sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Barba, cabelo e bigode

A barbearia era na esquina da pracinha, ali na­quele bairro pacato. Um recanto onde nunca havia bron­ca e o panorama era mais monótono que itinerário de ele­vador. Criancinhas brincando, babás namorando garbosos soldados do fogo em dia que o fogo dava folga, um sorveteiro que, de tão conhecido na zona, vendia pelo credi-picolé, e o português que viera do seu longínquo Alentejo para ser gigolô de bode: alugava dois carrinhos puxados por bodes magros, para as criancinhas darem a volta na pracinha.


Quem estava na barbearia esperando a vez para a barba, o cabelo ou o bigode, só tinha mesmo aquela pai­sagem para ver. E ficava vendo, porque Seu Luís, o barbeiro, tinha uma freguesia grande e gostava muito de con­versar com cada freguês que servia. O cara sentava e Seu Luís, enquanto botava o babador no distinto e ia lhe ensa­boando a cara, metia o assunto:

— E o nosso Botafogo, hem? Vendeu o Bianquini.

O freguês só gemia, porque o freguês de barbeiro não é besta de mexer a boca enquanto o outro fica com a maior navalha esfregando seu rosto. Assim, o diálogo de Seu Luís era um estranho diálogo. Trocava o freguês e lá ia ele:

— Como é? Ainda acompanhando aquela novela?

— Hum-hum!

— É uma boa novela. Movimentada, não é?

— Hum-hum!

— Aliás, a história eu já conheço. Fizeram até um fil­me parecido.

— Hum-hum!

Mesmo conversando muito (mais consigo mesmo do que com os outros), mesmo demorando mais do que o normal para atender a freguesia, Seu Luís tinha sempre a barbearia cheia.

Todos esperavam a vez, com paciência e resignação, menos o Armandinho, um vida-mansa que eu vou te con­tar! Até para fazer a barba tinha preguiça e saía de casa à tardinha, na hora em que a barbearia estava mais cheia, para se barbear. Mas não gostava de esperar — o Armandi­nho. Vinha, parava na porta e perguntava:

— Quantos tem?

Seu Luís dava uma conferida com o olhar e res­pondia:

— Tem oito!

Armandinho fazia uma cara contrariada e ia em fren­te. Se tinha gente esperando, ele não entrava. Voltava mais tarde. Isto era o que pensava Seu Luís, até o dia em que o folgado parou na porta e perguntou, como sempre:

— Quantos tem?

Chovia um pouco naquela tarde e a barbearia estava com um movimento fracote. Seu Luís nem precisou con­ferir, para responder:

— Só tem um!

O Armandinho fez a mesma cara de contrariedade, aliás, fez uma cara mais contrariada do que o normal e, ao invés de ir em frente, como fazia sempre, deu uma mar­cha à ré que deixou o barbeiro intrigado. Passou o resto do dia pensando naquilo e grande parte da noite também. A mulher dele, que era uma redondinha de olhos verdes, até perguntou:

— Que é que tu tens, Lulu? — mas Seu Luís não res­pondeu.

No dia seguinte, lá estava a pracinha pacata, as crian­cinhas, babás, sorveteiro, português cafiola de caprino. Tudo igualzinho. A barbearia com seu movimento nor­mal quando passou o Armandinho:

— Quantos tem? — perguntou.

Seu Luís respondeu que tinha doze e o Armandinho foi em frente. O barbeiro terminou a barba do freguês que estava na cadeira e explicou para os que esperavam:

— Vocês vão me dar licença um instantinho. Eu vou até em casa.

Todos sabiam que Seu Luís morava logo ali, dobran­do a esquina a terceira casa e ninguém disse nada. Seu Luís saiu, entrou em casa devagarinho e puxa vida... que flagra! Felizmente ele não tinha levado a navalha, senão o Armadinho, nos trajes em que se encontrava, tinha perdi­do até o umbigo. Ou mais. Saiu pela janela como um raio, tropeçando pelas galinhas, no quintal. A mulher de Seu Luís berrou e apanhou que não foi vida. Até hoje não se pode dizer de sã consciência o que foi que ela fez mais: se foi apanhar ou gritar.

O que eu sei é que foi um escândalo desgraçado. Acorreram os vizinhos, veio radiopatrulha e até um padre apareceu no local, porque ouviu dizer que alguém preci­sava de extrema-unção quando, na verdade, o que disse­ram ao padre foi que Seu Luís dera um estremeção na mulher. O padre era meio surdo.

Agora - passado um tempo - o Armandinho mudou-se, Seu Luís continua barbeiro, mas a mulher dele é manicura no mesmo salão, que é pra não haver repeteco.

Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.

Nenhum comentário: