Somente porque tem uma bicicleta o camarada não é necessariamente um
ciclista. Do mesmo modo o camarada pode ter uma cuíca e não ser
sambista, um telefone e não ser telefonista, uma batuta e não ser
maestro, uma mulher e não ser casado. Já com este nosso personagem de
hoje, a coisa foi diferente: tirou uma máquina de escrever na rifa e
resolveu ser escritor.
Como, minha senhora? Se a rifa foi da paróquia de São Judas Tadeu,
dirigida pelo Padre Góis, aquele que diz que o referido santo é tão
rubro-negro que costuma suar a camisa número 12 quando o Flamengo está
jogando? Não senhora. A rifa foi promoção de um amigo que precisava
operar a avó. E fique quieta, madame, porque nós vamos contar a história
toda.
Deu-se que ele ficou com um bilhete da rifa: o número 312, centena do
burro. Quando a coisa correu, saiu premiado e ganhou a máquina de
escrever. Não era lá muito nova; pelo contrário, faltava a letra "Q"
mas, felizmente, tinha a letra "K" e quem escrevesse podia apelar,
escrevendo mais ou menos assim: "Kue linda tarde, kerida — disse Kuincas
ao entrar no kuioskue."
Mas isto são detalhes. O importante é kue, digo, que a máquina saiu
premiada para ele e, num rasgo de impensado romantismo, resolveu ser
escritor. Até então vivia dos seus proventos de aviador mas,
entusiasmado pela presença daquela Underwood enferrujada, largou tudo
pela nova profissão:
— "Nunca mais serei aviador!" — berrou na solidão do quarto.
O que, madame? Se ele largou a Aeronáutica? Não, dona. Ele era aviador
de receita, numa farmácia do bairro. E pare de chatear, senão não conto a
história.
Sim, seria um escritor! Mas de quê? Escritor propriamente dito, o único
que consegue viver disso no Brasil (por causa das traduções pro
estrangeiro) é o Jorge Amado. Outros escritores, por mais escritores que
fossem, enriqueciam os editores. E se fosse escritor de contos
policiais? Ah... boa idéia. Mas no Brasil é difícil, por causa da
concorrência dos americanos do norte. Em cada três escritores
americanos, oito escrevem contos policiais. O único escritor brasileiro
no gênero é o Luís Coelho, mas este ganha dinheiro aos potes, no Foro de
São Paulo. É um grande advogado e por isso é que se dá às veleidades de
Conan Doyle do Anhangabaú. Talvez um escritor mais simples: de crônicas
mundanas. Sim, cronista mundano.
Olhou-se no espelho e ficou encabulado. Tal como todos os cronistas
mundanos, não tinha cara de cronista mundano. A decisão veio de repente.
Lembrou-se que, na véspera, durante o bate-papo no café, alguém tinha
dito que o último filme de Zé Trindade — "O Empacotador de Fumaça" —
tinha dado 10 milhões de renda na cadeia do Luís Severiano.
O que, dona? Se o Luís Severiano está em cana? Ainda não, minha senhora.
Por que haveria de estar? O filme tinha dado dez milhões na cadeia, mas
cadeia de cinemas do referido cidadão.
Ora, se um filme cocoroca como aquele (ele assistira ao filme no Cine
Rian, com uma mão na perna da namorada e outra na sua cocando pulga)
tinha dado aquele dinheirão todo, imaginem um filme bem planejado, com
um escrito inteligente, como aquele de "O Cangaceiro", que o Lima
Barreto fez? É. Ia ser escritor de cinema. Faria um argumento com
diálogos sérios, usando como tema algo bem brasileiro. Não usaria
cangaceiro porque, de uns tempos para cá, cangaceiro é a mesma coisa que
cowboy só que o chapéu é de couro e a aba é pra cima.
Durante uns três meses não fez outra coisa senão escrever e rasgar o que
estava escrito. Não desanimou por causa disso. Pelo contrário: quanto
mais escrevia, mais sentia que seria capaz de escrever um argumento que
seria a redenção do cinema nacional. E, de tanto tentar, acabou
encontrando a idéia genial: faria uma adaptação perfeita de "Os
Sertões", de Euclides da Cunha. Era a grande epopéia brasileira, na qual
poderiam ser incluídos grandes números do nosso folclore, poderiam ser
aproveitados os mais sérios intérpretes e ainda sobraria margem para
diálogos soberbos. Isto sem contar as possibilidades imensas da história
como linguagem cinematográfica e os recursos fotográficos que se
poderiam usufruir das cenas imaginadas.
Duraram quase dois anos as suas vigílias, batucando a velha máquina, na
adaptação da grande obra literária de Euclides da Cunha em obra
supinamente cinematográfica. Suas economias, do tempo em que ainda era
aviador (de receitas), já tinham ido pra cucuia. Devia quase 50 contos
nos tamboretes da praça, pequenos bancos que se dão ao feio vício da
agiotagem. Mas não desistiu.
Depois de tanta luta, viu um dia o trabalho pronto. Estava tinindo. O
primeiro produtor que procurou foi o Eurides Ramos, que recusou a
proposta. Bem-feito, quem mandou cair nas mãos de Eurides? Foi pro já
citado Severiano, mas este também recusou porque estava com 16 fitas do
Oscarito prontas para serem lançadas. Procurou aquela turma de São
Paulo, que quis transformar os morros de São Bernardo do Campo em
Beverly Hills, e penetrou pela tubulação. Nada.
Foi aí que soube de um italiano recém-chegado. Como todo italiano
recém-chegado que não é nobre, este era cineasta. Já tinha interessado
um outro italiano (este há muito chegado e nobre, além de industrial) a
financiar um filme. O nosso abnegado amigo botou a papelada debaixo do
braço e foi discutir o assunto com o "cineasta". Foi uma luta dura, na
qual capitulou e acabou entrando pelos Canudos, que nem Euclides da
Cunha. O "cineasta" já tinha contratado o Alberto Ruschel para fazer o
mocinho e o Milton Ribeiro para representar o bandido.
— Aqui onde você botou um número folclórico, fica melhor a gente incluir
uma marchinha que a Emilinha Borba vai cantar e vai ser um estouro —
propôs o cineasta.
E não adiantava dizer que não. A Emilinha, realmente, defenderia melhor o
capital do industrial que, por sinal, achou o argumento ótimo, mas
ficou meio chateado porque o mocinho não tinha um amigo. Mandou
modificar este detalhe e contratou o Grande Otelo. Enfim, foram
introduzidas pequenas modificações no entrecho. Coisa de somenos, que
não dava para atrapalhar muito. As lutas dos sertanejos foram
devidamente adaptadas para uma briga na boite, cena que só aparecia no
fim da fita, para dar mais sustança ao grande final. E o título, para
que o tal Euclides da Cunha não viesse depois reclamar direitos
autorais, também foi mudado. Em vez de "Os Sertões", passou a ser
"Mulheres no Matagal". Vai estrear breve.
Como, minha senhora? O que foi que aconteceu com o grande escritor? Ora,
dona. Teve que topar tudo para pagar o que devia. Não, senhora... não
está mais escrevendo. Voltou a ser aviador. Está funcionando na Farmácia
Santa Teresinha, aberta dia e noite.
Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.