quinta-feira, 28 de abril de 2011

Latricério

Tinha um linguajar difícil, o Latricério. Já de nome era ruinzinho, que Latricério não é lá nomenclatura muito desejada. E era aí que começavam os seus erros.

Foi porteiro lá do prédio durante muito tempo. Era prestativo e bom sujeito, mas sempre com o grave defeito de pensar que sabia e entendia de tudo. Aliás, acabou despedido por isso mesmo.

Um dia enguiçou a descarga do vaso sanitário de um apartamento e ele achou que sabia endireitar. O síndico do prédio já ia chamar um bombeiro, quando Latricério apareceu dizendo que deixassem por sua conta. Dizem que o dono do banheiro protestou, na lembrança talvez de outros malfadados consertos feitos pelo serviçal porteiro. Mas o síndico acalmou-o com esta desculpa excelente:

- Deixe ele consertar, afinal são quase xarás e lá se entendem.

Dono da permissão, o nosso amigo - até hoje ninguém sabe explicar por quê - fez um rápido exame no aparelho em pane e desceu aos fundos do edifício, avisando antes que o defeito era "nos cano de orige".

Lá embaixo, começou a mexer na caixa do gás e, às tantas, quase provoca uma tremenda explosão. Passado o susto e a certeza de mais esse desserviço, a paciência do síndico atingiu o seu limite máximo e o porteiro foi despedido.

Latricério arrumou sua trouxa e partiu para nunca mais, deixando tristezas para duas pessoas: para a empregada do 801, que era sua namorada, e para mim, que via nele uma grande personagem.

Lembro-me que, mesmo tendo sido, por diversas vezes, vítima de suas habilidades, lamentei o ocorrido, dando todo o meu apoio ao Latricério e afirmando-lhe que fora precipitação do síndico. Na hora da despedida, passei-lhe às mãos uma estampa do American Bank Note no valor de quinhentos cruzeiros, oferecendo ainda, como prêmio de consolação, uma horrenda gravata, cheia de coqueiros dourados, virgem de uso, pois nela não tocara desde o meu aniversário, dia em que o Bill - o americano do 602 - a trouxera como lembrança da data.

Mas, como ficou dito acima, Latricério tinha um linguajar difícil, e é preciso explicar por quê. Falava tudo errado, misturando palavras, trocando-lhes o sentido e empregando os mais estranhos termos para definir as coisas mais elementares. Afora as expressões atribuídas a todos os "malfalantes", como "compromisso de cafiaspirina", "vento encarnado", "libras estrelinhas", etc., tinha erros só seus.

No dia em que estiveram lá no prédio, por exemplo, uns avaliadores da firma a quem o proprietário ia hipotecar o imóvel, o porteiro, depois de acompanhá-los na vistoria, veio contar a novidade:

- Magine, doutor! Eles viero avalsá as impoteca!

É claro que, no princípio, não foi fácil compreender as coisas que ele dizia mas com o tempo, acabei me acostumando. Por isso não estranhei quando os ladrões entraram no apartamento de Dona Vera, então sob sua guarda, e ele veio me dizer, intrigado:

- Não compreendo como eles entraro. Pois as portas tava tudo "aritmeticamente" fechadas.

Tentar emendar-lhe os erros era em pura perda. O melhor era deixar como estava. Com sua maneira de falar, afinal, conseguira tornar-se uma das figuras mais populares do quarteirão e eu, longe de corrigir-lhe as besteiras, às vezes falava como ele até, para melhor me fazer entender.

Foi assim no dia em que, com a devida licença do proprietário, mandei derrubar uma parede e inaugurei uma nova janela, com jardineira por fora, onde pretendia plantar uns gerânios. Estava eu a admirar a obra, quando surgiu o Latricério para louvá-la.

- Ainda não está completa - disse eu - falta colocar umas persianas pelo lado de fora.

Ele deu logo o seu palpite:

- Não adianta, doutor. Aí bate muito sol e vai morrê tudo.

Percebi que jamais soubera o que vinha a ser persiana e tratei de explicar à sua moda:

- Não diga tolice, persiana é um negócio parecido com venezuela.

- Ah, bem, venezuela - repetiu.

E acrescentou:

- Pensei que fosse "arguma pranta".
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Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).
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quarta-feira, 27 de abril de 2011

Praia de Geremias

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A pequena e mansa praia de Geremias Itajaí (SC) - foto de 26/04/2011

Pela terceira vez publico fotos do Bico do Papagaio e da Praia de Geremias porque essa região me inspira muito, fez parte de uma etapa de minha vida, na qual tenho muita saudade.

A praia (também chamada de Jeremias) é um recanto de 200 metros quase particular. O mar, por ser calmo, é ideal para crianças e banhistas pouco experientes. No local também pode ser encontrado o Bico do Papagaio, uma formação rochosa que lembra a cabeça de uma ave.

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A praia de Geremias - tarde de 26/4/2011

Naquela noite quente de dezembro de 1969 (ou será 1970?), Simon e Garfunkel cantavam "Mrs. Robinson" no radinho de pilha e meu pai trocou para outra estação, em busca do seu Nelson Gonçalves. Eu, insone (sempre fui um chato para dormir, desde os dois anos de idade), escutava, além da música, o murmúrio incansável do mar.

Agora escutando Roberto Carlos nas suas curvas da estrada de Santos. Tínhamos alugado uma casinha - na verdade um barraco de madeira - frente a pequeníssima, sossegada e calma praia de Geremias. Mas naquela época as praias não eram assim tão exploradas e não havia tantas imobiliárias.

