sábado, 2 de novembro de 2013

O rato

Respeito o rato. O rato, ao contrário de outros roedores, é sempre um rato. Nada redime o rato. O rato não é redondinho, não é peludinho, não é um amor. O rato não tem vida útil. O rato é ruim. O rato é reles. O rato rasteja. O rato repugna. O rato venderia a própria mãe na Praça Mauá, se houvesse comprador.

Há, é verdade, o ratinho. Pior, o ratinho branco. Algumas pessoas se enternecem com o ratinho. Crianças sonham em ter um ratinho branco em casa e chamá-lo Gilberto. Mas o ratinho branco se tivesse algo a dizer sobre o seu próprio destino, preferiria ser grande e cinzento e espalhar a cólera. O camundongo Mickey não é um herói entre os ratos. E a ovelha branca dos ratos, um traidor da raça.

Os ratos desprezam sol, água limpa, ar puro, essa literatura toda. Os ratos, quando vão à praia, ficam no banheiro do posto. Os ratos odeiam Debussy.

O Deus dos Ratos vive numa caverna do centro da Terra para onde vão todas as latas de cerveja e as cascas de todas as coisas quando preteiam. O Deus dos Ratos tem os olhos injetados de sangue e se alimenta de lava e fósseis. Os ratos maus, quando morrem, vão para o seu lado. Os bons criam asas e vão para o céu dos cachorrinhos, como castigo.

Respeito ao rato. Rato é rato. Rato assumiu. Rato não se regenera. Rato não quer nem saber. Deus criou a Terra e tudo que nela habita, inclusive a barata e o vendedor de enciclopédia, mas não se responsabiliza pelo rato. De todos os animais que existem só o rato não foi criado junto com o mundo. O rato se apresentou.

Quando a criação tiver cumprido o seu ciclo e só sobrarem sobre a Terra o esqueleto de alguns shopping-centers, os diamantes e o PFL os ratos tomarão posse. Sem qualquer solenidade. Sem rapapés e sem canapés. Sem discursos, sem conjeturas sobre o seu papel no grande esquema cósmico. O rato é o rei do resto.

O rato é a vida reduzida aos seus primeiros impulsos, e com bigodinhos. Certa vez pegaram um ratão do esgoto, deram um banho e entregaram para uma ótima, família criar. Queriam testar a influência de fatores ambientais no desenvolvimento do rato. O ratão teve tudo do melhor, desde talco Johnson até bolsas de estudo. Comia na mesa com a família. Estudou francês, história da arte e flauta doce. Aprendeu os valores morais e as virtudes de um orçamento equilibrado.

Finalmente, para completar a experiência, soltaram o ratão na rua para ver que profissão ele escolheria. Talvez alguma coisa em finanças, ou o Itamaraty. E a primeira coisa que o ratão fez foi entrar por um bueiro para procurar a sua turma. Hoje ele ainda visita escondido a casa em que foi criado. Mas não por motivos sentimentais. Desista do rato.

Não quer rever seu quarto com os pôsteres do Snoopy. Não vai visitar a mãe abnegada que lhe contava o martírio dos santos. Vai porque sabe onde guardam o queijo e qual é o olho ruim do gato.


Luis Fernando Veríssimo - Jornal do Brasil - Primeiro Caderno / Opinião, 15/04/1990
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sexta-feira, 1 de novembro de 2013

No tempo da maxambomba


A maxambomba passa correndo passa barulhenta pelas ruas mornas da cidade antiga:

Chá com pão
Chá com pão
Bolacha não...

Vai num doido apito, num apito prolongado e agudíssimo. Sacoleja nos trilhos. Transpõe a ponte:

Tem... lem... tem... tem...
Tem... lem... tem... tem...
Frade da Penha não deve a ninguém...

E corre para os arrabaldes. Monteiro... Caxangá... Arraial... Muito cheiro de manga e de sapotis maduros. Muitas moças de tranças pelos portões para ver quem passa ou para receber quem vem... Os meninos arteiros trepam nos muros e empinam papagaios. Ou chupam pitombas e atiram os caroços no maquinista. Levam pela estrada um piano. Os oito homens caminham de passos certos e cantando

Zomba minha negra.
Zomba meu sinhô.

A maxambomba passa no "mato". E sobe a rampa da Mangabeira. Os velhos jogam gamão nos terraços. A Dindinha embala o neto na cadeira de balanço:

A obrigação de quem cria
É o menino acalentar...

A negra grita: "Tapioca quente!". E Yayá só quer andar é no trem. Ela já manga do palanquim. Dança quadrilha, faz balancê, e sabe uns versos que dizem assim:

Moça nenhuma
Me faça tromba,
Que eu só embarco
Na maxambomba.

A fumaça vai ficando pelo caminho, cheirando a carvão. A "mãe-preta" espirra. "T'esconjuro!". As meninas fazem debaixo do arvoredo, de fitas nas cinturas e mãos dadas:

Diga, senhora viúva,
Você com quem quer casar?
É com o filho do conde?
Ou com o senhor general?

