sábado, 3 de dezembro de 2011

Biografia de Rosamundo

Rosamundo das Mercês — e o nome parece escolhido a dedo, pois sua proverbial distração deixa-o sempre à mercê de tudo — nasceu no Encantado, em 1922, ano do Centenário da Independência, ano em que o América F. C. conseguiu ser campeão, ano portanto não muito comum.

Nasceu, aliás, de 10 meses e aí já vai um fato extraordinário, pois todo personagem que não é normal, geralmente é de sete meses. Rosa é de dez e há quem diga que isto já foi distração de sua parte: esqueceu de nascer.

Se é verdade ou não, não posso dar informe. Só sei que, realmente, nunca vi ninguém mais distraído: jamais conheci um camarada com tanta capacidade para entrar em frias por causa de sua abstração; em tempo algum haverá um sujeito de presença tão ausente.

Filho de Ignacio das Mercês (bicheiro) e Conceição de Tal (após o casamento ficou sendo também das Mercês, é óbvio) que era a lavadeira de Tia Zulmira, Rosamundo é de origem humilde e teria se transformado num inútil qualquer, não somente por não ter posses para aprender, como também por ser incapaz de se fixar em coisa alguma, muito menos no erradíssimo plano de ensino do nosso querido Brasil. Não fosse a impressionante capacidade pedagógica de Tia Zulmira e o Rosa hoje era um marginal pela aí, talvez public relations, talvez um deputado, sei lá.

Deu-se que era ele quem levava a trouxa de roupa lavada do Encantado à Boca do Mato, onde reside a sábia parenta. Toda semana aparecia por lá, de alva trouxa à cabeça, sorriso simpático e ar jovial. Numa dessas vezes, houve eclipse do sol e tudo escureceu. Distraído às pampas, quando viu que estava escurecendo, Rosamundo tratou de tirar a roupa e deitar-se. Suas ações sempre foram praticamente maquinais. Deitou-se no sofá da sala e dormiu logo, como sói acontecer com os inocentes.

Distraído às pampas, nunca mais voltou para o Encantado.

Claro, Tia Zulmira poderia tê-lo alertado, Conceição poderia ter subido até a Boca do Mato para reclamar o filho, mas, se Conceição subiu, ninguém sabe, ninguém viu. Sabe-se, isto sim, que titia, prenhe de boas intenções, praticamente adotou o rapazote e ensinou-lhe as primeiras letras, as primeiras noções de aritmética e acabou sendo sua mestra no trivial. Hoje Rosamundo tem até curso superior e só não exibe os diplomas porque sempre esqueceu de ir buscá-los ao final do curso.

Aos 20 anos Rosamundo teve o seu primeiro emprego no Ministério do Trabalho: oficial-de-gabinete do Ministro, emprego que durou apenas alguns meses, justamente o tempo em que o Ministro levou para aparecer pela primeira vez no gabinete. O Rosa, que nunca tinha visto S. Exa. ali, perguntou: — O senhor quer falar com o Ministro? — o Ministro, para gozá-lo, respondeu que sim e o Rosa estrepou-se, ao fazer esta justa, mas distraída observação:

— Então o senhor trate de procurá-lo em casa, pois o Ministro é um vagabundo e nunca aparece aqui.

Sua segunda arremetida no setor profissional foi mais desastro¬sa ainda. Por ser baixinho e leve, foi ser jóquei e, na corrida de estréia, mal foi dada a saída, saiu com o cavalo para o lado contrário, vítima de mais uma crise de distração. Creio que não é preciso acres¬centar que antes mesmo de desmontar do cavalo já estava despedido.

Daí para a frente fez de tudo: foi garçom e serviu goiabada com molho ao vinagrete para um freguês; foi investigador de Polícia e um dia encanou o delegado e soltou um facínora; foi até aeromoço e neste emprego quase que morre. Um dos passageiros pediu cigarros e, como não havia a bordo, Rosamundo abriu a porta para ir comprar lá fora. O avião estava a 4 mil metros de altura e — felizmente — ele foi agarrado a tempo.

Tá na cara que um camarada distraído assim não dava certo em emprego nenhum e, de decadência em decadência, ele acabou arrumando um reles empreguinho de vendedor de bilhetes de loteria. Foi a sua salvação: no primeiro dia logo esqueceu de vender os bilhetes e quatro deles saíram premiados, sendo que um com o primeiro prêmio e outro com o segundo. Ficou rico, entregou o dinheiro para Tia Zulmira usar como bem entendesse e hoje ambos vivem de rendas.

Claro que Rosamundo não mora na Boca do Mato, caso contrário Zulmira não seria ermitã. Reside num hotel da Zona Sul e não melhorou nada. Ainda recentemente levou o maior baile, pois convidado por uns amigos para ir pescar na Barra da Tijuca, aceitou o convite e apareceu lá de espingarda. Mas é um esplêndido rapaz: amável e muito atencioso, quando não baixa o santo da distração sobre ele.

Tem seu fraco por mulheres, já foi casado duas vezes e em ambas deu-se mal, pois esqueceu o endereço do lar e foi dormir com outra; tem mania de comprar discos, embora não tenha vitrola. Como todo cara meio abilolado, gosta de adquirir novidades farmacêuticas: entra nas farmácias, compra quilos de remédio mas nunca toma nenhum. Escreveu um livro excelente, chamado O Crime Foi Suicídio (literatura policial), que não foi publicado porque Rosamundo deixou os originais num lotação.

Enfim, as distrações de Rosamundo distraem a gente.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

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