O Carlão era um cara meio trapalhão, desses que cruzam cabra com periscópio pra ver se arrumam um bode expiatório. Vivia confortavelmente instalado num apartamento pequeno, porém indecente, e tinha dinheiro para gastar com o chamado supérfluo.
De vez em quando dava umas festinhas em casa e convidava um monte da vida-torta e umas garotinhas dessas que mastigam chiclete de bola com a alegria de retirante quando pega um punhado de farinha. Dessas mocinhas assim no estilo "noiva de Drácula", isto é, que usam batom branco e estão sempre com uma alegre coloração de defunto.
Aquele dia, era um dia especial, pois o Carlão fazia anos e ia ter festinha de arromba. As armas do crime já estavam todas na geladeira: coca-cola, guaraná, rum, vodca, cervejinha — tudo para tomar com bolinhas fabricadas pelos mais categorizados laboratórios bromatológicos do Brasil. Tinha ate uns cigarrinhos diferentes, com cheiro de pano queimado.
Os distintos convidados era o fino. Pelos apelidos a gente via que a turma era pinta brava: "Bomba D'água", "Puxa Firme", "Sutileza", "Julinha Toda Hora","Dedão"? "Mariazinha Vapor", "Odete Prise", "Creuza Deixa Pra Mais Tarde" etc., etc.
O grupo foi chegando e já estava a vitrolinha esquentando, a tocar "Gasparzinho", "Olha o Brucutu", "Help" e outras partituras do mesmo valor musical. Na salinha apertada os pares escorregavam o maior surf em trejeitos que só ultimamente são usados na vertical.
A festa já ia pelo meio, quando tocaram a campainha. Era a primeira coisa que se tocava ali que cantor nenhum da jovem-guarda tinha gravado. Carlão abriu a porta, saiu aquele bafo de fumaça que mais parecia aviso de índio, e quando a fumaça se esvaiu, surgiu por trás dela um velhinho que morava no mesmo andar e que vinha reclamar o barulho.
O Carlão mandou o velhinho entrar e a turma envolveu o recém-chegado, que foi logo cumprimentando todos e engrenou um papo-furado muito interessante. Meia hora depois o velhinho estava tão à vontade que rebolava frente a frente com Creuza Deixa Pra Mais Tarde um surf legalérrimo, aos gritos incentivadores de "boa, velhinho", "dá-lhe, coroa", "sacode, vovô" e outros que tais.
Nisso a campainha tocou outra vez.
"Diabo de campainha que tá tocando mais que disco de Roberto Carlos" pensou o Carlão. E foi abrir. Agora não era um velhinho. Era uma velhinha. Uma velhinha que também morava no mesmo andar, por sinal que no apartamento do velhinho, em suma, pra que fazer suspense, não é mesmo? A velhinha era casada com o velhinho desde o tempo em que Papai Noel tinha barba preta. Foi o Carlão abrir a porta e ela espiar lá pra dentro e ver o folgado ancião badalando firme com a pistoleira acima citada.
Meus irmãos, o pau comeu! A velha até parecia porta-estandarte do Bloco Unidos do Cassetete, conhecida agremiação carnavalesca que, todo ano, desfila junto com as escolas de samba, usando uniforme da polícia e baixando o cacete em jornalista.
Entre uma pernada e outra a velhinha abusava do baixo calão com vibrante personalidade. A falecida mãe do velhinho nunca foi tão premiada com xingação.
Foi quando apareceu o síndico do edifício. A coisa já tinha entrado na faixa do escândalo. Gente no corredor, vizinhos nas janelas em frente. Com a sua autoridade no prédio, o síndico agarrou a velha pela saia e separou a briga. Ela protestou:
— Ele é meu marido. Vive dizendo que essas dancinhas modernas deviam ser proibidas e olha só o sem-vergonha. Me larga que eu ensino a ele.
Um dos presentes tratou de esclarecer tudo:
— Espera aí, vovó. A senhora está estragando a festa. Afinal de contas foi aí o velho que nos convidou.
E a velha engoliu em seco, virou-se para o Carlão e quis saber:
— Verdade, Carlinhos?
Era. Mesmo com o olhar súplice do velho, Carlão dedurou o vizinho. Quem tinha planejado tudo fora o velhinho. Carlão dava a festa, ele chegava mais tarde, fingindo que ia reclamar e ficava no pagode. Só não contaram foi com a insônia da velha que, geralmente, dormia como uma pedra.
O Carlão ainda mora no local do crime. Os velhinhos, eu ouvi dizer que se mudaram.
Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
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