– Cá o tainho bem preso pelo toutiço.

Entrementes a vara não descansava. A mãe de Manuelinha segurava-a pelos braços, uma outra agarrava-lhe as pernas. Guimarães, no meio do quarto, segurava o gato pelo cangote.

De repente a rapariga inteiriçou-se toda no catre e exalou um suspiro. Ao mesmo tempo o seu ventre, que até então se conservara duro como o diafragma de um zabumba, emurcheceu subitamente e um forte cheiro de gás ácido sulfúrico, acompanhado de estrondo, espalhou-se pelo aposento.

– Solte o gato, seu Antônio!

Guimarães soltou o bicho dizendo:

– Eu nãn lhes disse que o estapoire só sairia do corpo da rapariga, quando ela desse uma grande bufa?

O gato, assim que se viu livre das garras do ilhéu, ganhou a janela de um salto e a miar como um desesperado fugiu para o mato com a cauda erguida e o pêlo todo eriçado.

– Vai-te, excomungado; vai-te para as areias gordas, – gritava tia Maria. – Graças a Nossa Senhora da Conceição, saiu o diabo do corpo de minha afilhada. Ah! Pedro Camundá! feiticeiro danado! No inferno tu hás de pagar esta grande maldade. Te, esconjuro, coisa ruim!

Todos ficaram convencidos de que o tinhoso escapulira do corpo da rapariga; e, por conseguinte, estavam terminados os seus sofrimentos.

Efetivamente Manuelinha, caindo primeiro numa grande prostração, foi depois se restabelecendo a poder de gordos caldos de galinha, e no fim de algumas semanas estava completamente curada.

Guimarães, daí a uns seis meses comprou um pequeno sítio, e lá foi viver com a mulatinha. Dentro de anos juntou alguns cobres, porém tinha sempre no nariz e nos ouvidos a grande bufa que a rapariga soltara, quando o diabo lhe saiu das entranhas.
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(Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.239-251)
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A vingança do morto


A história que passamos a contar e que desentranhamos de uma velha crônica, já rendada pela traça, remonta ao primeiro período da colonização do Brasil. Teve por teatro a velha capitania de Pernambuco, e começa em tempos da governação-geral de Manuel Teles Barreto.

* * *

Lopo de Vila-Flor era o que, com toda a franqueza e sem cerimônia, se pode chamar um refinadíssimo patife.

Bêbado, jogador, devasso, desordeiro e mesmo ladrão, quando se lhe oferecia ocasião de defraudar o alheio, o governo de Portugal viu-se obrigado a deportá-lo para o Brasil, não obstante ser ele filho espúrio de um dos condes de Vila-Flor, gente que surgia na primeira linha da nobreza lusitana.

Não eram raros os indivíduos desse quilate, entre os fidalgos do século XVI. Os extensos privilégios de que gozava a nobreza, a noção errônea e perniciosa do demérito trazido pelo trabalho, a divisão social em classes, a frouxidão da justiça, embaraçada e desvirtuada pela incompreensão do princípio de eqüidade, uma pesada ignorância, fanatismo e preconceitos de toda a casta, influíam tão diretamente na depreciação do caráter, que até príncipes herdeiros presuntivos da Coroa, como esse filho de Henrique IV de Inglaterra, e outros, figuram às vezes na tradição como heróis de orgias, onde da bebedeira se passava ao roubo e ao homicídio, sendo em seguida tudo isso lavado da consciência por uma rica dotação a um convento ou uma peregrinação aos grandes centros de devoção cristã – Jerusalém, Roma, Santiago, etc.

Ora, nestes casos estava o herói da presente história. Filho do conde de Vila-Flor com a viúva de um fidalgo que morrera na Índia, pelejando pelo lustre das quinas portuguesas, Lopo fora criado com todo o carinho e mais que exagerada solicitude no faustoso solar do conde. Crescera, sendo-lhe permitidas pelo pai todas as extravagâncias, e cedo os fâmulos e servos começaram a suportar o gênio caprichoso e brutal do fidalguinho, sempre desculpado pelo velho conde que por ele tinha um afeto vivíssimo.

Chegando à idade viril, Lopo começou, dilatado, assim, o campo das suas aventuras, a exercer a sua índole, mas nos simples campônios, que o tinham por verdadeiro demônio: quotidianamente chegavam ao pai notícias de espancamentos, desrespeitos a donzelas, e perversidades de toda a espécie praticadas pelo seu Benjamim, e tanto este cresceu em audácia e cinismo que um dia levantou mão criminosa contra o pai, quando o repreendia por certo delito.

Indignou-se por tal forma o velho e honrado conde, com esse iníquo procedimento do infame, que, fazendo calar o grande amor que lhe consagrava, o expulsou da casa paterna, cobrindo-o de maldições.

