quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Continho de Natal

Deixou o trabalho e foi andando pela rua, olhando as vitrinas. Cada preço de encabular senador. Mas não queria chegar em casa sem levar qualquer coisa para a família.

Então continuou olhando para os artigos expostos nas portas das casas comerciais.

Num instante percebeu que levar um presente para cada um era impossível. O dinheiro que trazia no bolso não daria para tanto, ainda mais porque, na época de Natal, o comércio aumenta tudo, cobrando da gente aqueles anjos tocando trombeta que eles penduram nos postes, que nem lista de bicho, dizendo que é colaboração dos comerciantes para alegrar o Natal.

Colaboração mais desgraçada, que eles dizem que é deles, mas quem paga é a gente.

Uni brinquedo que pudesse ser desfrutado por todos os filhos; talvez. Mas qual? As meninas iam apreciar uma boneca. Sim, uma boneca faria a alegria de suas filhas, mas causaria tremenda decepção aos meninos. Em compensação, se levasse uma metralhadora de matéria plástica (vira diversas,, que as fábricas de brinquedo fazem para incentivar o crime), os garotos iriam vibrar de contentamento. As meninas, porém, talvez chorassem de desalento.

Resolveu então comprar alguma coisa de comer. Aí estava. Uma coisa de comer poderia ser apreciada por todos. Um peru, ou mesmo um frango, que peru de pobre pode perfeitamente ser um frango. Para comprar um peru daqueles que estava vendo pendurado num gancho do armazém, só com fiador. O frango também era caríssimo.

Puxou o dinheiro que trazia no bolso, contou, recontou e entrou ali mesmo para comprar o presente de Natal da família. Pouco depois voltava pra casa. Abriu a porta e gritou para os filhos:

— Alarico, Odete, João Pessoa, Gustavo, Firmina, Olivinha, Jussara, Inez, Júlio, Juscelino, Abraão... Corram todos aqui, que papai trouxe o presente pro Natal.

Os filhos acorreram ao chamado e a esposa também. Ele então, com ar triunfante, botou uma castanha em cima da mesa, esfregou as mãos e disse:

— Vai buscar uma faca pra gente dividir esta castanha.

E antes que alguém avançasse na castanha, berrou:

— Calma, que dá pra todos!
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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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Paraíba

Azevedo e Peçanha vestiram o paletó e desceram para a rua, na disposição de fazer uma farrinha.

Ainda no elevador, Azevedo fez ver a Peçanha que o laço de sua gravata estava um pouco frouxo. Peçanha agradeceu e ajeitou o laço. Afinal, iam em demanda de uma possível aventura amorosa e a elegância era detalhe importante.

Caminharam pela Avenida N. S. de Copacabana e foram subindo em direção ao Lido, conversando animadamente e só interrompendo a conversa quando passava uma moça.

Sozinha ou acompanhada, todas as moças que passavam por Azevedo e Peçanha ganhavam olhares pidões, tão comuns aos conquistadores baratos, de beira de calçada.

Era sábado, dia em que se definem os que andam pela aí, caçando o amor. Azevedo parou na esquina do Lido e perguntou para Peçanha:

— Que tal se fôssemos até o "Alfredão"?

Peçanha achou que lá havia sempre muita concorrência. As mulheres supostamente fáceis,- quando há muita gente em volta, dando em cima, tornam-se superiores e esquivas, fazendo-se mais preciosas pela disputa de seus carinhos. Mas como Azevedo ponderasse que muitos dos homens que vão ao "Alfredão" não chegam a ser propriamente homens, Peçanha concordou.

Entraram no bar, Azevedo acendeu um charuto, ofereceu outro a Peçanha, que recusou com um gesto másculo. Preferia cachimbo, que tirou do bolso e começou a encher de fumo, enquanto pediam algo para beber.

O garçom acabou partindo para ir buscar uísque puro, só com gelo e olhe lá.

Uma garota de olheiras profundas passou pela mesa e Peçanha mexeu com ela. A garota sorriu. Então Azevedo convidou-a para tomar alguma coisa. E como as demais pequenas que estavam no bar pareciam todas acompanhadas, ficou só aquela para ser dividida entre Azevedo e Peçanha.

No fim de algum tempo, tanto Peçanha como Azevedo estavam caindo de tanta bebida. Pagaram a conta. Azevedo apagou o resto do charuto no cinzeiro e quis partir só, rebocando a pequena.

Peçanha estranhou a atitude de Azevedo, acabaram discutindo e começou o clássico festival de bolacha. Entrou a turma do deixa-disso, veio o guarda e o resultado da farra ali estava: além da garota disputada a tapa, também foram parar no xadrez as duas brigonas.