A maxambomba toma carreira:

Vou com pressa...
Vou com pressa...

O povo todo fica no Poço. Painel, bandeiras, músicas, foguetes. O sino toca na capelinha. É a novena, a das "solteiras". Vestidos novos, seda, espartilhos e anquinhas. Rapaziada de redingotes. Vendem na porta "medidas-bentas". Canoas trazem gente da outra banda do rio. "Papai eu quero ir no tivoli!". Sobrados abertos com bicos de gás. "Bonito mesmo!". Dançam lá dentro quadrilha. As damas de saias redondas, fazendo balancês com os cavalheiros de sobrecasacas debruadas. Sorrindo, cortejando-se, derretendo-se... Para um crítico escrever depois:

Quadrilhas e balancês
São favoráveis ensejos
Se não de furtivos beijos
De abraços e apertões
De introduzir petições.

Conversas: "Eu vou tomar banhos salgados em Olinda". - "Também vou. Já comprei minha roupa de baeta". - Num recanto o fandango com o navio e noutro o pastoril de Xandunzinha. "Viva o azul!". E as pastoras entoam:

Ò gentileza, tão formosa e bela,
Eu não sou lírio, nem também jasmim,
Das pastorinhas sou a mais querida
Sou a Diana deste pastoril...

E a maxambomba volta cansada. Puxando, puxando, com sono...

Chá... com... pão...
Chá... com... pão...
Bo... la... cha... não...

O caminho está escuro. Os lampiões estão apagados. Nos sítios o povo dorme. Ainda muito cheiro de mangas e de sapotis. As estrelas piscam os olhos pedindo a madrugada para fechar de todo. Um violão volta da festa tocando. E um homem cantando alto:

Acorda, Adalgiza,
Que a noite desliza...

Lá se vai a boleira com seu xale de franjas e o tabuleiro vazio. Nem um pastel de nata, nem um cocorote, nem um mata-fome de cavalinho... Amanheceu. O corneta do quartel já tocou alvorada e os soldados fazem exercícios. De guritões e calças-encarnadas. Rufam tambores:

Ratos com coco,
Lagartixas com feijão.
No beco do marisco
Tem arroz com camarão...

A maxambomba não pode mais. Prega na ponte. Faz força. Pára.

Chó... chó... chó... chó...
chó... chó... chó... chó...

O povo salta para empurrar.


"No Tempo da Maxambomba" - Crônica de Mário Sette - Revista da Semana, 02/03/1940.
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domingo, 27 de outubro de 2013

Ambrósio Paré, o Pai da Cirurgia

Naquela época, em que os médicos só possuíam, revestida de frases gregas e latinas, uma ignorância extrema, Ambrósio Paré oferece quase o aspecto de um revolucionário. Os doutores em medicina desdenhavam os cirurgiões, que eram, para eles, simples “sangradores” e barbeiros, e eis que, num cúmulo de audácia, Ambrósio Paré, de humilde origem, servindo sob as ordens de um desses barbeiros, arvorava-se a entendido na matéria, e sem saber escrever em latim!

Por ter abandonado velhas rotinas e graças a uma longa experiência de sessenta anos, Paré fez importantes e decisivas descobertas e, ao passo que seus ferrenhos detratores jazem hoje esquecidos, sepultados nos seus alfarrábios latinos, o “pai da cirurgia” é nome atual, sempre citado e sempre respeitado.

Foi Ambrósio Paré quem ousou praticar a primeira desarticulação do cotovelo, e os cirurgiões modernos lhe devem a prática da ligadura das artérias, feita por ele, pela primeira vez, em pleno campo de batalha. Não podendo usar o cautério, então em voga, talvez porque lhe faltassem no momento meios materiais, Ambrósio Paré teve a ideia de ligar as artérias. E o êxito foi absoluto.

Ainda hoje é usado esse processo de estancamento de hemorragias. Ambrósio foi lutador. Para receber o título de doutor, teve de empenhar-se em tenaz campanha. Na Idade de 44 anos, após vinte anos de prática, defendeu tese. Nos relatórios da Faculdade, em Paris, lê-se a indignação que causou o seu latim, e consta que “somente em consideração ao rei”, ele foi aceito. Foi-lhe, todavia, imposta uma condição: tinha que estudar o latim, tinha que se aperfeiçoar.

Naquela época, médico que não falasse, receitasse e escrevesse em latim, não era médico...

A posteridade ignora se Paré estudou, mesmo, o idioma de Ovídio, Cícero e Virgílio. Sabe, contudo, que seu nome é respeitado como um símbolo e acatado por todos aqueles que têm feito da cirurgia, hoje tão adiantada, sua honrosa profissão.

Ambrósio Paré foi cirurgião titular dos reis Henrique II e de seus três filhos, que se sucederam no trono da França: Francisco II, Carlos IX e Henrique III.


Fonte: Almanaque d'o Tico-Tico - 1955.
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