Então Lopo de Vila-Flor passou-se para Lisboa, onde, em conseqüência do alto conceito que gozava sua família, recebeu logo ao chegar favorável acolhimento na Corte. Cedo, porém, revelando o degradante fundo do seu caráter, incompatibilizou-se com a sociedade lisbonense, e a Polícia do rei viu-se obrigada a deportá-lo para o Brasil, onde não seria tão prejudicial "por ser este país uma terra larga", dizia o alvará que o remeteu.

Eis o personagem que vai figurar como protagonista da presente história.

* * *

Com a mudança de ares não modificou Lopo o seu comportamento, e a população de Olinda contou desde o dia da sua chegada com mais um flagelo em seu seio. A sua vida decorria entre o bordel, a taverna e a espelunca, atribuindo-se-lhe grande número de desacatos às pessoas e lesões às propriedades. As coisas chegaram a tal ponto que o ouvidor lhe moveu séria perseguição, e o nosso valdevinos, para furtar-se às garras da Justiça, evadiu-se de Olinda, por uma madrugada, buscando a vila do Cabo. Com isto contentaram-se os moradores da velha capital pernambucana e o ouvidor deu por finda a sua missão.

A nossa, porém, irá mais longe, e nessa batida não abandonaremos mais o tresloucado fidalgote.

* * *

Havia duas horas que Lopo de Vila-Flor cavalgava em direção ao Cabo, e o sol já vinha rompendo, quando percebeu na sua frente um outro cavaleiro que seguia a mesma direção que ele. Lopo, interessando-se em saber quem era o cavaleiro, deu de esporas à égua que montava, e em breves minutos emparelhava com o matutino viandante.

Era dom Sancho, jovem fidalgo seu conhecido, bom rapaz, porém um tanto amigo do jogo, fato que permitiu a Vila-Flor travar com ele relações em uma espelunca.

Cumprimentaram-se alegremente e logo entabularam conversação. Dom Sancho ia à vila da Escada visitar um tio, rico proprietário de engenhos dessa localidade; Lopo Vila-Flor, ocultando o verdadeiro motivo da sua retirada de Olinda, disse ao companheiro que se dirigia à vila do Cabo por motivo de negócio.

Não falaram mais sobre os motivos da jornada, e começaram os dois, ao trote largo de suas cavalgaduras, a discretear sobre a vida em Olinda, e principalmente sobre aventuras de jogo.

Assim chegaram a um ponto em que o caminho era atravessado por um límpido regato. Aí, virando-se dom Sancho para Vila-Flor, disse-lhe:

– Amigo, já que o acaso nos reuniu para companheiros de jornada, permita que o convide a participar de um magro almoço que aqui trago, o qual, embora pouco sólido e variado, servirá para restabelecer em nossos estômagos um certo equilíbrio.

– De bom grado, – respondeu Vila-Flor,– mesmo porque o ar fresco da manhã e o trote deste cavalo abriram-me danadamente o apetite.

– Nesse caso façamos alto aqui, a fim de aproveitarmos esta belíssima água.

– Como queira.

Apearam-se, amarraram os cavalos no tronco de um espinheiro, e sentaram-se comodamente na barranca a fim de apreciarem o almoço, que constava de uma boa lasca de presunto, um requeijão, farinha de mandioca e um botijão de excelente vinho português. Comeram e beberam melhor, tudo na mais satisfatória harmonia, e, terminada a refeição, Lopo disse para o companheiro:

– Para que a nossa pequena festa seja completa devemos agora jogar alguns cruzados numa pequena parada.

– Mas onde estão os dados?

– Tenho-os aqui.

– Todavia não jogo, pois não venho suficientemente abastecido de dinheiro.

– Nem eu também me acho folgado. No entanto, vinte ou trinta cruzados que se percam não aleijam a ninguém, nem pelo temor de perdê-los deve-se deixar escapar tão boa ocasião.

– Vá lá, porém com uma condição.

– Aceito-a desde já.

– É que, quando qualquer de nós tenha perdido quarenta cruzados, não se jogará mais.

– Às mil maravilhas; todo o meu dinheiro é apenas cinqüenta cruzados e assim me ficarão ainda dez para os gastos.

Convém observar ao leitor que cinqüenta cruzados, ou por outra vinte mil réis, eram naquele tempo uma quantia assaz importante, a regular-se pelos ordenados dos governadores-gerais, os quais, embora representassem a pessoa real e tivessem um mando que ia até o direito de morte em peões e gentios, apenas percebiam 400$000 anuais.

Estabelecida a preliminar da suspensão do jogo, logo que um dos parceiros perdesse quarenta cruzados, Lopo de Vila-Flor, tirou do bolso do gibão uns dados de osso, e começou a partida. tendo cada um parado dez cruzados de mão.

