terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Zulmira e o poeta

A velha ermitã está danada com a bisbilhotice minha, que aliás foi motivada por bisbilhotice maior, do coleguinha Paulo Mendes Campos. Deu-se que eu estava aqui posto em sossego, com a minha possante Telefunken ligada, a ouvir a Sonata para violino em sol menor, de Claude Debussy, na execução de Arthur Grumiaux, acompanhado ao piano por Istvan Hajdu, quando, ainda no primeiro movimento, isto é, o "Allegro vivo", tocou o telefone.

Era o Paulinho Mendes Campos que, logo de saída, veio com uma estranha pergunta:

— Onde estava sua Tia Zulmira em 1911?

Fiz um esforço de memória e respondi: — Estava na Europa, ministrando um curso de francês na Sorbonne e era a vedeta do "Follies Bergère".

Foi então que o Paulinho, do outro lado do fio, permitiu-se uma exclamação de regozijo e me perguntou se eu não achava muito estranha a coincidência, pois mais de uma vez, em seus poemas, o parnasiano Raimundo cita o nome de Zulmira. Aliás, devo explicar aos caros leitores, que era uma velha cisma nossa — minha e do Mendes Campos — achar que a sábia senhora foi cacho do poeta das pombas.

Claro que tia Zulmira sempre negou o fato, quando cuidadosamente inquirida pelo sobrinho dileto, mas nem por isso nossa cisma diminuiu. É só dar uma passada na obra de Raimundo Correia para reparar que há versos e mais versos que só podiam ser inspirados pela ermitã bocadomatense. Senão, vejamos: em "Sonho turco", o poeta mete lá:

"Mulheres e cavalos com fartura, Bons cavalos e esplêndidas mulheres".

Isso só pode ser coisa da velha que nunca escondeu amar nos homens os exageros amorosos. No mesmo poema, inclusive, há  outro verso que cheira a coisa de titia:

"Como polígamo e amoroso galo
A asa arrastando a inúmeras esposas
Nem sabe qual prefira".

É verdade que, na biografia de Zulmira, Raimundo Correia não aparece como um dos seus maridos legais (legais no sentido jurídico da palavra, pois de vários Tia Zulmira tem queixas quanto ao principal), mas já não parece haver dúvida quanto a um caso havido entre os dois, provavelmente num recanto qualquer da Europa: na alegre Paris, na austera Londres, ou na sossegada
Amsterdão.

Vejam esta passagem:

"Que, das três coisas, uma só nos basta: — Tocar viola, fumar cachimbo ou dormir".

E aquele, ainda: "São fidalgos que voltam da caçada" (verso que Zulmira costuma evocar, quando vê os grã-finos bêbados, voltando do "Sacha's"). Ou este outro: "Que o amor não é completamente cego". Ainda mais este: "Que aos tristes o menor prazer assusta".

Todo esse material foi colhido pelo Paulinho para me convencer que Tia Zulmira realmente influenciou Raimundo Correia. Mas agora vinha com a prova definitiva.

Pigarreou no telefone e falou: — Vou te recitar um soneto de Raimundo Correia que acabo de descobrir num livro dele. Tua cara vai cair, companheiro. E lascou esta preciosidade:

Quando Zulmira se casou... Zulmira
Era o mimo, a frescura, a mocidade!
— lânguido gesto, estranha suavidade
Na voz — soluço de inefável lira;
Um candor, que não há quem não prefira
A tudo, e esse ar de angélica bondade,
Que embelece a mulher, mesmo na idade
Em que, esquiva, a beleza se retira.
Não sei porque chorando toda a gente,
Quando Zulmira se casou, estava:
Belo era o noivo... que razões havia?
A mãe e a irmã choravam tristemente;
Só o pai de Zulmira não chorava...
E era o pai afinal quem mais sofria.

Ora, isto é mais definitivo ainda quando se sabe que o pai de titia tinha nela a filha favorita e também quando se sabe que Yayá (irmã de Zulmira) e Vovó Eponina (sua mãe) eram duas manteigas derretidas. Agradeci ao Paulinho a descoberta do soneto. Desliguei o telefone e liguei para Tia Zulmira, recitando-o para ela. Titia ficou muda do lado de lá e se traiu para sempre quando, a uma insinuação minha de que tivera um troço com o "poeta das pombas", exclamou irritada:

— "Ele não era tão das pombas assim como se propala".
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: GAROTO LINHA DURA - Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1975

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