Sim, porque o nome todo de Azevedo é Maria Tereza Azevedo. Quanto a Peçanha: Walquíria. Walquíria Peçanha.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A anciã que entrou numa fria

Gosto de ler jornal impresso com plasma sangüíneo. Não sou um leitor-vampiro. O que me diverte não é a notícia, porque não tenho carteirinha de necrófilo; o que me diverte é a redação da notícia, a maneira pela qual ela é abordada nesses jornais que, se a gente apertar, dá hemorragia.

Agora mesmo estava aqui a folhear um deles. Na página 4, lá em cima, à esquerda de quem lê, há uma coluna de ocorrências. E logo a primeira notícia vem sob a manchete: "Quis ver anciã nua e apanhou".

Ora, por mais ocupado que eu esteja, uma nota com este título eu não deixo pra lá de jeito nenhum.

E li. A coisa passou-se num desses conjuntos residenciais — autênticas cabeças-de-porco, construídas pelos institutos de previdência para enganar contribuinte — onde o pau come de cinco em cinco minutos, entre vizinhos de parede e meia. Sai tanta briga nesse tipo de residência para coitado que, não faz muito tempo, eu participava de um show no qual o conjunto regional brigava tanto que eu o apelidei de Conjunto Residencial do IAPI. Mas isto deixa pra lá.

Voltemos à anciã nua que abalou Ramos. Sim, porque foi em Ramos, aprazível subúrbio leopoldinense, onde cabrito pasta deitado para não pegar rebarba de tiroteio. O bandido da história chama-se Matias Afonso — solteiro, 28 anos, morador na Rua A, n.° 5.

Quando o cara mora em rua que não tem nome, é porque o apartamento dele é desses em que o morador abre a porta e entra com cuidado para não cair pela janela da frente.

Pois muito bem: Matias Afonso foi parar no Hospital Getúlio Vargas, vítima de um panelicídio. Palavra de honra! Não estou inventando nada. Está aqui no jornal: "No hospital, onde os médicos constataram uma lesão que pode levá-lo à cegueira, Afonso contou que Joana de Jesus, viúva com 71 anos, residente na Rua A, n.° 4 — vizinha, pois, do dito Matias —, agredira-o com uma panela, furiosamente".

Mas é aqui que the pig twists if's tail — como diz Lyndon Johnson, quando tenta explicar a batalha campal do Vietname.

Por que teria uma velha de 71 anos agredido um rapaz de 28? Alguma coisa ele fez de muito grave, porque, nessa idade, a pessoa geralmente já não agüenta levantar uma panela, quanto mais fazer dela um porrete de gladiador.

E o rapaz fez mesmo; cometeu uma temeridade que eu vou te contar. Outra vez transcrevo do órgão da imprensa sanguinária: "Porque olhava para o quarto onde a anciã trocava de roupa, Matias Afonso foi agredido, na madrugada de ontem, a golpes de panela, sofrendo contusões e escoriações na cabeça, estando ameaçado de perder a visão".

Convenhamos que perder a visão porque espiava uma velha de 71 anos inteiramente pelada é duro, é um bocado duro. Mas — pelo jeito — a vítima do panelicídio gostava. Senão vejamos: "Matias confessou que via Joana de Jesus despir-se, diariamente, por uma fresta da janela. Ontem, não se contendo, pulou a janela e foi repelido com uma panela".

Esta é a história que o jornal — como tudo que é noticiário policial — termina enfaticamente com o tradicional: "o comissário do dia tomou conhecimento do fato".

O comissário pode ter tomado conhecimento, mas nós queremos mais, é ou não é? Em não sendo policial, a gente tem uma curiosidade maior pelas ocorrências deste tipo. Basta reler o que foi contado para se ver que um dos dois personagens está mentindo, ou melhor, pode não estar mentindo, mas está omitindo. Se um rapaz de 28 anos apanhou de uma velha de 71, levando tanta panelada na cabeça, é porque — enquanto ela batia — ele tentava segurar outra coisa que não era a panela, do contrário teria se defendido melhor. O que estaria Afonso tentando segurar enquanto a septuagenária baixava-lhe paneladas na cuca?

Tirem vocês a conclusão.

Para Primo Altamirando a solução do mistério é outra. O jornal não conta que o cara via a velha pelada todo dia? — pergunta Mirinho. E ele mesmo responde:

— Diz sim. E se era todo dia, dificilmente a velha ignorava o fato. Portanto, para mim, esse tal de Afonso apanhou porque, ao pular dentro do quarto, a velha não quis deixar ele sair.

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Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
Fonte: O MELHOR DE STANISLAW - Crônicas Escolhidas - Seleção e organização de Valdemar Cavalcanti - Ilustrações de JAGUAR - 2.a edição - Rio - 1979 - Livraria José Olympio Editora.
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