Lopo perdeu, e dom Sancho embolsou o dinheiro.

Seguiu-se uma outra partida, também de dez, e Lopo tornou a perder. Já um tanto impaciente, Lopo jogou numa terceira partida o resto dos quarenta cruzados da convenção, isto é, vinte.

Tornou a perder, e dom Sancho, embolsando as moedas, levantou-se disposto a prosseguir em sua viagem. Deteve-o Vila-Flor com estas palavras:

– Amigo, joguemos mais uma partida.

– Por forma alguma; segundo dissestes, o vosso dinheiro constava unicamente de 50 cruzados, e perdestes 40. Com que dinheiro fareis o resto de vossa jornada, se a sorte continuar a fugir de vós numa nova parada? Eu tenho por princípio inabalável não restituir dinheiro ganho ao jogo, ainda que o perdesse o meu próprio pai, e depois foi a condição que ditei antes de começarmos o jogo...

– Com que, então dom Sancho, – redarguiu colérico o filho do conde de Vila-Flor,– me arrancaste quarenta cruzados e assim me deixais no meio da estrada, quase sem dinheiro para pagar a hospedagem na primeira albergaria?!. .. Permiti que vos diga, sr. dom Sancho, que o vosso procedimento se assemelha muito ao de um bandido de estrada.

Ao ouvir essa inconcebível insolência, dom Sancho corou até à raiz dos cabelos, e, colocando a mão no copo da espada, respondeu com altivez:

– Sr. Lopo, se a nobre família de Vila-Flor tem por hábito tragar sem protesto de ponta de espada insultos como o que acabais de proferir, nunca a dê Sancho de Miranda, em todos os seus descendentes; até o mais longínquo futuro, sofre-las-á sem responder ao atrevido, enristando-lhe o ferro dos desagravos honestos.

Eram de bom gosto nesse tempo essas tiradas infladas de basófia e sensitivos pundonores, mas assim como se dizia fazia-se, e, seguindo a regra dom Sancho procurou desnudar a espada.

Embaraçou-se, porém, em tirá-la da bainha, e o pérfido Vila-Flor aproveitando-se desse desarmamento momentâneo, sacou da sua adaga, e enterrou-a até as guardas no peito do inimigo.

Dom Sancho, sem soltar um gemido, tombou, golfando sangue pela boca.

Em três segundos era cadáver.

Lopo de Vila-Flor, saqueando-lhe as algibeiras, arrastou o corpo para junto de um penhasco, que da estrada não se percebia, e em seguida continuou a sua viagem, sem se preocupar o mais levemente possível com o monstruoso crime que acabava de perpetrar.

Ora... tinha na algibeira dinheiro suficiente para a crápula... Que lhe importava o cadáver feito por suas mãos, que ficava apodrecendo junto à estrada, sem ao menos uma cruz presidindo à final consumação da carne?

* * *

Passaram os tempos. Insuficiente como era a polícia no primeiro período da colonização do Brasil, tendo de exercer-se com minguadas forças e em dilatadíssimas extensões, apesar dos esforços empregados pela família de dom Sancho, a fim de descobri-lo, o crime de Lopo de Vila-Flor não foi conhecido, e o assassino continuou a desregrada vida de bebedeiras, jogatinas e crápula.

Cinco anos já eram decorridos, quando aconteceu um dia cursar Vila-Flor o caminho entre a Escada e Olinda. Era a primeira vez que isso lhe acontecia, depois que ali praticara o seu nefando homicídio, do qual bem pouco se lembrava já.

Cavalgando, chegou ao riacho, onde cinco anos antes havia feito a merenda e jogado aquela partida de dados que tão fatal fora a dom Sancho.

Então veio-lhe ao pensamento todos os inciŽdentes daquela triste cena, e como por sugestão diabólica teve uma viva curiosidade de examinar o lugar em que havia depositado o cadáver do inditoso mancebo. Não pôde resistir à tentação, e, apeando-se, dirigiu-se para o penhasco. Logo o encontrou.

O cadáver apodrecera ali mesmo, e fora devorado pelos corvos. Os ossos achavam-se espalhados por um circuito de quatro a cinco braças, no qual a relva havia fenecido.

Bem no centro da ossada dispersa achava-se a caveira.

Lopo de Vila-Flor teve um gesto de horror, assim que avistou esses restos, porém domando tal movimento, procurou encher-se de coragem, e apostrofou a caveira da seguinte forma:

– Então, dom Sancho, queres agora jogar mais uma partida dos dados?

E sorriu-se, admirado do próprio cinismo.

