sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O ópio das elites

Em todas as ruas, há um ódio. Ou é do ex-namorado pela ex-namorada, ou de uma vizinha por outra vizinha, ou de uma família por outra família.

Na minha infância, vi um ódio de meninos. Um teria seus nove, outro, oito anos. Um deles, mais vingativo, encheu de iodo uma seringa de borracha; e deu um esguicho no olho do outro. De repente, a rua encheu-se de gritos. Ainda bem que foi um olho só, e não os dois. Dias depois, apareceu na calçada. Logo outros meninos e outras meninas se juntaram. Fiquei espiando o ceguinho.

Ainda agora, estou vendo o olho branco, ou melhor: — era branco, mas com uma mancha de azul leve, diáfano. E, não sei por que, eu achava mais bonito o olho cego e tinha inveja do olho cego.

Assim como as ruas, também os povos precisam ter seu ódio. Não importa qual seja, nem contra quem. Hoje, estou convencido de que os povos sem ódio agonizam na mais pavorosa esterilidade, na mais cruel frustração. Quando me contam que a estatística de suicídios, na Suécia, atinge proporções inéditas, bem entendo esse feroz tédio sueco.

Falta a seus homens e falta às suas mulheres o incentivo mágico, vital, do ódio. Na minha infância, o ódio era o argentino. Odiávamos o argentino. Eu, garoto, de seis, sete anos, ficava ouvindo a conversa dos adultos. Tinha-se como certo que, mais dia, menos dia, íamos brigar com a Argentina. Meu irmão Roberto me dizia:

— "Os argentinos chamam os brasileiros de macaquitos!".

E, por muitos e muitos anos, aquilo me doeu na carne e na alma. Era como se fosse eu o macaquito, eu a vítima única do insulto direto e crudelíssimo.

Mas o barão do Rio Branco cometeu um erro, a meu ver grave. Era um estadista. Mas vejam vocês: — nem sempre o estadista é psicólogo. Não percebeu que devia promover, e não contrariar, a nossa paixão contra a Argentina. Um bom ódio, obsessivo e unânime, é a melhor, a mais eficaz, a mais fascinante distração de um povo. O vizinho, a família ou o povo que odeia esquece todas as outras questões vitais. Dito isto, passo adiante.

Até que um dia (ainda estou falando de Brasil x Argentina), até que um dia houve um episódio. Seria, em outras circunstâncias, um fato secundário, intranscendente e, mesmo, humorístico. Mas o povo viu o incidente através da óptica monumental do ressentimento.

E, de repente, a cidade saiu para as ruas. Todo mundo se juntou no largo de São Francisco. Hoje, passo anos sem pisar no largo de São Francisco e sem ouvir-lhe o nome. De vez em quando, chego a me perguntar: — "Será que existe o largo de São Francisco?". Se não existe hoje, naquele tempo existia.

E a multidão veio para o largo de São Francisco exigir "guerra". Queríamos mobilização fulminante e fulminante invasão. E o barão do Rio Branco foi avisado. Largou o gabinete e veio, de carro aberto, para a praça pública. Quando chegou ao largo de São Francisco, recebeu uma tremenda ovação. Naturalmente, viria trazer também o seu grito de guerra. Em pé, no carro, com a sua nobilíssima barriga, ele fez um gesto de silêncio. Pedia silêncio e fez-se o silêncio. E, então, ele ergueu o chapéu:

— "Viva a Argentina!".

Pausa. O povo estava mudo, num desses espantos jamais concebidos. E o nosso Paranhos repetiu:

— "Viva a Argentina!".

E, então, subiu das entranhas da massa o berro triunfal:

— "Viva a Argentina!".

Mas, repito, foi um erro. Volto ao que dizia. Como pode viver uma rua se, entre vizinhos, entre famílias, não explode um desses sentimentos fortes e exterminadores? Assim o povo. Nada como um ódio geral para uni-lo, para dar-lhe uma tensão nacional e dinamizar suas potências criadoras.

Realmente, ninguém trai o seu ódio e repito: — o homem é mais fiel ao seu ódio do que ao seu amor.

Vimos que, em dez minutos, saímos do "morra a Argentina" para o "viva a Argentina". Anos depois, o barão morreu; e seu enterro, segundo as testemunhas, foi maior que o de Inês de Castro.

Mas eis o que eu queria dizer: — a partir de então, o povo teve alguns ódios locais, com graus diferentes de intensidade: — um deles foi Pinheiro Machado. Mas o ódio a Pinheiro foi mais retórica do que paixão. Era, digamos assim, um ódio de comício. Foi apunhalado por um discurso.

Tivemos também Bernardes. Eu, com nove anos, odiei Bernardes; os meninos de Aldeia Campista odiaram Bernardes. Mas era pouco para o nosso coração. O ódio que rende mais, que dá dividendos mais generosos, exige o estrangeiro.

Graças a Deus, descobrimos o americano. O americano foi, mais que um ódio, uma solução. Se odiamos o americano, não precisamos nem amar o Brasil. Não exagero nada. A evidência está aí: — o Brasil é um país por fazer. Fazer o Brasil seria a nossa tarefa. Não damos um passo sem esbarrar, sem tropeçar num problema. Tudo no Brasil é problemático. Mas reparem: — quanto mais odiamos o americano, menos pensamos no Brasil e, repito, menos o amamos. O Vietnã está mais próximo de nós do que Magé.

