Vocês queiram perdoar, sim? Queiram perdoar, mas vamos continuar
imaginando coisas sobre o "Dia da Sinceridade", cujo bolamos em momento
dos mais inspirados, escudados que estávamos na certeza de que dias como
o "Dia das Progenitoras", "Dia da Reconciliação", "Dia do Papai" e
outros de some-nos não tinham a menor importância do ponto de vista
cívico, e, sim, do ponto de vista comercial.
Com aquela disposição de que sempre nos munimos, quando se trata de
auxiliar o próximo a ter idéias mais felizes, bolamos o "Dia da
Sinceridade", que não tem o mínimo cunho comercial e — muito pelo
contrário — ajuda os leitores que aderirem a burilar o caráter, elemento
da personalidade de cada um que — segundo Tia Zulmira — está para a
consciência do indivíduo assim como a gomalina está para a cabeleira do
Al Neto.
O "Dia da Sinceridade" lavará a alma de muita gente, mesmo essa gente
inibida que passa o dia mentindo para conservar os honorários, tais como
garotas-propaganda, locutores de rádio, ministros de Estado, vendedores
ambulantes e cronistas mundanos. Isto para somente citarmos classes
mais ou menos definidas dentro do panorama da insinceridade nacional e —
por que não? — internacional.
No "Dia da Sinceridade", talvez para evitar futuros aborrecimentos, não
seria conveniente visitar parentes, mas seria de boa monta entrar na
Câmara dos Deputados e conversar um pouco com o deputado em quem
votamos. Seria de bom alvitre também ligar o rádio para a Rádio Mundial e
ouvir as pregações do Irmão Alziro Zarur.
Somos de opinião que um dia assim viria descomplexar (ou será
extracomplexar? Verifique aí, Osvaldo) diversas classes trabalhadoras,
como, por exemplo, a classe dos que vendem calçados. Isto é um exemplo,
conforme vocês podem notar, trazido assim a esmo, só para melhor
esclarecer a massa ignara.
Os vendedores de sapatos que, conforme tão bem assinalou o poeta
Vinícius de Moraes, parecem Madalenas arrependidas pedindo perdão pelos
sapatos, já que se ajoelham na frente do freguês para experimentá-los
(não os fregueses, mas os sapatos), vivem na insinceridade. No entanto,
vitoriosa a idéia do "Dia da Sinceridade", mesmo em sua postura
costumeira, e talvez por causa dela, diriam para a dama elegante que
insiste em comprar o sapato de couro de camelo: — Madame, não vai nessa.
Esse camelo nasceu cavalo.
O modelo é uma fábrica de calos e o sapato entorta mais que boca de
cantor de tango. A senhora compradora não se espantaria, pois era o dia
supracitado, e agradeceria com um sorriso, não sem antes botar na mão do
vendedor uma nota de duzentas pratas, aconselhando:
— Vá a um dentista, nego. Daqui de cima é que se tem uma idéia panorâmica de suas cáries.
O vendedor faria uma reverência, já de pé, e antes que a freguesa fosse embora, perguntaria risonho:
— A senhora não quer examinar a nossa coleção de ferraduras?
Grande dia, companheiros, o "Dia da Sinceridade".
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Fonte:
Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.