Qual não foi, porém, o seu assombro ao ver a caveira torcer-se no chão com estalidos secos, e responder-lhe em voz de tão estranha modulação que lhe fez gelar o sangue nas veias:

Vai seguindo teu caminho,
Não perturbes minha paz,
Joga, encharca-te de vinho,
Faze tudo o que te aprazo

Por ora nada te oprime,
E não te digo mais nada,
Mas tua conta de crime,
Será na Bahia ajustada.

Lopo de Vila-Flor, ao ouvir tão estranhos versos, cujo sentido não compreendia, sentiu os cabelos levantarem-selhe na cabeça, e o corpo entrou-lhe todo a tremer. Assim permaneceu alguns segundos, porém, afinal, recobrando algum ânimo, correu espavorido para a estrada, montou a cavalo, e a todo galope fugiu daquele sítio assombrado.

* * *

As medonhas palavras que ouvira não podiam, no entanto, sair-lhe da mente; e, assim, na primeira povoação a que chegou, procurou um padre e pediu-lhe que o ouvisse de confissão, comunicando ao sacerdote o seu crime e a terrível ameaça da fantástica caveira.

O padre ficou assombrado com o que ouvira, e, prescrevendo ao criminoso dura penitência, aconselhou-o que nunca dirigisse os seus passos à Bahia pois as palavras da caveira lhe anunciavam que nesse lugar encontraria ele castigo do seu delito.

Durante alguns meses Lopo de Vila-Flor conservou-se apreensivo sobre o seu destino, mas afinal a vida de dissipação que levava, e bem assim o firme propósito que havia formado de nunca ir à Bahia, tranqüilizaram-no de todo, e pouco a pouco foi perdendo a lembrança do sucedido.

Por esse tempo os holandeses tinham invadido Pernambuco, e vencendo a tenaz resistência que lhes havia oposto o esforçado Matias de Albuquerque, haviam conseguido destruir o arraial do Bom-Jesus e expelir os portugueses de Pernambuco, depois de derrotá-los em diversos pontos.

Lopo de Vila-Flor pelejava ao lado dos portugueses, como comandante de uma companhia, e, assim, quando o príncipe de Bagnuolo, após o insucesso de Porto-Calvo, retirara-se para as Alagoas, Lopo de Vila-Flor, bem como todo o exército poŽtuguês ora obrigado a acompanhá-lo.

Senhores de Pernambuco, os batavos perseguiram os portugueses até as margens do São Francisco, e estes, não podendo oferecer resistência eficaz ao inimigo, em Sergipe, tiveram de se recolher à Bahia.

Achou-se, pois, Lopo de Vila-Flor sem o querer, e sem mesmo nisto pensar, no lugar que tanto temia, ali conduzido pelo acaso ou pelo desígnio da Providência.

* * *

No entanto o filho do conde português não ligava mais a menor importância às suas antigas apreensões. Os episódios da grande guerra em que se achava empenhado, o espetáculo da morte que tantas vezes havia presenciado, tornaram-no inacessível ao remorso, e, como outrora, a sua única preocupação era jogar, beber e folgar.

Ora, de uma vez Lopo de Vila-Flor convidara alguns camaradas de armas para almoçar com ele e depois jogar algumas partidas. A reunião devia ter lugar numa sexta-feira, e Vila-Flor na manhã desse dia dirigiu-se à Praça a fim de comprar qualquer peça de carne com que regalasse os amigos.

Com a permanência das tropas pernambucanas na Bahia, a vida nesta cidade tornara-se muito difícil, sendo geral a escassez de víveres. Os que apaŽeciam nas feiras eram logo arrematados por preços elevadíssimos e muitíssimas famílias começavam a sofrer duras privações.

Assim, Lopo de Vila-Flor teve enorme dificuldade em encontrar um bom guisado para oferecer aos seus convidados. No mercado da cidade não havia mais nada de suculento para comprar, tendo Lopo que se contentar com uma cabeça de carneiro, cujo corpo já tinha sido arrematado por alguns oficiais que andaram mais adiantados do que ele.

Embora mortificado por esse contratempo, Lopo de Vila-Flor pagou bem caro a cabeça de carneiro, metendo-a dentro de um saco de estopa, e levou-a para casa, confiado que o seu cozinheiro, um crioulo baiano, saberia dar a essa peça inferior um tempero digno do paladar dos seus amigos.

* * *

Quando chegou à sua habitação, já lá se achavam os convidados: eram uns quatro ou cinco rapazes alegres que o receberam com uma salva de palmas e exclamações jubilosas.

