"Morreu, acabou-se" — ledo engano. Morreu, começa o problema, porque já
não há mais lugar onde enterrar o falecido. "Vocês desculpem tratar de
um assunto tão funesto, mas é que, de uns tempos para cá, não o
sentimos, tão macabro assim, graças a um amigo que é agente funerário.
Foi ele quem, acostumado ao trato das cerimônias fúnebres, acabou nos
convencendo de que, tirante a família do morto, ninguém tem nada a
perder quando um cidadão abotoa o paletó pela última vez. Pelo
contrário, ser agente funerário é um alto negócio.
Tudo começou na praia, em Santos. Estávamos na companhia desse amigo,
esquentando ao sol, quando apareceu um cadáver boiando sobre as ondas. O
pessoal foi todo pra beira do mar espiar e ele, de repente, disse como
quem fala para si mesmo: "Tomara que a corrente não leve para São
Vicente."
Estranhamos aquele desejo e ele então explicou que existiam duas
agências funerárias em Santos: a dele e a de um rival. Como a clientela
não visse com bons olhos a concorrência entre os dois, nem fosse hábito
familiar abrir concorrência para enterrar ninguém, tinham resolvido
dividir a cidade em dois campos:
— Quem morre do lado de lá é dele, quem morre do lado de cá é meu — esclareceu.
Aquele freguês, que boiava nas ondas, se viesse a dar à praia ali, era
dele. Mas se a corrente o levasse para São Vicente, perdia o negócio,
pois a jurisdição era do rival. Daí o seu desejo de que as ondas
trouxessem logo para a areia aquele que boiava lá fora da arrebentação.
Olhava para o cadáver sem placidez nem ganância, como um quitandeiro
olha as verduras, um pianista, o piano ou um joalheiro, as jóias. Era o
seu negócio que boiava ali perto. Esse agente funerário de Santos, nosso
amigo, homem jovial e excelente companheiro em qualquer circunstância,
alguns anos depois chegava ao ápice da carreira, quando o Governo do
Estado nomeou-o para dirigir o SFC (Serviço Fúnebre da Capital),
autarquia que se responsabiliza pelos enterros em São Paulo.
Estava aqui o distinto caçando na selva paulista, amoitado num bar,
esperando a caça passar, quando o antigo agente funerário nos encontrou.
Explicou sua condição de diretor autárquico, explicou que lá em São
Paulo não é como no Rio, onde os serviços funerários pertencem, sem
concorrência, à Santa Casa, explicou mais uma porção de coisas e,
depois, convidou a gente para fazer uma visita ao SFC. Como a caça não
passasse, aceitamos o convite e visitamos fartamente o dito serviço.
Ele se mostrou excelente cicerone, levando a visita às diversas salas,
demonstrando por que o caixão de peroba é melhor do que o caixão de
pinho e mostrando os melhoramentos introduzidos, tais como caixão de
terceira forradinho de capitonê, travesseiro com recheio de capim
cheiroso, para caixões de primeira etc. etc. Isto sem contar com os
truques que sua experiência lhe ensinara. Por exemplo: quando morre um
político eminente, o número de puxa-sacos que quer ajudar a levar o
caixão é enorme e, neste caso, em vez das clássicas alças douradas —
três à esquerda, três à direita, como manda o figurino — o caixão deve
ter um varal de cada lado, pra caber mais mão de puxa, na hora do
embarque.
— Quando assumi a direção deste serviço, isto aqui era uma lástima. Os
castiçais estavam caindo aos pedaços. Veja os castiçais novos, que
adquiri. Uma beleza, não são? — E, com sinceridade na voz: — Agora já
pode um Matarazzo, um Almeida Prado, um Lara Resende morrer sem susto,
que estamos aptos a servi-los.
Faz muito tempo que não vemos o nosso amigo, hoje próspero.
Certa vez nos contou que começara o negócio graças a um vizinho que era
coxo, desencarnara e fora vítima da precipitação de outro agente
funerário. Quando esse agente foi medir o freguês para encomendar o
caixão, já o encontrou na sala, em cima da mesa, coberto por um lençol.
