sábado, 12 de julho de 2014

A metamorfose

Ao despertar Gregório Santos uma manhã, após um sono intranquilo, encontrou-se em sua cama convertido em um Boeing 707. Achava-se meio bambo sobre o trem de aterragem e ao tentar alçar a cabeça notou que ela estava perfeitamente fixa como todas as aeronaves, mormente as de procedência estrangeira. Ao seu redor, reminiscências das casas de seus vizinhos, sombreadas por suas possantes asas bimotor jatadas. De seu polpudo leito, somente a recordação envolta nos escombros de sua vasta mansão, onde, na certa, seus velhos haviam se oporiferizado sonhando com leões.

— Que me aconteceu, senhor dos desgraçados?

Apesar de Castro Alves “approach” nada ouviu senão um tonitruar de turbinas à jato e uma vozinha dentro de si:

— Senhores passageiros, favor apertar os cintos de segurança e não fumar durante a decolagem.

Não era sonho. Havia se convertido realmente em colosso aéreo e muito provavelmente da TAP. Não muito satisfeito em sua condição luso-aeroplana, Gregório refletiu:

— “E se eu dormisse um pouco? E’ bem possível que, ao acordar, tudo volte ao normal”.

Mas, Gregório havia se acostumado a dormir do lado direito, e à primeira tentativa de inclinar suas reluzentes asas, ocasionou o que se chama de uma celeuma. Gritos irromperam de seu ventre, gente correu à volta, e um carrinho vermelho fez evoluções e se aproximou langorando um sirenear. Gregório percebeu angustiado que iam decolar.

No ar sentiu-se melhor e roncou satisfeito. No céu estava mais perto de sua santa família. Fitou os urubus com desprezo e pensou, já cônscio de suas novas responsabilidades:

— “Muito pior seria se eu fosse um helicóptero”, e recitou o soneto “Círculo vicioso” tão machadianamente, que foi sua também a surpresa que fez a aeromoça mandar os passageiros apertar o cintos ante tamanho rugido.

— Este avião está louco! — bradou o comandante.

Pelo que pouco tempo depois foi vendido às “Aerolineas Argentinas” sendo, hoje em dia, mundialmente conhecido, como “El Niño Roncador”.
(Por Ildázio Tavares)



Fonte: "O Capitão" - Ano I - Nº 18 - Editorial e desenhos de Jaguar e Max - Jornal "Última Hora", de 26/10/1963.
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sexta-feira, 11 de julho de 2014

Os sintomas

Há dias que vinha sentindo uma dorzinha fina na virilha. Rosamundo, com aquela distração que é a sua bandeira de comando, só começou a senti-la provavelmente depois de muito tempo, pois até parador o Rosa é distraído. Na tarde em que percebeu a dorzinha, pensou: "Devo ter me contundido durante o futebol", sem se lembrar de um detalhe importante, ou seja, nunca jogou futebol.

À noitinha a dor diminuíra. Devia ser íngua. Mas Rosamundo é um sujeito muito impressionável. Para se sugestionar é quase um botafoguense, embora torça pelo Andaraí, time que já saiu da liga, mas ele ainda não percebeu.

Dias depois, visitando um amigo, com o qual estava brigado mas não se lembrava, encontrou-o acamado, sob a ameaça de seguir a qualquer momento para uma casa de saúde, onde seria operado, em regime de urgência, de uma hérnia.

Entre gemidos o amigo explicava como aquilo começara. Sentira uma dorzinha na virilha. Logo que começou pensou que era uma íngua e nem deu importância. Já nem se lembrava mais da dorzinha quando ela voltou com uma violência quase insuportável. Sentiu primeiro a impressão de que as calças estavam lhe apertando, mas as calças que vestia eram até folgadinhas. A impressão, no entanto, ficara, até dar naquilo: ali deitado, à espera do médico para entrar na faca.

E o amigo gemia. Foi quando chegou o médico, examinou assim por alto e sentenciou: "Temos de operar imediatamente. É uma hérnia estrangulada". E lá fora o amigo de Rosamundo a caminho do hospital. O Rosa, por sua vez, foi para casa, mas não tirava da cabeça a lembrança da dorzinha que sentira, parecidíssima com a do doente.

Sua suspeita transformou-se em pânico na manhã seguinte. Acordara tarde e atrasado para um encontro. Vestira-se no quarto escuro, para não acordar a mulher, e se mandara. Ainda não chegara ao encontro e todos os sintomas que levaram o outro para a operação de emergência começaram ase manifestar nele. Até aquele detalhe da calça que parecia apertar, mas estava folgada a olhos vistos, ele sentia.

Disparou para casa e foi logo pedindo o médico. Estava com hérnia. Deitou-se vestido mesmo, com medo de piorar, e a mulher apavorada começou a telefonar para o médico. Chamado assim às pressas, veio imediatamente. Entrou no quarto, olhou para a cara impressionantemente pálida de Rosamundo e mandou que ele se despisse para o exame.

E foi aí que o Rosa percebeu que, em vez de cueca, vestira de manhã a calcinha da mulher.