– Com que, então, – disse um deles, – temos hoje um almoço de arromba

– Qual o quê, – respondeu Lopo contristado, – nada encontrei digno de vós, nos mercados; tudo já tinha sido arrematado. Em caminho encontrei-me com um frade gordo de São Francisco, que conduzia embrulhado no hábito seboso um excelente capão. Tive ímpetos de assassinar aquele guloso servo de Deus, e roubar-lhe o bicho, que daria uma magnífica cabidela, porém temi encontrar-me no inferno com aquele patife, o qual, por seu compadresco com o diabo, me obrigaria a restituir-lhe o frangão.

Uma gargalhada acolheu essa tirada.

– Mas, então, nada encontraste

– Isso não; aqui trago uma bela cabeça de carneiro, que, sendo confiada à habilidade do nosso Lourenço, que em matéria de cozinha é mais perito do que o seu primo Henriques Dias, em questão de guerrilha, nos dará um almoço regular.

– Pois, então, viva a cabeça de carneiro, em falta de coisa melhor! – exclamaram os rapazes alegremente.

– O que lhes garanto é que é uma cabeça de carneiro do tamanho da de um novilho. Ei-la.

E, dizendo isso, Lopo desceu a boca do saco e fez rolar no soalho o conteúdo do mesmo.

Mas. .. oh! assombro!

Em lugar de uma cabeça de carneiro, rolou na sala, a espadanar sangue, uma coisa monstruosa. O que Lopo e seus convidados viram, no maior espanto, foi uma cabeça humana, medonhamente lívida, de olhos vidrados, lábios espumantes e cabelos empastados.

Um grito de pavor saiu de todos os peitos, e Lopo de Vila-Flor, não podendo conter a extraordinária emoção que dele se apoderou, exclamou trêmulo e de olhos esbugalhados:

– Dom Sancho de Miranda!

O assassino tinha reconhecido nos traços daquela espantosa cabeça as feições da sua vítima.

Nada mais pôde dizer: uma névoa densa obscureceu-lhe a vista, ganhou-lhe o corpo todo um torpor indizível, e rolou sem sentidos na sala.

* * *

Compreenderam logo os companheiros que se tratava de um crime nefando, pois alguns reconheceram igualmente aquela cabeça como a de dom Sancho que havia muitos anos tinha desaparecido da capitania de Pernambuco.

Assim entregaram Lopo de Vila-Flor à Justiça, e o indigno, sendo tomado de estranha confusão, revelou imediatamente o crime que havia cometido, com todas as suas minudências agravantes.

Foi-lhe instaurado processo; e, comparecendo em julgamento, condenado à morte, sentença essa que a Casa-da-Suplicação de Lisboa confirmou. Como era nobre, não subiu à forca: cortaram-lhe simplesmente a cabeça em uma das praças da Bahia, e assim se cumpriu a estranha ameaça proferida pela caveira de dom Sancho... "E", termina a crônica de onde extraímos esta história, "tudo assim aconteceu, para que não ficasse no mundo sem castigo um homem que tantos agravos às pessoas e bens havia praticado – um endurecido pecador que agora está purgando as suas grandes culpas nas profundezas do inferno".
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Fonte: "Padilha, Viriato. O livro dos fantasmas. Rio de Janeiro, Spiker, 1956, p.83-95" in  Jangada Brasil.
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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

O segredo da guilhotina

Às 7 horas da noite de 5 de junho de 1864, o Dr. Edmundo Couty de La Pommerais, que fora transferido das prisões da Conciergerie à da Roquette, estava sentado na cela dos condenados à morte.

Taciturno, imóvel, com os olhos parados, apoiava-se numa cadeira. A vela sobre a mesa iluminava seu rosto pálido, paralisado. A dois passos dele um carcereiro com os braços cruzados, encostado na parede, o vigiava.

Quase sempre, prisioneiros eram obrigados a trabalhar todos os dias e do soldo que recebiam era descontado pela administração, como prioridade, o custo de um caixão no caso de morte. Mas os condenados à morte não tinham trabalho obrigatório.

No rosto do prisioneiro não havia nem medo nem esperança. Tinha 34 anos, moreno, de estatura mediana, forte; nas têmporas os cabelos começavam a clarear; o olhar instável, a testa larga, mãos agitadas; a fisionomia calma e os modos distintos.

No Tribunal do Sena, a defesa do advogado Lachaud, apesar de brilhante, não alterara na consciência dos jurados a impressão transmitida pela acusação do senhor de Vallés. E La Pommerais, acusado de ter ministrado, com premeditação e fim delituoso, doses mortais de digitalina a uma senhora sua amiga - a Sra. De Pauw - ouviu a sentença de morte, conforme artigos 301 e 302 do Código Penal.

Naquela noite ele ainda ignorava a rejeição do recurso da pena e de qualquer audiência solicitada pelos seus familiares. Seu defensor foi atendido com displicência pelo imperador. O venerável abade de Crozes, que a cada execução suplicava branduras nas Tulherias, voltara sem nada conseguir. Comutar uma pena de morte poderia aparecer como uma abolição. Abrir-se-ia um precedente muito grave. O carrasco fora avisado que a execução seria no dia 9, às 5 horas da manhã.