E sabem por que essa impotência nacional para qualquer trabalho sério? Por causa dos Estados Unidos.

Mas temos as nossas elites. As elites, porém, estão entretidas em odiar o americano. E não tapam um buraco de rua, não soldam um cano furado, não desentopem uma bica. Na hora de pichar o muro, damos vivas a Cuba, e ao vietcong, e a Mao Tsé-tung, e a Guevara, e a Fidel. Vivas ao Brasil, jamais.

Não há, no mundo, elites mais alienadas do que as nossas. E convém falar, em especial, dos nossos intelectuais. São socialistas, em sua maioria absoluta. Pode-se perguntar: — à maneira sueca? Não e jamais. Ninguém fala da Suécia, porque lá não houve sangue, nem ódio, nem extermínio, nem escravidão. Portanto, a Suécia não interessa. O nosso intelectual está de olho no socialismo totalitário da Cortina de Ferro.

Dirá alguém que ele, intelectual, por boa-fé, ingenuidade ou simplesmente burrice, é vítima de uma funesta ilusão. Mentira. Ninguém que ligue duas idéias tem o direito de se iludir a tal ponto. A experiência socialista é a mais gigantesca e vil impostura do nosso tempo. E o intelectual é o primeiro degradado, sempre.

O romancista, o poeta, o cineasta, o dramaturgo, o crítico, o artista plástico, o compositor, todos, todos são rigorosamente escravos. E quando um ou outro insinua um vago lamento, vem a polícia e o interna como louco. E os psiquiatras do Estado o tratam como doente mental perigosíssimo. Ou, então, é fisicamente destruído.

Uma dona de casa que me leia há de perguntar:

— "Mas o nosso intelectual sabe disso e, apesar disso, quer isso mesmo?".

Quer. A maioria quer. Pergunta:

— "E por quê?".

Como diz um vizinho meu: — "Há gosto pra tudo". Diria mais que, por uma fatal coincidência — fora poucas exceções, suicidas —, o intelectual não resiste ao totalitarismo comunista. Tem sido assim em toda a Cortina de Ferro. Jamais insinua um protesto contra o estupro da liberdade, da inteligência, das artes e da pessoa humana.

Volto às elites. Temos aí artistas, escritores, médicos, arquitetos, cineastas, professores, os grã-finos. Ninguém faz o Brasil, porque só temos tempo de odiar o americano. E fica todo mundo numa deliciosa e alienada inércia contemplativa.

Sim, o ódio ao americano é o ópio das elites brasileiras.

[15/8/1968]
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A Cabra Vadia: novas confissões / Nelson Rodrigues; seleção de Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Cartago - Ascenção e queda

"Delenda est Carthago" (Cartago deve ser destruída). Apesar dos seis dias de resistência, os romanos derrubaram as muralhas, a população foi assassinada, as casas demolidas, os que sobreviveram foram transformados em escravos e, dizem, sobre o solo espalharam sal para que nada mais germinasse. O general romano Cipião Emiliano teria chorado após a vitória, quem sabe imaginando que Roma também pudesse vir a passar por tamanha violência ou talvez, com pena de arrasar uma civilização notável.

Quando o sacerdote fenício Arquebas foi assassinado, por volta de 814 a.C., sua mulher, a princesa Elisa, fugiu da cidade de Tiro, acompanhada por vários aristocratas, disposta a fundar uma nova cidade. O grupo acabou se estabelecendo em uma península no norte da África, numa região próxima a Túnis, atual capital da Tunísia.

Assim surgiu a única cidade fenícia que não viveu exclusivamente para o comércio: Cartago preocupava-se também com o poder. Dominou rotas marítimas, explorou províncias e chegou a guerrear com grandes potências. Disputou com os gregos diversas colônias na Península Ibérica. Roma, no entanto foi sua pior inimiga.

Enquanto a economia romana se baseava na agricultura, as relações com Cartago foram das mais amigáveis. Mas o clima de camaradagem desapareceu quando o interesse de Roma despertou na direção do Mediterrâneo. Cartago então propôs dois tratados em 306 a.C. para limitar pacificamente as áreas de influência dos dois Estados.

Tudo ia bem até entrar em pauta a ilha de Sicília — um ponto estratégico nas rotas para o Oriente, do qual ninguém queria abrir mão. Sem acordo, veio a primeira guerra púnica, que terminaria apenas em 241 a.C., quando os cartagineses cederam.

Além de perderem a Sicília, tiveram de amargar por mais de três anos a revolta dos mercenários estrangeiros que queriam receber seu pagamento. Mal o comandante Amílcar Barca pôs fim à confusão, criou bases militares na Espanha, para comprar novas brigas com Roma. Assim, romanos e cartagineses voltaram a entrar em conflito em 218 a.C. e 149 a.C.

Em 146 a.C., enfim, os romanos conseguiram sitiar Cartago, aniquilar o exército local e arrasar a cidade. Os sobreviventes do massacre foram vendidos como escravos e ficou proibida qualquer outra construção em solo cartaginês.

Fonte: http://www.meteopt.com/forum