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O Bico do Papagaio situa-se ao lado da praia de Geremias - 26/4/2011.
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terça-feira, 26 de abril de 2011

A governanta

Ela chega amanhã. Vai ganhar Cr$ 100 mil, mas vale a pena — quem falava assim era a mulher de Al­cindo. Já tinham discutido às pampas, o Alcindo e a mu­lher, por causa da tal empregada.

Dona Míriam — mulher do Alcindo — tinha conseguido a empregada com uma parceira de pif-paf, uma tal de Iolanda, com a qual o Al­cindo sempre implicou. Mulherzinha gastadeira, que es­banjava o dinheiro do marido no jogo.

Dona Míriam era vidrada na Iolanda. Achava a Iolan­da o fino da elegância. Imitava a Iolanda, fazia vestidos na costureira da Iolanda, penteava o cabelo no mesmo cabeleireiro da Iolanda e dera até para gastar como a Iolanda.

O Alcindo ia suportando tudo porque os programas de pif-paf da Dona Miriam lhe davam uma frente bárbara. Enquanto a mulher estava fazendo seqüências, trincas, "lo­bas" e outras besteiras, ele ia se espalhando pelas boates, fazendo suas miserinhas pela aí. O Alcindo era muito assa­nhado.

Ultimamente, porém, a Iolanda começara a mandar também em sua casa. Aconselhara Dona Míriam a mudar os móveis da sala (Alcindo teve até que assinar um papa­gaio no Zé Luís para quebrar o galho), fizera Dona Míriam aderir às suas dietas para manter a linha (Alcindo já se sentia um mísero herbívoro de tanto mastigar saladas), e tudo culminara com a dispensa das duas empregadas que não eram lá essas coisas, mas pelo menos respeitavam o patrão.

Dona Míriam — sempre achando que a Iolanda era o máximo - ia seguindo os conselhos. Lá se foram as duas domésticas simplórias e viera a novidade: a Iolanda arran­jara uma espécie de governanta. Uma moça que trabalha­ra para os Martorelli.

— Uma governanta perfeita. Fala até um pouco de inglês - informou Dona Míriam, exaltando as qualidades da nova contratada.

E naquela tarde discutiram pra valer, com Alcindo irritado de tanta badalação dentro de casa. Mas, como Dona Míriam ia passar a noite na casa do pai (o velho esta­va quase abotoando o paletó) e ele ia a um pré-carnavalesco legal organizado pelo Pindoba — grande técnico na es­truturação de badernas íntimas —, acabou concordando.

— Ela chega amanhã. Vai ganhar Cr$ 100 mil, mas vale a pena — foram as últimas palavras de Dona Míriam, antes de sair para a casa do pai moribundozinho.

Alcindo inda ficou zanzando pela casa, tentando se acostumar à idéia de uma governanta em casa; uma mulherzinha provavelmente cheia de chiques, que iria inibir sua comodidade dentro do próprio lar. Grande chatea­ção! Não fosse a perspectiva da farra no tal pré-carnavalesco, e o Alcindo estaria uma fera.

Quando saiu pra festa estava mais calmo. Meteu uma bermuda, uma camisa folgada e mandou brasa. O forró foi numa dessas boates também chamadas de "inferninho", onde o diabo não entra para não se comprometer.

No escurinho tava valendo tudo. Com dois minutos do tem­po regulamentar o Alcindo já estava armado. Pegou uma zinha mais ou menos, lourinha, de narizinho fino e um rebolado que não era assim aquele estouro mas que tam­bém não era de se deixar pra lá.

A noite inteira agarrado, enquanto uma charanga segundo time tocava uma marchinha chamada "O Cachorrinho do Lalau". Quando a charanga meteu o "Cidade Maravilhosa", que dá por en­cerrados os debates, o Alcindo estava de moringa cheia e doido pela lourinha. Fez tudo para comprar o seu passe, mas na confusão da saída, caindo pelas tabelas de tão bêbedo, a lourinha sumiu e ele nem sabe como chegou em casa.

Mas que chegou, isto chegou. Tanto que, no dia se­guinte de manhã, acordou com Dona Míriam a catucá-lo: — Levanta, Alcindo. A Dolores já está aí.

- Dolores?, Que Dolores?

- A governanta. Já estudamos os horários. Ela acha que não devemos dormir depois das dez. O breakfast pode tirar o apetite para o almoço.

Alcindo levantou-se estremunhado. Entrou debaixo do chuveiro (era dia de adutora consertada) e tomou uma ducha legal. Quando chegou na sala de jantar, foi aquele espanto. Sua mulher ouvia encantada as "ordens" da go­vernanta. E a governanta era igualzinha à lourinha da vés­pera. Seria a mesma? Era muito azar do goleiro. Alcindo cumprimentou-a meio ressabiado. Ela respondeu com um sorriso amável. Não, não era a mesma. Estava era imagi­nando besteira. Mas foi Dona Miriam ir lá pra dentro e a governanta começou a cantarolar baixinho a marcha "O Cachorrinho do Lalau".

Coitado do Alcindo, anda numa rosca soviética! Só ato institucional pra cima dele a governanta já assinou uns três para cercear os seus direitos humanos.

Por: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto).

Fonte: FEBEAPÁ 1: primeiro festival de besteira que assola o país / Stanislaw Ponte Preta; prefácio e ilustração de Jaguar. — 12. ed. — Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 1996.
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