segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Quem não tem cão

Alegria, o comediante, mora num desses edifícios de duzentos apartamentos por andar, alguns dos quais sublocados. Alegria mora no 904 e não leva mais de dez segundos para descrever sua residência: tem um banheiro onde eu tomo banho (e faço o resto, naturalmente), mas que não dá para eu me enxugar, por falta de espaço.

A outra peça é um quarto pequenino com uma bruta janela para o abismo. Enfim, apartamento ótimo para suicídio.

Noutro dia estava o Alegria deitado na sua cama-sofá, mais sofá do que cama, pois ele tem pouco tempo para dormir, olhando pela janela o céu lá fora, onde um urubu fazia evoluções, como a zombar da altura dos prédios modernos e do espaço que seus construtores reservam para quem os financia, e Alegria estava a invejar o urubu, quando a campainha tocou.

Alegria levantou-se, entrou de perfil no corredor (porque de frente não dá para trafegar no dito) e foi abrir a porta. Era um português.

Infelizmente o português não estava sozinho: vinha em companhia de um caixão de defunto. E explicou que estava ali a encomenda. Que encomenda? O caixão que encomendaram aqui neste endereço. E mostrou o papelzinho, onde se podia ler o endereço do Alegria.

— Eu não encomendei ainda o meu caixão — explicou o comediante. — Deve ser engano.

— Cavalheiro — começou o português. — Ninguém encomenda o próprio caixão. O senhor deve tê-lo encomendado para outra pessoa. A sua mãezinha, talvez — experimentou, tentando avivar a memória do Alegria.

— Minha mãe vai bem obrigado e eu moro sozinho, logo eu não encomendei caixão nenhum. O senhor já verificou noutros apartamentos?

— Cavalheiro — tornou a se explicar o portuga — este prédio tem mais cômodos que o Palácio de Versalhes (o português era versado em História Universal) e eu não posso estar de porta em porta, com um caixão de defunto debaixo do braço. O endereço que está aqui é seu, o caixão já está pago. Com licença... — e já ia se mandando.

— Um momento. O senhor não vai deixar isso aí na minha porta.

— Se o senhor quiser eu ajudo a botar aí dentro.

— Mas aqui não cabe mais nem minha saudade — confessou Alegria. — Que tal no banheiro? — propôs o lusitano, querendo ajudar.

— Meu amigo, você não conhece o meu banheiro. Eu escovo os dentes com as axilas apertadas, para não dar com o cotovelo na parede.

— "Antão" o jeito é deitarmos o caixão aí no seu corredorzito. E foi o jeito. Agora, além da cama-sofá, Alegria possui mais um móvel em sua residência: um caixão bar, onde guarda algumas garrafas de vinho Precioso, que lhe deram no Natal e ele ainda não teve ocasião de beber, por falta do que comemorar.
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora

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