Subitamente, um estrepitoso bater de coronhas de fuzil ressoou no corredor, a fechadura rangeu, a porta se abriu e o diretor da Roquette surgiu acompanhado de visitante que La Pommerais reconheceu como sendo Armand Velpeau, ilustre cirurgião. A um sinal o carcereiro saiu e o diretor, após formal apresentação entre os dois colegas, também se retirou.

* * *

Velpeau alcançava seus 60 anos. No apogeu da sua fama, herdeiro da cátedra de Larey no Instituto, primeiro professor de clínica cirúrgica de Paris, era tido, pelos trabalhados executados, um luminar da patologia da época.

Depois de breve silêncio, ele disse:

- Entre médicos as condolências são inúteis. Por outro lado, uma moléstia - da qual morrerei nos próximos dois anos, ou, no máximo, dois e meio - me classifica, com alguns meses de distância do colega, na categoria dos condenados à morte. Vamos então ao que interessa.

- Então, segundo o colega e professor, a minha situação é sem esperança? - interrompeu La Pommerais.

- Teme-se - respondeu, simplesmente, Velpeau.

- Assim, a minha hora está marcada?

- Eu ignoro. Como ainda não está nada concretizado, o colega pode contar com alguns dias.

La Pommerais enxugou a fronte pálida com a manga da sua roupa de prisioneiro.
- Seja o que for, estou pronto. Quanto antes acontecer, melhor.

- Se o seu recurso não foi até agora rejeitado - prosseguiu Velpeau - a proposta que venho fazer é condicionada. Se for salvo, tanto melhor, caso contrário...

- Caso contrário?...

Sem responder, Velpeau apoiou o dedo médio no pulso do jovem condenado.

- Senhor La Pommerais, - disse - sua pressão revela tratar-se de um homem muito calmo, de uma firmeza rara. O que pretendo propor ao colega, que deve ficar em segredo, pode parecer, dirigida desta maneira a um médico cheio de energia e bastante destemido, uma extravagância ou mesmo uma intenção maldosa. Mas, mesmo que ela possa consterná-lo, no primeiro instante, espero que o colega a leve em consideração.

- Tem toda a minha atenção - respondeu La Pommerais.

- O amigo não ignora - continuou Velpeau - que uma das questões mais interessantes da fisiologia moderna é saber se algum resto de memória, reflexão, sensibilidade, persiste no cérebro do homem, depois que a cabeça lhe é decepada.

Ante tal preâmbulo, o condenado assustou-se, mas recompôs-se em seguida:

- Quando o professor entrou, - respondeu - eu imaginei mesmo alguma coisa nesse sentido, mas que pudesse ser interessante para mim.

- O colega certamente está informado dos trabalhos escritos sobre tais problemas: de Sommering, de Sue, de Sédillot, e de Bichat, até os mais modernos.

- Certa vez assisti seu curso sobre dissecação no cadáver de um justiçado.

- Ah! E tem noções exatas, numa visão cirúrgica, sobre a guilhotina?

La Prommerais respondeu com frieza:

- Não.

- Hoje mesmo estudei detalhadamente a guilhotina - prosseguiu Valpeau, sem comoção. - É um instrumento perfeito. Age a um só tempo como foice e como clava, corta o pescoço do paciente num terço de segundo, exatamente. O decapitado, com a rapidez fulminante do golpe, não sente nenhuma dor, como a de um soldado que perde o braço na explosão duma granada. A sensibilidade, pela exigüidade do tempo, é nula.

- Talvez a dor venha depois...

- Bérard fez justiça a essa fantasia - interrompe prontamente Velpeau. - Estou plenamente convicto, baseado em numerosas experiências e observações generalizadas, que o rompimento instantâneo da cabeça resulta numa anestesia absoluta. Saber que a síncope, provocada pela repentina perda de quatro a cinco litros de sangue - freqüentemente com força de expansão de projeção circular de um metro de diâmetro - deveria tranqüilizar os mais medrosos.

Quanto às reações inconscientes da estrutura carnal, mesmo que subitamente sustada no seu processo, não são indícios de sofrimento como no frêmito de uma perna cortada, cujos músculos e nervos se contraem depois da amputação, sem sofrimento do indivíduo. Eu digo que a febre nervosa da incerteza, a preparação da solenidade da execução, o assombroso despertar no dia fatal, se apresentam como os terríveis sofrimentos. Sendo, portanto, imperceptível a amputação, a dor real é imaginária.

