Primeiro foi aquela loja de vender discos lá de Porto Alegre que, na
ânsia de passar adiante os LPs encalhados, anunciou o oferecimento de um
quilo de feijão para o comprador de cada disco LP candidato eterno à
prateleira.
Assim, o povo, que andava doido atrás da semente de faseolácea (é feijão
numa apresentação mais puxada para o científico... queiram perdoar),
não se incomodou de levar pra casa discos de Pedro Raimundo, Mário
Mascarenhas, Dilu Melo etc. etc, contanto que lhe entregassem, em mão, o
seu saquinho de feijão.
Agora é um contínuo de repartição que, desesperançado do abono e na
certeza de que é difícil arranjar outro emprego nos dias que correm, fez
da carestia um bico e está ganhando seu dinheirinho. O distinto levanta
de madrugada, vai pra fila da carne e aguarda a sua vez. Como é dos
primeiros na fila, consegue um quilo razoavelmente medido, quilo de
carne este que leva para a repartição e rifa, na base de 10 pratas o
bilhetinho de 001 a 100.
No fim da tarde, com os colegas todos torcendo em volta, faz o sorteio. O
premiado leva um quilo de carne pra casa por 10 cruzeiros — preço ao
alcance de todas as bolsas — enquanto o contínuo-açougueiro-banqueiro
fica com uma abóbora de mil, pelo expediente.
Bem diz Tia Zulmira — prenhe de saber e transbordante de experiência
— "quem se vira, se inspira". É um fato. A loja de discos aproveitou a
falta de feijão para se livrar de discos encalhados, o contínuo
aproveita a "carnestia" (como tão bem apelidou Primo Altamirando a falta
de carne), para ganhar umpouco mais do que o salário ralo.
E a coisa vai pegando, como Deus é servido. Clubes da ZN estão
organizando "biriba" aos sábados, para os sócios. Os prêmios lá estão,
para quem quiser ver. Ao vencedor, três quilos de filé mignon, ao
segundo colocado, três quilos de feijão ao terceiro, um quilo de feijão e
outro de alcatra.
A ZS, por enquanto, vai se mantendo a fingir uma dignidade guaia,
organizando no Country Club e demais clubes grã-finos seus concursos de
"buraco", "biriba" ou "bridge", ofertando aos vencedores inúteis
medalhas de ouro, prata ou bronze, que não servem para alimentar mais do
que a vaidade.
Mas isto é por enquanto. Chegará o momento em que o alimento do
estômago falará mais alto do que o alimento da vaidade, e a grã-finada
larga pra lá essa besteira de medalha e adere aos prêmios já em uso na
Zona Norte da cidade (residência da saudade — como quer o grande poeta
urbano Orestes Barbosa). E nós veremos no Country um pai industrial
torcendo para entrar um coringa no jogo da filha, para que ela faça
canastra e ganhe um florido buquê de couve-flor.
Sim, irmãos, humânitas precisa comer, como diria o coleguinha Brás Cubas: ao vencedor, as batatas.
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Fonte:
Tia Zulmira e Eu - Stanislaw Ponte Preta - 6.ª edição - Ilustrado por Jaguar - EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
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