Fonte: "Gol de Padre e Outras Crônicas" — Stanislaw Ponte Preta — Editora Ática.
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quinta-feira, 10 de julho de 2014

Zezinho e o coronel

O coronel Iolando sempre foi a fera do bairro. Quando a patota do Zezinho era tudo criança, jogar futebol na rua era uma temeridade, porque o Coronel, mal começava a bola a rolar no asfalto, saía lá de dentro de sabre na mão e furava a coitadinha.

Teve um dia que Zezinho vinha atacando pela esquerda e ia fazer o gol, quando o Coronel da Polícia Militar, naquele tempo ainda capitão, saiu e cercou o atacante, de braços abertos. Parecia um beque lateral direito, tentando impedir o avanço adversário. Por amor ao futebol, Zezinho não resistiu, driblou o garboso militar e entrou no gol com bola e tudo. Ah! rapaziada ... foi fogo.

O então Capitão Iolando ficou que parecia uma onça com sinusite. Ali mesmo, jurou que nunca mais vagabundo nenhum jogaria bola outra vez em frente de sua casa. E, com a sua autoridade ferida pelo drible moleque do Zezinho, botou um policial de plantão em cada esquina, durante meses e meses. No bairro havia assalto toda noite, mas o Coronel preferia botar dois guardas chateando os garotos a deslocá-los da esquina para perseguir ladrão. Isto eu só estou contando para que vocês sintam o drama e morem na ferocidade do Coronel Iolando.

Prosseguindo: ninguém na redondeza conseguia entender como é que aquele Frankenstein de farda podia ter uma filha como a Irene, tão lindinha, tão meiga, tão redondinha. E entre os que não entendiam estava o mesmo Zezinho, cuja patota, noutros tempos, batia bola na rua.

Muito amante da pesquisa, Zezinho foi devagarinho pro lado da Irene. Primeiro um cumprimento, na porta do cinema, depois um papinho rápido ao cruzar com ela na porta da sorveteria e foi-se chegando, se chegando epimba... desembarcou os comandos. Quando a Irene percebeu, estava babada por Zezinho. Se ele quisesse ela seria até o chiclete dele. Claro, o namoro foi sempre à revelia do Coronel Iolando, que não admitia nem a possibilidade de a filha olhar pro lado, quanto mais para o Zezinho, aquele vagabundo, cachorro, comunista. Sem paqueração não há repressão.

O pai não sabia de nada e a filha foi folgando, até que chegou um dia, ou melhor, chegou uma noite a Irene tinha saído para ir à casa da Margaridinha, de araque, naturalmente, e na volta, depois de ficar quase duas horas agarrada com Zezinho debaixo de uma jaqueira, na segunda transversal à direita, permitiu que o rapaz a acompanhasse até o portão. Coincidência desgraçada: o Coronel Iolando estava se preparando para sair e ir comandar um batalhão no combate à passeata de estudantes. Chegou à janela justamente na hora em que Irene e aquele safado chegavam ao portão. Tirou o trabuco do coldre e desceu a escada de quatro em quatro degraus, botando fumacinha pelas ventas arreganhadas. Parecia um búfalo no inverno. Não deixou que o inimigo abrisse a boca. Berrou para Irene:

— Entre, sua sem-vergonha — e a mocinha escafedeu-se. Virou-separa o pobre do Zezinho, mais murcho que boca de velha, ali encolhidinho, e agarrou-o pelo cangote, suspendendo-o quase a um palmo do chão, e o rapaz ia até dizer "Coronel, o senhor tirou o chão de baixo de mim", pra ver se com a piadinha melhorava o ambiente, mas não teve tempo:

— Seu cretino — berrou Iolando — está vendo este revólver?(Zezinho estava). Pois eu lhe enfio o cano no olho e descarrego a arma dentro da sua cabeça, seu cafajeste. Está entendendo?(Zezinho estava). E vou lhe dizer uma coisa: está proibido de continuar morando neste bairro. Amanhã eu irei pessoalmente à sua casa para verificar se o senhor se mudou, está ouvindo?(Zezinho estava). Se o senhor não tiver, pelo menos, a cinquenta quilômetros longe desta área, eu passarei a enviar uma escolta diariamente à sua casa, para lhe dar uma surra. Agora suma-se, seu inseto.

O Coronel soltou Zezinho, que, sentindo-se em terra firme, tratou de se mandar o mais depressa possível. O Coronel, por sua vez, deu meia-volta, entrou em casa, vestiu o dólmã e avisou à filha que quando voltasse ia ter. O Coronel Iolando foi cercar os estudantes na passeata, houve aquela coisa toda que os senhores leram nos jornais e, quando retornou ao lar, encontrou a esposa muito apreensiva:

— Não precisa ficar com esse olhar de coelho acuado, sua molenga — avisou Iolando — Eu só vou dar uns tapas na sem-vergonha da nossa filha.

— Eu não estou apreensiva por isso não, Ioiô (ela chamava o Coronel de Ioiô), Eu estou com pena é de você.

— De mim??? — o Coronel estranhou.

— É que a Irene e o Zezinho saíram agora mesmo para casar na igreja do Bispo de Maura. Deixaram um abraço pra você.


Fonte: "Gol de Padre e Outras Crônicas" — Stanislaw Ponte Preta — Editora Ática.
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