Um golpe assim violento na cabeça, não só não é sentido, como não lhe deixa a consciência do fato: a simples lesão das vértebras provoca absoluta insensibilidade. A rescisão da cabeça, o corte da espinha dorsal, a interrupção das relações orgânicas entre o coração e o cérebro, não seriam então suficientes para exterminar qualquer sensação, mesmo íntima ou vaga, da dor? Creio que sim.

- Pelo menos eu espero que sim, mais ainda do que o professor! - responde La Pommerais. - Ainda que haja qualquer sofrimento físico - apenas concebido pela desordem sensorial e o sufoco crescente da morte - não é isso que eu temo. E outra coisa...

- Pode me explicar? - perguntou Velpeau.

- Escute, - murmurou Velpeau, depois de um instante de silêncio. - Eu penso que os órgãos da memória e da vontade estejam isolados na passagem da lâmina! Temos experimentado muitos equívocos até hoje, para que se possa falar da inconsciência imediata de um decapitado. Quantos homens, questionados, têm se dedicado ao problema?... Memória dos nervos? Movimentos reflexos? Não. Recorda-se da cabeça daquele marinheiro que, na clínica Brest, um quarto de hora após sua decapitação, moveu seus maxilares, talvez voluntariamente, partindo em dois um tudo colocado entre eles?... Para não escolher apenas este exemplo entre tantos outros, a questão seria saber se existe ou não o ego deste homem, que contrai os músculos da cabeça exangue. Quem poderia revelar isso? Antes de oito dias eu vou saber, mas... também esquecerei!

- Depende mesmo do colega esclarecer a humanidade a respeito, definitivamente - respondeu calmamente Velpeau, olhos fixos no interlocutor. - E falemos claro, é exatamente por isso que estou aqui. Fui delegado por uma comissão dos mais eminentes colegas da Faculdade de Paris, junto ao colega, aqui, para fazer a última tentativa junto ao imperador.

- Explique... Não entendo... - respondeu perplexo La Pommerais.

- Senhor de La Pommerais! Em nome da ciência, que nos é muito importante e que não conta mais com inúmeros mártires magnânimos, venho reclamar - na hipótese de alguma experiência entre nós for possível - reclamar de todo seu ser toda a energia e a coragem que se possa conseguir de um ser humano. Se o seu recurso de graça for negado, o colega estará numa condição ímpar como médico, competente e lúcido, a sofrer uma suprema e fatal cirurgia. Assim, seria inestimável sua cooperação comunicação experimental, em busca de esclarecimentos sobre o corpo e as sensações. A ocasião deve ser aproveitada. No caso de um sinal de inteligência, identificado depois da execução, o colega vai deixar um nome cuja glória científica obscurecerá para sempre a lembrança da sua culpa social.

- Ah! - murmurou La Pommerais, pálido mas com um sorriso resoluto. - Começo a compreender!... E de que natureza seria a experiência? Choque elétrico? Excitação do nervo ciliar? Injeção de sangue arterial?

- Ao colega é dispensável salientar que, depois da triste cerimônia, o seu cadáver irá repousar em paz sob a terra e que nenhum dos nossos instrumentos serão usados nele - acrescentou Velpeau. - Ao cair da lâmina estarei de pé diante do colega, junto à guilhotina. O mais rápido possível, a sua cabeça passará das mãos do carrasco às minhas. Então, gritarei, claramente, ao seu ouvido: "Senhor de La Pommerais, pode neste momento abaixar três vezes a pálpebra do olho direito, conservando o outro aberto?"

Se então puder o colega, quaisquer que sejam as outras contrações faciais, puder fazer o tríplice piscar de olhos, me avisando que me ouviu e compreendeu, provando assim o uso da memória e da vontade através do seu músculo palpebral, do nervo zigomático e da conjuntiva - controlando todo o horror e a onde de impressões do seu ser - bastará para iluminar a ciência e elevar nossas convicções. E seu nome, esteja certo disso, será anunciado de maneira que o colega será lembrado no futuro, não como um delinqüente, mas como um herói.

Diante destas palavras, La Pommerais pareceu tão emocionado que, com suas pupilas dilatadas e fixas no cirurgião, permaneceu alguns minutos em silêncio, imóvel. Depois se ergueu e deu alguns passos, balançando a cabeça com ar tristonho:

- A horrível violência do golpe vai me fazer desmaiar. Realizar o que me pedes, fica acima de toda a vontade e esforço humano. Mas, diz-se que as chances de vida não são as mesmas para todos os guilhotinados. Então volte, professor, no dia da execução. Responderei se concordo ou não com a empreitada, ilusória e impressionante. Se eu não concordar, conto com a sua palavra que a minha cabeça sangrará totalmente, até a última gota, no vaso de barro.