Sem a devida experiência, o agente não perguntou pra família se o
falecido era coxo. Resultado: mediu do alto da testa à ponta do pé, pela
perna mais curta e, quando o caixão chegou, não satisfazia às medidas
do freguês. Foram comprar outro caixão para enterrar o vizinho, e ele,
que tinha uma tia velha já mais pra lá do que pra cá, mediu a parenta
disfarçadamente verificando que ela cabia dentro do caixão recusado.
Adquiriu a peça por preço de ocasião e guardou na garagem. Um mês depois
a tia embarcava nele. Desse episódio ficou-lhe o gosto pelo negócio.
Mas como dizíamos, já vai pra algum tempo que não o vemos. A última vez
foi aqui no Rio, durante o velório de conhecido artista. Ele compareceu
como visita. Nada tinha a ver com o serviço de bordo, mas nem por isso
deixou de criticar certas deficiências. Ao sair contou que — mais por
carinho do que por necessidade — ainda mantinha a agência funerária de
Santos, que tinha um nome dos mais convidativos: "Nossa Casa".
— Falar nisso, você poderia fazer um jingle de propaganda para mim? —
perguntou. E, ao perceber nosso espanto, explicou que estava fazendo uma
grande remarcação no estoque e precisava anunciar a liquidação. E tanto
chateou que fizemos o jingle. Não sabemos se tocou no rádio, mas ainda
nos lembramos bem: a música era aquela da cançãozinha de Teresinha de
Jesus, de uma queda foi ao chão etc. etc.
A letra era assim: Funerária "Nossa Casa" / Tem caixão de alça dourada / Adquira um hoje mesmo / Por um preço camarada.
Se vocês estão pensando que existe exagero de nossa parte, ao descrever o
trato jovial que nosso amigo tem, para com as coisas fúnebres, estão
muito enganados. Ele não é o único, inclusive. Em Recife, recentemente, a
Prefeitura negou a um agente funerário o nome de "Ao Morrer Sorrindo",
para sua casa de vender pijama de madeira. E aqui mesmo no Rio, há pouco
tempo, um cavalheiro botava o seguinte anúncio, em "O Globo":
"Sepultura Perpétua — Cedo direitos de uma, na parte plana do Cemitério
São João Batista, por Cr$ 1 600 000,00, ou troco por apartamento de
sala, 2 quartos, na Zona Sul. Favor ligar para 22-0387 ou procurar
informações na Avenida Rio Branco 173 — sala 1306." Isto prova que, em
algum lugar do Rio, há um camarada que prefere viver melhor a ter
conforto depois da morte.
É, companheiros, o Rio cresceu tanto que morrer agora é um problema. O
camarada do anúncio está pouco se incomodando com o que possa lhe
acontecer depois de pisar no prego e esvaziar de todo. Quer seu
apartamentinho de dois quartos na Zona Sul, que não é a residência
ideal, mas sempre é melhor do que morar em pensão, para poder descansar
no meio dos bacanos, depois de devidamente empacotado.
O Rio cresceu — repetimos — e cresceu pra todo lado e pra cima também.
Principalmente pra cima. Este detalhe é que deve ter dado a idéia ao
arquiteto Wladimir Alves de Sousa, para resolver o problema dos
cemitérios cariocas. O Governador, que ultimamente tem perseguido os
demasiadamente vivos, está preocupado com os demasiadamente mortos; tão
mortos que não têm onde cair idem. E aqui parece que encontra a solução.
Leiam a notícia, tal e qual saiu no jornal: "A construção de edifícios
de 15 andares, com todos os requisitos de higiene, para instalação de
sepulturas e ossários, foi proposta ao Governador pelo arquiteto
Wladimir Alves de Sousa. O arquiteto acha que seu plano de cemitérios
verticais, apresentado junto com gráficos, croquis e mapas, será a
solução para o problema de espaço nos cemitérios do Estado."
Você aí, que é carioca, sente o drama, vá! Talvez seja você o defunto
que vai inaugurar a coisa. Será a primeira vez na História que uma
pessoa, depois de morta, é enterrada para cima.
Fonte: Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.