- Está bem, senhor de La Pommerais - disse Velpeau, levantando-se - reflita bem sobre o caso. Em seguida o doutor Velpeau saiu da cela. O carcereiro reapareceu e o prisioneiro se deitou, resignado, para dormir ou sonhar.

* * *

Quatro dias depois, às cinco e meia da manhã, o diretor da Roquette, o abade Crozes, os senhores Claude e Potiers, este conselheiro da corte imperial, penetraram na cela.

O doutor de La Pommerais, ao saber da notícia fatal, se conservou de cabeça baixa, muito pálido. Depois se levantou e se vestiu rapidamente. Em seguida, conversou cerca de dez minutos com o abade Crozes, ao qual já agradecera a visita. Ao avistar o doutor Velpeau anunciou:

- Tenho trabalhado, veja!

E, durante toda a leitura da sentença, conservou fechada a sua pálpebra direita, olhando o cirurgião com o olho esquerdo bem aberto.

Ao final, Velpeau se inclinou demoradamente diante do colega, depois voltou-se para o carrasco, que entrava com seus ajudantes, e trocou com ele um sinal, como a confirmar um tratado.

O apresto foi rápido. O fenômeno dos cabelos que se branqueiam rapidamente ao corte da tesoura nos condenados à morte, não ocorreu. La Pommerais recusou o copinho de aguardente e o cortejo seguiu pelo corredor. Diante do pátio, estando na porta o colega, murmurou-lhe:

- Daqui a pouco... adeus!

* * *

De repente os grande portões de ferro do presídio, que davam para a rua, se abriram.

A aurora despontava. Via-se a praça, organizada por um duplo cordão de cavalarianos. No centro, num semicírculo de guardas a cavalo, surgia o patíbulo. A uma certa distância, além do grupo de jornalistas, não havia ninguém. Mais embaixo, atrás das árvores, ouviam-se os rumores bestiais da multidão, cansada da vigília. Nas coberturas das tavernas, nas janelas, jovens corrompidas, lívidas, em roupas excêntricas; outras, ainda trazendo nas mãos as garrafas de vinho - surgiam acompanhadas de tristes casacas pretas. Já as andorinhas, madrugadoras, voavam em círculos, sobre a praça.

O cadafalso parecia prolongar até o horizonte a sombra dos seus braços estendidos, entre os quais, lá em cima, muito mais distante, no clarão da alvorada, se via brilhar a última estrela.

Diante deste fúnebre espetáculo, o condenado teve um calafrio; depois se aprumou e caminhou direto ao palco, inclinando-se na posição de entrega. A lâmina triangular brilhava junto ao negro madeirame; cinco pessoas se perfilavam no patíbulo e o silêncio, naquele momento, se tornou tão profundo que o leve rumor de um ramo quebrado pelos pés de um curioso chegou até o trágico grupo.

Soando a hora em que lhe foi negado o último recurso, o doutor de La Pommerais pôde ainda ver, do outro lado, seu ilustre colega, que o observava. Fechou os olhos, concentrando-se.

A mola escapou bruscamente, o botão cedeu e o brilho da lâmina oscilou. Um choque violento sacudiu a plataforma e os cavalos se agitaram, como a sentir o cheiro de sangue; o eco do barulho ainda vibrava quando a cabeça ensangüentada da vítima parecia palpitar entre as mãos do doutor Velpeau, avermelhando-lhe os dedos, os punhos, a roupa.

Era um rosto terrivelmente branco, olhos escancarados, com os supercílios arqueados e a boca contraída; os dentes pareciam soltos e o mento, na extremidade da mandíbula, estava cortado.

Velpeau curvou-se sobre a cabeça e, junto à orelha direita, fez a pergunta combinada. Apesar de preparado para aquela contingência, sobressaltou-se, sentindo um frio percorrer-lhe a coluna: a pálpebra do olho direito se abaixou, enquanto o olho esquerdo fixou-o, escancarado.

-Em nome de Deus e do nosso ser, mais duas vezes este sinal! - gritou, confuso.

Os cílios separaram-se, como sob esforço interno, mas a pálpebra não mais se ergueu e a fisionomia se tornou, aos poucos, rígida, gélida e, por fim, imóvel. Era o fim. Então o doutor Velpeau entregou a cabeça exangue ao carrasco, que a colocou num cesto, segundo os costumes, entre as pernas do corpo quase rígido.

O célebre cirurgião lavou as mãos numa das vasilhas destinadas à lavagem da guilhotina. O público se dispersava, silencioso. Também em silêncio, o doutor enxugou as mãos e caminhou a passos lentos, preocupado, até o coche que o esperava junto ao portão.

Ao sair observou a lúgubre carreta que se afastava rapidamente, para o cemitério dos justiçados.

por Villiers de L'Isle-Adam
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